O tópico principal desta nossa breve apresentação é: porque estudar História Oriental? Qual é o seu significado para o nosso processo de formação acadêmica, e como ela poderia contribuir para a construção de nossa “cultura geral”? O primeiro passo que podemos dar para responder estas perguntas, inicialmente, é inverte-las: porque não estudar a História asiática? Poderemos considerar nosso conhecimento como completo, se deixarmos de conhecer culturas que representam mais da metade do mundo?
A necessidade de pesquisar mais sobre as sociedades asiáticas é premente no momento atual: as maiores populações do mundo ali se concentram (China e Índia); a língua mais falada e escrita do mundo (o chinês) também é asiática. O crescimento econômico tem alcançado níveis surpreendentes neste continente, o que podemos observar pelos fenômenos dos “Tigres asiáticos” , dos “Dragões asiáticos”, do Japão e da China comunista. A popularização da informática e dos eletrodomésticos só tem acontecido graças aos baixos custos de produção apresentado nestas áreas. A Ásia também foi palco de movimentos políticos importantes, tais como a independência pacífica da Índia, as guerras não vencidas pelas superpotências na Coréia, Vietnã e Afeganistão, e pelos novos modelos de capitalismo e socialismo adaptados à cultura tradicional.
Somam-se a estes fatores a consideração de que a História asiática está estruturada numa dinâmica bastante diferente da nossa, como acontece no caso da China e da Índia, que estão em processo de desenvolvimento civilizacional desde a antiguidade.Assim sendo, como não estudar a História Oriental?
Porque estudar a História Antiga do Oriente?
Na medida em que a História das civilizações asiáticas possui uma complexidade toda própria, como poderíamos compreender seus efeitos modernos sem conhecer as suas bases de formação?
Têm sido um erro bastante comum nas ciências humanas iniciar qualquer estudo sobre o Oriente consultando somente fontes modernas, em detrimento do conhecimento tradicional. Isso ocasiona um sério problema de superficialidade em estudos mais amplos, que se agravam seriamente nas pesquisas mais específicas.Além disso, as civilizações asiáticas possuem suas próprias tradições de construção do conhecimento histórico e científico. Como podemos, então, ignorá-las? Ou temos, teoricamente, o direito de subestimá-las, por não estarem de acordo com os nossos parâmetros ocidentais?
Além disso, o estudo da História Antiga das civilizações asiática torna-se necessário em virtude de suas singularidades. De que forma podemos compreender a História do Império Chinês, por exemplo, que durou do séc. –3 até +20? Ou da Índia, que não se reconhecia como um país até o séc. +19 (geograficamente falando), mas se compreendia unida pela religião hindu?
O estudo da Antiguidade Oriental nos possibilita, portanto: 1) Compreensão mais abrangente sobre os fenômenos sócio – políticos asiáticos; 2) Acesso a culturas diferentes e formas alternativas de pensamento; 3) revisão do próprio conceitual Ocidental, no que tange a sua aplicabilidade, universalidade e inteligibilidade.
Considerações sobre a História Asiática
É fundamental fazer uma análise do processo de construção da História asiática, levando em conta duas perspectivas principais: a) a produção feita na própria Ásia e b) aquela feita no Ocidente e/ou com técnicas ocidentais.
a) Perspectiva Asiática
Tomemos como primeiro exemplo a Índia. Até o estabelecimento dos ingleses, a civilização indiana não considerava a História como uma das principais disciplinas do saber. Em sua concepção, esta “ciência” se ligava ao estudo de eventos materiais, que seriam efêmeros, transitórios e, por conseguinte, falhos na compreensão de uma verdade superior (a transcendência, ou realidade definitiva). Desta forma, a Filosofia, a Religião, as Letras e as Ciências Naturais angariaram muito mais respeito do que o estudo histórico, que acabou sendo realizado, em geral, por estrangeiros (gregos, romanos, chineses, árabes, etc).
Num sentido completamente oposto, a China desenvolveu uma longa tradição de Estudos Históricos, que desde o século –10 produziu cronologias muito bem articuladas. Confúcio, o grande sábio chinês do séc. –6, foi um dos grandes defensores do estudo da História como forma de compreender a evolução da sociedade, esclarecendo questões morais e sociais. No período do sécs –2 –1 , o Historiador Sima Qian teria elaborado a primeira grande cronologia da História chinesa, utilizando uma série de métodos inovadores para época (pesquisa de documentos, verificação de data por tabelas astronômicas, etc.). A partir dele, houve uma sucessão de profissionais que preservaram e divulgaram a História das dinastias chinesas até o séc. +20, quando foi proclamada a república. Além disso, desde a antiguidade os chineses procuraram formar coleções de livros e de relíquias, e já no século +10 contavam com um método rudimentar de arqueologia. Buscaram também aplicar noções e procedimentos científicos (chineses) na elaboração de modelos explicativos (Sima Qian, por exemplo, aplicou a teoria dos 5 elementos na compreensão dos ciclos dinásticos).
b) Perspectiva Ocidental
Desde a Antiguidade o Ocidente vem mantendo contatos regulares com o Oriente, e no séc. +1 romanos e chineses já se citavam mutuamente. Apesar de terem ocorrido algumas épocas de menor comunicação, causadas por crises sociais e política periódicas, o intercâmbio entre Europa, Oriente Médio, Ásia Central e Extremo Oriente nunca arrefeceu, de fato. Uma mudança radical só ocorreria a partir do séc. +16, no momento em que se iniciam as grandes navegações e a colonização de territórios ultramarinos por parte dos Estados Europeus.
Neste contexto, os europeus deixaram de manter apenas contato com os orientais para estabelecerem um modo convivência, fato esse que modificou bastante seu procedimento de observação. Grande parte deste tempo foi dedicado a exploração comercial destas civilizações e, concomitantemente, à imposição cultural e as conversões religiosas. Tal processo ocorreu de formas diferentes na Ásia. Na Índia e na China, por exemplo, ele foi durante um bom tempo localizado e restrito; já nas Ilhas Filipinas e parte da Oceania, espalhou-se mais rapidamente e com maior intensidade.
O resultado disso foi o embate cultural, e não o diálogo e a compreensão mútua. Havia um discurso carregado de preconceito e desconfiança de ambas as partes (um bom exemplo é a instalação portuguesa em Macau, documentada tanto por lusos como por chineses), e os primeiros a perceber esta situação foram os Jesuítas, que tentaram reverter este quadro dedicando-se ao estudo das civilizações que buscavam converter.Os esforços destes religiosos não foram acompanhados, entretanto, pela maioria dos ocidentais. Com exceção da geração iluminista do século +18, grande parte da Europa continuou a acreditar na idéia de imposição e conversão. E o século +19 acompanhou esta tendência, com a afirmação do racismo e do imperialismo dentro das ciências humanas, gerando uma série de deformações bastante sérias no estudo da História Asiática.
Somente na metade do séc.+20 é que já havia, por parte da academia, uma noção clara da grande quantidade de erros que foram imputados aos modelos orientalistas. Desde então, têm se buscado, em conjunto com especialistas nativos, resgatar e reconstruir esta História de uma forma mais científica, mas com grande ênfase, no entanto, ao uso das técnicas ocidentais. O processo de reconhecimento das ciências tradicionais asiáticas tem sido mais demorado, e muitos preconceitos ainda subsistem na Academia em relação a estas culturas.
Correntes de Estudos Históricos
A Perspectiva Ocidental gerou, basicamente, duas correntes de estudos históricos orientalistas, bastante distintas entre si por suas características e objetivos.
a) Corrente “Histórica” ou “Européia”.
Esta corrente destaca-se pelo engajamento estrito no discurso científico europeu, principalmente a partir do séc. +19. A civilização moderna, européia gerava todos os modelos de comparação para serem aplicados na História asiática. Tratava-se, portanto, de saber o que os orientais haviam conseguido criar que fosse comparável a História e ao pensamento Ocidental, o que lhe concedia o seu “grau” na “hierarquia das civilizações”.
Tais considerações foram feitas, no entanto, pelos mais diversos motivos. Alguns pesquisadores estavam realmente preocupados em provar a superioridade de suas culturas; outros, porém, utilizavam as técnicas acadêmicas da forma que acreditavam ser conveniente e, por conta disso, seus estudos acabavam gerando erros involuntários. Além disso, a atenção concedida aos modelos tradicionais, em detrimento de propostas inovadoras – paralelo ao desprezo (ou desconhecimento) dos conteúdos culturais nativos – terminava por agravar a situação.
A evolução das ciências humanas tem, gradativamente, alterado este panorama, e os programas interdisciplinares tem estimulado uma discussão mais flexível e aberta sobre os tópicos relacionados a História Asiática. A absorção e o emprego de técnicas ocidentais por especialistas orientais também contribuiu bastante para a modificação desta situação, mas, existem ainda muitos campos para serem trabalhados e rediscutidos. Não raro ainda encontramos estudos, na academia, que são realizados com informações totalmente defasadas; e a regularidade com que são reproduzidas acaba por torna-las “verdades históricas” difíceis de combater.
b) Corrente “Escritural” ou “Esotérica”
Esta corrente surgiu num fenômeno oposto ao do imperialismo colonialista. Frustrados com a religião e a sociedade ocidental, uma série de autores dedicou-se ao estudo das culturas asiáticas em busca de alternativas que pudessem suprir as carências da “civilização moderna”. Pesquisadores das mais diversas áreas, aventureiros, ou mesmo curiosos ligaram-se a esta proposta, e o resultado foi o mais diverso possível.
O trabalho de transliteração textual alcançou, por vezes, excelentes níveis de qualidade, já que os tradutores buscavam estudar melhor a língua e a cultura com a qual lidavam, sem aplicar-lhes nenhum modelo de estudo específico. A parte histórica, porém, era muito fraca e falha, limitando-se muitas vezes a repetir informações de uma ou outra tradição. Os aspectos negativos, entretanto, eram múltiplos. Muitos ficaram simplesmente fascinados pelas tradições asiáticas, e num processo de “conversão cultural”, começaram por reclamar uma “superioridade espiritual” do Oriente sobre o Ocidente. Por conta disso, esta linha de estudos perdeu a credibilidade, sendo dificilmente aceita pela academia, mas angariando simpatia entre os leigos. Seu principal problema é o fato dela construir uma imagem ideal da Ásia, ignorando por completo seus problemas materiais e sociais. Isso também tem gerado uma série de enganos no estudo do Oriente, reproduzindo erros que têm se afirmado com uma intensidade problemática entre o público que não mantém contato direto com a academia.
Para finalizar, devemos ter em mente que os mesmos problemas têm se apresentado entre os especialistas asiáticos. Há uma discussão importante sobre a aceitação das teorias históricas ocidentais na academia, e têm se buscado equilibrar elementos da cultura tradicional com essas avaliações. A revalorização das ciências orientais também tem contribuído neste mister, embora seu ressurgimento dê vazão, ocasionalmente, a uma confusão entre as duas correntes.
Deformações Históricas
Busquemos agora discutir alguns tópicos sobre a História e a Cultura das civilizações asiáticas. Em primeiro lugar, é importante não trata-las em bloco. Os primeiros estudiosos europeus fizeram isso, e só cometeram enganos. Confundiram tradições históricas distintas com tanta constância que, atualmente, só um estudo sério e dirigido pode esclarecer melhor um iniciante. Os preconceitos, no entanto, se mantiveram. Vejamos alguns deles:
a) “Árabes”
Hoje em dia, esta denominação tem sido utilizada para conjugar elementos completamente diferentes entre si. Ela abriga povos tão diversos como os sírios, palestinos, turcos, árabes, chechenos ou qualquer outro povo que esteja localizado, geograficamente, perto do Oriente próximo. Quando utilizada no sentido religioso (ou seja, igual a islã), ela abriga uma quantidade ainda maior de povos e, pior, com tradições religiosas variadas. Logo, o emprego deste termo em nada equivale a realidade complexa do mundo islâmico, que tem recebido uma atenção bastante falha no meio acadêmico.
b) “Arianos contra drávidas”
No século 19 os pesquisadores europeus lançaram a idéia de que a História da Índia antiga tinha se formado a partir do conflito entre duas civilizações diferentes, os Arianos (povo indo-europeu branco e dominador), e o povo drávida (nativo, negróide), O primeiro havia submetido o segundo numa série de guerras de conquista, que terminaram com a imposição da cultura Ária sobre todo o subcontinente indiano. Hoje sabemos, através da arqueologia e da lingüística, que os termos “ariano” e “dasa” não se referem a povos, mas sim à titulações; que não ocorreram apenas guerras, mas houveram fusões pacíficas e férteis; que muitos elementos autóctones ainda estão vivos na cultura indiana; e, por fim, que os “indo-europeus” não tinham idéia de que eram “europeus”, e assim não podem ser ícones imperialistas, como foi subentendido durante muito tempo.
c) O Modelo “Índia – China”
Até hoje ouvimos, com constância, a seguinte citação: “tal elemento surgiu na Índia, foi levado para a China e de lá se difundiu, etc...”. Esta deformação histórica ocorre pela associação do modelo greco-romano, em voga no início do século 20, ao caso dessas duas civilizações asiáticas. Como se defendia a idéia de que Roma havia absorvido muito de sua cultura da Grécia helênica, um exame rápido sobre as culturas da Índia e da China deu ensejo a que alguns pesquisadores fizessem o mesmo na Ásia, retirando, por completo, sua diversidade e originalidade. Apesar dos intensos esforços no sentido de investigar mais profundamente a cultura e a ciência de ambas as civilizações, a permanência desta falácia ainda predomina em muitos setores de estudo orientalistas, tanto na academia quanto fora dela.
d) o “Imobilismo”
Por serem culturas antigas, muito se divulgou a idéia do “imobilismo histórico”, ou seja, da preponderância das estruturas de longa duração na História das civilizações asiáticas. Por conta disso, o desenvolvimento das mesmas “arrastou-se” historicamente, em comparação à civilizações européias. Devem ser tomados cuidados básicos com esta interpretação. 1) Não confundir as dinâmicas próprias da História da Índia ou China, por exemplo, com a da França. 2) os processos de evolução técnica, social, econômica, etc estão organizados em ciclos diferentes para cada sociedade. Não podemos, portanto, aplicar arbitrariamente o modelo de “longa duração” ao caso asiático – se aplicado, são necessárias ressalvas importantes; 3) uma investigação atenta sobre as cronologias históricas e os processos de transformação política e cultural destas civilizações mostra que elas estão longe de ser estáticas: ou elas devem ser assim consideradas apenas porque não se efetuaram certas mudanças que nós supomos que deveriam ter ocorrido...?
Acredito que tenha sido importante levantar estes quatro casos para exemplificar o quão importante é entender um pouco da História Oriental. Ela nos permite compreender a existência de lógicas diferentes da nossa, e conseqüentemente, nos enseja a revisar nossos critérios de aproximação e avaliação teórica e metodológica.
Conceituação
E já que comentamos os problemas relacionados às questões de Teoria e Método, vamos proceder à análise de alguns pontos que ainda têm gerado discussão no meio acadêmico ocidental.
a) Mitologia ou Religião?
Em geral, aplicamos o termo “mitologia” para uma série de narrativas de cunho religioso ou cultural que integram a história e o pensamento de uma civilização. Seriam elementos que, essencialmente, não possuiriam comprovação material, constituindo-se, assim, de histórias “irreais”. Ora, como podemos considerar como “mitológicos” a existência dos deuses que compõe uma religião como o hinduísmo, composta por mais de um bilhão de crentes e ainda praticada em todo o mundo? Se a questão é, em si, a comprovação material, então até o judaísmo e o cristianismo teriam problemas sérios em suas cronologias, já que não existem provas quaisquer sobre a vida de Abraão ou Moisés, além das presentes na Bíblia. Se um sistema de culto qualquer pode ser considerado como Religião, ele o pode porque existe enquanto tal; logo, ele independe de uma comprovação material total e completa. Portanto, é importante fazer a distinção entre os dois termos, tendo em vista que o argumento da “mitologia” e da “comprovação material” têm sido utilizado inúmeras vezes contra as religiões asiáticas, na tentativa de provar a sua “falta de base histórica”.
b) Filosofia ou Religião?
Podemos considerar o Budismo uma religião, tendo em vista que ele comporta em sua estrutura sistemas de crença tão distintas como o ateísmo e politeísmo?! Ou o Confucionismo, que foi eleito como religião estatal na China imperial, apesar de pregar a liberdade de culto e de não possuir qualquer espécie de sacerdócio, propondo-se a existir apenas como um conjunto de regras morais, e não religiosas? Assim sendo, elas são filosofias, e não religiões?O problema que se insere aqui é simples: a idéia de Religião que usualmente empregamos é aquela derivada do Judaísmo-Cristianismo, com uma crença vinculada a um sistema metafísico, e a presença de elementos ditos “clericais”. Quando nos deparamos com situações complexas como a do movimento religioso budista ou do Confucionismo, o emprego da idéia de “religião” ou “filosofia” tem sido utilizada, geralmente, como detrator, e não esclarecedor. Logo, quando um é “religião”, termina por não ser “filosofia”, e vice-versa. Fica patente que tal dubiedade perversa somente é aplicada a sistemas religiosos e filosóficos que não seguem nossas regras gerais; caso contrário, poderíamos nos perguntar se São Tomás de Aquino ou Kant foram menos religiosos apenas porque foram filósofos. É necessário, portanto, que esclareçamos como queremos abordar estes sistemas culturais asiáticos, posto que muitos fundem elementos diversos de filosofia, religião e história, com aplicações e sentidos próprios que podem – ou não – aproximar-se dos nossos.
c) Filosofia ou Sistema de Pensamento?
Esta questão, por incrível que pareça, ainda permanece atual. O problema é: podemos considerar os sistemas de pensamento oriental como Filosofia? São vários os argumentos: 1) o termo se refere a uma tradição ocidental, ou seja, é excludente; 2) os temas principais da Filosofia são diferentes dos do pensamento oriental e 3) os métodos de discussão são diferentes.Foucault já havia criticado com veemência a idéia dos “conceitos únicos” na academia. Quando perguntando sobre sua opinião em relação a determinado tema, ele afirmou que “primeiro, a academia deveria definir a sua idéia sobre o tal conceito, e depois ela poderia ser discutida”. A avaliação é mais do que pertinente para o caso do pensamento oriental.
Em primeiro lugar, a tradição filosófica ocidental não foi feita somente daquilo produzido na Grécia ou em Roma. Ela é fruto, justamente, do trabalho de diversos pesquisadores espalhados pelo mundo, que trouxeram suas contribuições, enriquecendo-a. Como podemos, portanto, falar em “tradição ocidental”? Tradição essa, aliás, que foi resgatada por filósofos muçulmanos como Averrois e Avicena, que não eram ocidentais. E hoje tem crescido bastante a idéia do intercâmbio cultural entre gregos e orientais (incluindo indianos) na época de formação da Filosofia grega, o que desfaz a idéia de exclusividade desde o início.O segundo argumento, dos temas filosóficos, é totalmente impreciso. A Filosofia ocidental inferiu vários novos tópicos de discussão ao longo de seu desenvolvimento histórico, o que invalida a idéia de “perenidade conceitual”; além disso, alguns temas semelhantes aos ocidentais foram discutidos no Oriente, mas os resultados foram diferentes. Isso invalida, portanto, o raciocínio filosófico asiático? O problema é que os temas filosóficos não surgiram, na Ásia, na mesma ordem que na Europa. A questão da natureza humana, por exemplo, discutida por Hobbes, Locke e Rousseau surgiu, na China, em torno do séc. –4 , nas mãos de Mengzi e Xunzi. No entanto, certas questões surgiram antes no Ocidente que no Oriente, e este ponto só vêm a confirmar que as culturas não possuem o monopólio do saber, posto que elas são capazes de inferir temáticas semelhantes em circunstâncias diferentes.
Quanto à questão dos métodos de discussão, resta-nos questionar se existe somente um método filosófico no Ocidente que comprove a sua total diferença em relação às formas de trabalho orientais. As práticas do pensar filosófico estão presentes, praticamente, em todos os autores asiáticos. A ênfase com que são utilizadas, porém, é bastante variável. A apresentação dos textos filosóficos orientais também é bem diversa, o que a torna relativamente singular em relação aos trabalhos ocidentais. Isso descaracteriza, por conseguinte, o pensamento oriental como Filosofia?
Acredito que, por todos estes motivos, o pensamento oriental poderia ser chamado de Filosofia. Mas agora, faço uma consideração última que julgo ser bastante significativa: e porque o pensamento oriental tem que ser Filosofia? A luta de alguns especialistas em comprovar que o saber asiático merece respeito foi mais do que eficaz em comprovar nosso desconhecimento acerca do mesmo. No entanto, precisamos submeter estas formas de pensar a idéia que temos de Filosofia para considera-los como importantes? Ou seja, eles só podem ser objeto de estudo se passarem pelo crivo dos conceitos ocidentais? Usualmente, os autores despidos de maiores preconceitos têm usado o termo Filosofia para designar estes saberes, sem grandes complicações. No entanto, há uma grande resistência nos meios acadêmicos em reconhecer a legitimidade dos mesmos, seja por sua tradição histórica, ou por seus conteúdos. Também sobrevive o hábito de exigir respostas do “pensamento oriental” para certas questões como se ele fosse um único sistema filosófico, uma entidade que permeia o pensar de todo o continente asiático. Um breve olhar sobre qualquer bom manual do assunto já nos permite observar, no entanto, a multiplicidade de escolas e correntes filosóficas que existiram na Índia e na China desde a antiguidade, o que torna tal questionamento praticamente impossível.
d) “Invenção ou Descoberta”?
Nos anos 50, o pesquisador inglês Joseph Needham iniciou uma das tarefas mais espetaculares da História da Ciência: recompor o passado da ciência chinesa, avaliando cuidadosamente sua estrutura, eficácia e regularidade. E qual não foi sua surpresa ao descobrir, gradativamente, que várias das “invenções” ocidentais haviam sido criadas, séculos antes, na China?
O trabalho deste pesquisador foi revolucionário em mostrar dois aspectos importantes da ciência oriental. Primeiro, que ela existia, sob uma forma organizada, e produzia saberes com certa regularidade; e, segundo, que apesar dela não estar baseada nos mesmos métodos e teorias ocidentais, ela possuía eficácia, que podia ser comprovada inclusive pelos nossos critérios. Mais do que isso, Needham, demonstrou a originalidade e as limitações da ciência chinesa em relação ao restante do mundo, assegurando, por conseguinte, a capacidade inventiva das outras civilizações asiáticas. È importante ressaltar a contraposição das idéias de “descoberta” e “invenção”, posto que a primeira parece se dar de forma espontânea, enquanto a segunda é resultante de um longo processo de investigação. Em geral, se designava que o Oriente havia sempre “descoberto” as coisas (o papel, o leme, etc,) como se tais não fossem frutos de raciocínio, e sim do acaso. Needham provou, por conseguinte, que a Ásia podia “inventar” também, e concluir de forma articulada a construção do conhecimento.
O preconceito que existe atualmente com as práticas científicas orientais decorre, portanto, de três problemas fundamentais: primeiro, o não reconhecimento, por parte da academia, de outro sistema de pensar que não seja o ocidental; segundo, a reserva de mercado, diante do surgimento de técnicas alternativas; terceiro, o acesso a esses saberes demanda um relativo tempo de estudo, e a presença de poucos profissionais capacitados têm favorecido o surgimento de falsários, que denigrem o processo de afirmação das ciências orientais.
Conclusão
Estudar a História oriental é, portanto, uma necessidade. Ninguém precisa virar um especialista no assunto, mas acreditamos que seja imprescindível, para os historiadores, dominar alguns elementos das culturas asiáticas, que possam ser adicionados ao seu instrumental teórico, metodológico e de conhecimento gerais.Este campo não apresenta mais dificuldades do que qualquer outro, a não ser pela distância que temos mantido em relação a ele, e ao preconceito que sofre. Cerrar a porta para os estudos asiáticos não diminui sua premência, nem a nossa ignorância. Porque, então, não estudar a China, a Índia ou o Japão? Não se trata apenas de conhecer algo novo e - ao mesmo tempo -, antigo, mas de abrir caminhos que nos permitam questionar a nós mesmos, e o que temos feito para compreender melhor o mundo.
Sugestões de Leitura
Uma leitura indispensável para se pensar a questão do orientalismo atualmente é o livro de Edward Said, Orientalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1996). Sobre como analisar conceitualmente a questão da cultura e do pensamento asiático, ver os artigos de Raimon Panikkar, Religion, Filosofia y Cultura (na internet em http://them.polylog.org/1/fpr-es.htm) e de François Jullien, Da Grécia a China, ida e volta (Revista Ethica, vol. 9, numero 1-2, 2002, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 2004). Uma excelente coletânea de textos sobre o caso chinês está presente em China e o Cristianismo (Petrópolis: Vozes, 1978), e podemos consultar, ainda, o livro de Dawson, R. El Camaleon Chino (Madrid: Alianza, 1970). Como manuais sobre História da China e da Índia, indicamos o livro de Jopert, R. O Alicerce Cultural da China (Rio de Janeiro, 1979) e Allchin, Índia Antiga (São Paulo: Abril Cultural, 1998) que, apesar de ser uma obra de divulgação, contém informações atualizadas sobre as questões relevantes da história antiga indiana. Na internet, sugiro os seguintes artigos sobre Orientalismo; Os Estudos Orientais no Âmbito Universitário, de Hanania, A. e Sproviero, M.; Orientalismo de Nei Duclós; veja também uma crítica do livro de Said.
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