Ao falarmos sobre o tema “religião” na China, somos praticamente forçados a rever nossos parâmetros sobre o assunto. O pensamento religioso chinês é bastante diferente do ocidental: ele se dispõe a aceitar qualquer crença vinda de fora, contato que ela seja capaz de dialogar com a sua cultura milenar. Complexa, sutil e abrangente, a idéia de religião chinesa funde elementos diversos da filosofia, ciência e cosmogonia, e deve necessariamente ser investigado numa perspectiva bem diferente da qual estamos acostumados.
As religiões chinesas são muito mal conhecidas até hoje. Resultado de uma evolução de crenças e ritos bastante particulares, cuja datação remonta a milênios, os conjuntos das crenças e da mitologia chineses exigem uma disposição ímpar do estudioso. Não é à toa que a tradição folclórico-políteísta chinesa já foi considerada, junto com a indiana, como uma das maiores do mundo.
Mas, ao contrário do Hinduísmo, que ao longo dos séculos ordenou de alguma forma sua estrutura cosmo-teológica, as religiões chinesas seguiram caminhos diferentes, crescendo, multiplicando-se, a ponto de se tornarem unidades quase autônomas dentro de grandes denominações (“confucionismo”, ou “daoísmo”, etc.) que as associam muito vagamente com a idéia de um sistema religioso.
A primeira questão para entender este problema é: existe religião na China? O problema é importante, quando relacionamos a utilização do termo “religião” e “mitologia” no contexto orientalista. Em geral, aplicamos o termo “mitologia” para uma série de narrativas de cunho religioso ou cultural que integram a história e o pensamento de uma civilização. Seriam elementos que, essencialmente, não possuiriam comprovação material, constituindo-se, assim, de histórias “irreais”. Ora, como podemos considerar como “mitológicos” a existência dos deuses que compõe uma religião como o daoísmo ou o budismo chinês, compostos por mais de um bilhão de crentes e ainda praticados em todo o mundo? Se a questão é, em si, a comprovação material, então até o judaísmo e o cristianismo teriam problemas sérios em suas cronologias, já que não existem provas quaisquer sobre a vida de Abraão ou Moisés, além das presentes na Bíblia. Se um sistema de culto qualquer pode ser considerado como Religião, ele o pode porque existe enquanto tal; logo, ele independe de uma comprovação material total e completa. Portanto, é importante fazer a distinção entre os dois termos, tendo em vista que o argumento da “mitologia” e da “comprovação material” têm sido utilizado inúmeras vezes contra as religiões asiáticas, na tentativa de provar a sua “falta de base histórica”.
Além disso, como utilizar a denominação religião quando sabemos que, na China, o aspecto devocional ou ritualístico pode ter muito pouco haver com a própria idéia de crença no sobrenatural? Podemos considerar o Budismo uma religião, tendo em vista que ele comporta em sua estrutura sistemas de crença tão distintas como o ateísmo e politeísmo?! Ou o Confucionismo, que foi eleito como religião estatal na China imperial, apesar de pregar a liberdade de culto e de não possuir qualquer espécie de sacerdócio, propondo-se a existir apenas como um conjunto de regras morais, e não religiosas? Assim sendo, elas são filosofias, e não religiões?
O problema que se insere aqui é simples: a idéia de Religião que usualmente empregamos é aquela derivada do Judaísmo-Cristianismo, com uma crença vinculada a um sistema metafísico, e a presença de elementos ditos “clericais”. Quando nos deparamos com situações complexas como a do movimento religioso budista ou do Confucionismo, o emprego da idéia de “religião” ou “filosofia” tem sido utilizada, geralmente, como detrator, e não esclarecedor. Logo, quando um é “religião”, termina por não ser “filosofia”, e vice-versa. Fica patente que tal dubiedade perversa somente é aplicada a sistemas religiosos e filosóficos que não seguem nossas regras gerais; caso contrário, poderíamos nos perguntar se São Tomás de Aquino ou Kant foram menos religiosos apenas porque foram filósofos. É necessário, portanto, que esclareçamos como queremos abordar estes sistemas culturais asiáticos, posto que muitos fundem elementos diversos de filosofia, religião e história, com aplicações e sentidos próprios que podem – ou não – aproximar-se dos nossos.
Por fim, temos que lidar com as próprias distinções que os chineses fazem de suas religiões. Embora as grandes correntes religiosas estejam estruturadas em torno do Confucionismo, do Daoísmo e do Budismo, estas divisões nem sempre correspondem à realidade. O confucionismo, por exemplo, admite a diversidade de crenças teológicas; o daoísmo mistura uma série de elementos do folclore e da “mitologia”; e o budismo chinês recebeu um grande impacto destas tradições, modificando-se em muitos aspectos. Além disso, podemos dizer que na China antiga existia ainda um conjunto de crenças praticadas essencialmente pela elite (que possuíam um cunho estatal) e um outro de caráter popular, bastante diferenciado.
Esta breve introdução nos mostra, portanto, que estudar as religiões chinesas é um processo bem complicado. O que faremos nos próximos textos, portanto, é investigar um pouco de suas estruturas, movimentos, crenças e mitologia, tentando compreender alguns de seus elementos básicos.
Bibliografia:
Ching, J. “O senso religioso dos Chineses” em Boff, L. (org.) China e o Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1978.
Ching, J. Chinese Religions. New York, 1998.
Eliade, M. Tratado da História das Religiões. Lisboa: ASA, 1997.
Smith, D. As Religiões chinesas. Lisboa: Arcadia, 1969.
Smith, H. As Religiões do Mundo. São Paulo: Cultrix, 2001.
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