Para uma história da Mulher na China



A idéia deste sucinto texto surgiu de uma constatação por mim realizada há pouco tempo atrás: pouco - ou quase nada - temos em mãos para compreender a história da mulher na China. Afora discursos ou textos recentes - quase todos de caráter engajado, e que projetam sobre a civilização chinesa todo o tipo de preconceito "orientalista" - a compreensão do feminino nesta civilização está longe de ser precisa, e muitas concepções enganosas se difundem em função dessa difícil situação.

O conhecimento desta parte significativa da história chinesa tem sido contaminado, no ocidente, por duas condições básicas: a primeira envolve as distorções usualmente criadas e empregadas pelos "estudiosos" do "oriente" para analisar categorias de estudo aplicadas ao caso chinês, tema que já abordei em outros escritos anteriores; a segunda condição diz respeito a um feminismo intransigente que absorveu muitas determinações deste orientalismo problemático e que, por conseguinte, demonizou a sociedade chinesa como um mundo de perversões e crueldades, associando-a a todo tipo de desrespeito humano, tal como ocorreria em outras partes de Ásia e África.

Cabe notar, pois, que a análise da história da mulher na China desdobra-se tanto numa investigação séria sobre esta sociedade como numa necessidade de rever os conceitos mais radicais do feminismo. Não se trata de questionar o movimento feminista como um todo, já que suas motivações são legítimas e coerentes; mas é necessário que a construção de uma base crítica sobre a situação da mulher na Ásia seja melhor estudada e aprofundada, sem o que, as causas em questão deste movimento podem vir à ser tidas como superficiais, erradas e vistas com descrédito.

Neste momento a China torna-se, novamente, o espelho distante do Ocidente: a sociedade chinesa, no curso de sua história, tem atitudes variadas em relação à questão da mulher. Ora apresentada numa condição de subserviência e inferioridade humilhante, ora apresentada como um ser divinal e necessário à existência da humanidade, a situação da mulher só pode ser compreendida se, realmente, entendermos que ela foi representada em facetas múltiplas desde a antiguidade chinesa, condição que desde já nos aponta existirem poucas unanimidades em sua análise.


A palavra "Mulher"
Podemos iniciar nossa investigação pelo próprio ideograma "mulher", cuja origem da representação pictográfica é discutida seriamente entre os especialistas. Uma primeira visão admite que a imagem do ideograma representa uma mulher de seios grandes, tal como a imagem das Vênus proto-históricas descobertas pela arqueologia; a segunda defende que imagem representa, na verdade, a imagem de uma pessoa de joelhos, em atitude de submissão. Este segundo argumento é largamente defendido pelas feministas mais radicais, mas infelizmente não pode ser aceito com absoluta precisão. Dois motivos podem ser apresentados para isso: 1) os desenhos que podem ter dado origem a palavra "mulher" e que representam tal imagem podem fazer parte de um conjunto mais recente de pictogramas (embora usualmente chamados de "primitivos")- e tais representações são, a princípio, especulativas; 2) o radical "mulher" é empregado em varias outras palavras que denotam sua importância fundamental para a cultura chinesa primitiva, tal como em "nome" (nascido+mulher), "bom" (mulher+filho), "paz" (mulher+teto), etc. Se aceitarmos a concepção de que o pictograma "mulher' representa então uma entidade proto-histórica, poderemos igualmente encontrar uma chave para a constituição destes vocábulos posteriores.


A representação pictórica de uma mulher ajoelhada




O ideograma Mulher (Nu)


As primeiras referências

Deste modo, se considerarmos a representação de "mulher" uma associação com esta imagem primitiva, encontraremos consonância desta perspectiva com a teoria amplamente aceita do culto ao feminino desde a época neolítica, e com o papel preponderante do sistema matrilinear na fundação da sociedade chinesa. No excelente artigo de Ana Amaro "O culto da mulher no neolítico chinês" (Revista da Cultura, Macau: ICM, 1997), podemos visualizar o panorama mítico-folclórico, histórico e arqueológico que embasa esta visão teórica.

A passagem para os tempos da escrita nos traz o processo de transição complexo que afetou esta sociedade, e da sua conseqüente e gradual passagem de uma estrutura matrilinear-feminina para patrilinear-masculina. Na época Shang (sécs. -15(?) -11), quando surgem os indícios mais antigos de que dispomos desta escrita chinesa, os pictogramas vão perdendo suas características originais, e sua estrutura será motivo para conjecturas por parte dos letrados posteriores. Quanto à edição dos textos, sabemos que na dinastia seguinte - os Zhou (secs. -11 -3) - haviam inúmeras bibliotecas responsáveis por preservar estes escritos antigos (originais ou re-copiados), mas o número de variações pictogramáticas multiplicou-se de modo inaudito, tornando ainda mais complexa a transmissão textual nesta época. Uma edição concisa e comentada de textos antigos teria que esperar a chegada de Confúcio (sécs. -6 -5) para ser organizada.

Para entendermos a transformação social que afetou os antigos chineses torna-se necessário, portanto, investigar as possíveis contradições que aparecem nesta antiga textualidade. Os textos resgatados por Confúcio aparentemente dão uma grande ênfase nas figuras masculinas de sua história, mas ele próprio usava termos neutros para designar a possibilidade de alguém acender a sabedoria - ou seja, tanto homens quanto mulheres poderiam consegui-la. Além disso, se os escritos históricos (como o Shujing e o Chunqiu) são privados da presença de figuras femininas, o tratado das poesias - Shijing - e o texto cosmológico fundamental, o Yijing, abundam em indicações da importância da mulher na sociedade antiga.

Estes fragmentos textuais não podem ser menosprezados: na verdade, eles mostram que numa época passada havia uma maior liberdade para as mulheres, uma possibilidade de se expressar que aos poucos foi sendo podada pela gradual masculinização da sociedade. Ainda assim, este processo não foi total nem absoluto, e o imaginário chinês continuou a manter reminiscências marcadamente femininas em sua constituição. Um deles, por exemplo, é o da deusa Nuwa, que teria criado os seres humanos e salvo a terra em ocasiões de calamidade. A escola dos daoístas (surgidos na mesma época de Confúcio) privilegiava o culto a Terra (parte feminina do universo), por entender que ela é que gerava, alimentava e mantinha a vida.

De modo geral, as concepções cosmológicas da época incorporaram a necessidade de equilíbrio entre os dois sexos como reproduções micro-cósmicas de uma realidade universal, a da relação Yang (masculino) - Yin (feminino), as coordenadas gerais da realidade que geram o processo de oposição complementar definitivo (Taiji). As causas de um movimento que leva a gradativa submissão feminina na sociedade chinesa devem ser encontradas, portanto, em fatores sociais e econômicos cuja estrutura de longa duração mascara de modo relativamente eficiente o papel da mulher numa antiguidade mais remota.


O Período dos Han
Mesmo assim, durante a dinastia Han (sécs -3 +3), a questão da mulher não estava de modo algum consolidada. Enquanto sabe-se que nas elites as mulheres eram sujeitadas a casamentos acertados e a privação da liberdade individual, os críticos confucionistas apontavam a liberalidade das camponesas, algumas vezes de modo crítico, outras com uma tolerância veladamente simpática. Além disso, mesmo entre os letrados existia uma discussão aprofundada sobre o papel da mulher na sociedade, ponto que Confúcio não teria esclarecido devidamente em seus escritos. Um dos primeiros textos a tratar especificamente disso foi o de Liu Xiang (sec. -1), o Lienu ZhiZhuan (Biografias de Mulheres Ilustres), em que apresentava modelos representativos de mulheres boas, más, dignas, perversas, etc. Um caso à se notar é a biografia da mãe de Mengzi, o principal seguidor de Confúcio. Ela teria arrumado empregos diferentes, e mudado de casa três vezes até conseguir morar perto de uma escola, podendo dar uma educação melhor para o filho. Note-se que o que se destaca aqui não é apenas a abnegação pela família, mas antes de tudo, a sua atitude combativa, e a disposição total em enfrentar os possíveis preconceitos e a intolerância machista. Independente, a mãe de Mengzi era uma figura de destaque à qual Liu Xiang não deixava de prestar respeito e admiração.

O Lienu ZhiZhuan serviu como base para a educação feminina e foi amplamente difundido entre as gerações seguintes, mas, apesar disso, o machismo continuou sendo uma força ascendente nesta sociedade. No século +1, surgiu um outro manual específico para a conduta da mulher, conhecido como Nujie ou Nujing, escrito por uma das mais famosas letradas chinesas, Banzhao.

Deve-se admitir que esta mulher possuía características especiais em sua época: leitora com vasto conhecimento, historiadora de mão cheia, intelectual ativa e ainda mãe de família, Banzhao começou sua carreira literária finalizando o texto da obra histórica principal dos Han posteriores, o Hanshu, iniciado anteriormente por seu irmão Bangu. Depois disso, uma série de problemas familiares levaram-na a refletir sobre o problema enfrentado pela condição da mulher na época, e o resultado foi a publicação destas conclusões (e conselhos) no Nujie. A leitura desta obra, não muito extensa, é, no entanto, inevitavelmente polêmica. Em algumas partes Banzhao deixa entrever a necessidade da mulher submeter-se a uma condição inferior, demonstrar docilidade e ignorância; em outras, afirma que a mulher é a outra metade que sustenta o mundo, e por isso tem direitos iguais aos do homem. Afirmava ainda que as mulheres deviam estudar e ser intelectuais (!). Tais paradoxos nos levam, por conseguinte, a pensar se a obra não foi adulterada ou se estas observações aparentemente contraditórias não seriam resultado de uma compreensão singular sobre a sociedade que hoje nos escapa.

Afinal, os dados de que dispomos desta época nos apontam para uma condição feminina multifacetada. As mulheres (junto com os homens) tinham que enfrentar, muitas vezes, o casamento arranjado; ao marido era permitido uma poligamia relativa (a primeira esposa era considerada principal,e as outras concubinas); ao passar de uma família para outra, viravam filhas dos sogros, e a eles deviam servir; por fim, sua mobilidade social sofria várias restrições. No entanto, estas mesmas mulheres tinham o direito de recusar pretendentes; herdavam os bens do marido, e podiam se separar dele - o divórcio é conhecido e aceito na China desde época imemorial, embora não fosse muito bem visto - e continuavam a ser objeto de culto em diversos rituais religiosos populares, que preferiam usualmente invocar a "grande mãe" ou a "mãe terra". As mulheres podiam, inclusive, participar de vários rituais e sacrifícios familiares e imperiais, função considerada sagrada na manutenção da ordem social e cósmica. Estas imagens tão diversas nos apontam a necessidade de tomar cuidado com uma avaliação de conjunto pejorativa da sociedade chinesa de então; lembremos, ainda, que estas fontes de que dispomos são escritas por uma elite intelectual, e podemos pressupor que entre as classes mais baixas, a flexibilidade das normações ideológicas podia ser bem maior (haja visto que, vez por outra, o povo surge nestes escritos como sendo "licencioso", ou ainda "rude" e desconhecedor de muitas das regras sociais "ideais").


Transições, mudanças e mais contradições aparentes
O tempo pós Han continuaria a construir um panorama complexo para entender o papel da mulher na sociedade chinesa. Longe de ser apenas a mãe de família ou a filha submissa, as mulheres chinesas atuavam em sua sociedade de modo ativo e altivo, como nos indicam alguns acontecimentos históricos e sociais que marcam um longo período de transformação da sociedade ate a época Tang e Song. Figuras isoladas como a de Fa Mulan (450 d.C.) - guerreira indômita que combateu os hunos, virou um dos poemas mais famosos da China e depois foi transformada em desenho animado pela Disney - não nos dão uma idéia do conjunto, mas servem de exemplo para as transformações que analisaremos.

O primeiro destes acontecimentos envolve o aprofundamento dos chineses na alquimia (gerenciada principalmente pelos daoístas) que difundem novamente a idéia do equilíbrio entre o "céu e a terra", ou seja, de que homem e mulher deveriam ser postos como iguais num cosmo cuja existência dependia desta articulação fundamental. Os textos de autores como Ge Hong (Baopuzi), por exemplo, defendiam o exercício de práticas sexuais em que o feminino tinha papel preponderante, governando o ritmo da relação e obtendo, a partir disso, benefícios decisivos para saúde. A alquimia sexual, visando atingir o acúmulo do qi (energia) pregava claramente, inclusive, que uma relação sexual saudável era aquela em a mulher atingia vários orgasmos enquanto homem buscava atingi-lo sem ejacular - e apenas uma vez, se fosse o caso. Tal concepção é notável, ainda hoje, em qualquer época ou civilização.

A chegada do Budismo também propiciou mais um adendo a esta valorização do feminino na sociedade. Esta filosofia pregava uma igualdade sexual que abria a porta dos monastérios a presença de mulheres, sofrendo concorrência apenas dos daoístas (cujas organizações eram bem mais restritas em termos numéricos). Sua rápida absorção popular indignou os confucionistas, que entendiam que este tipo de discurso vago poderia afetar os costumes da sociedade, e que a visão budista era por demais fantasiosa para se assentar como proposta intelectual.

A preocupação confucionista pautava-se muito mais na própria mediocridade de seus autores do que em outra coisa qualquer. Foi uma época em que grande parte dos pensadores desta escola - com notáveis exceções, como Hanyu - foram fracos argumentadores e tendiam a uma monótona repetição de conteúdos deturpados. Somente nos fins dos Tang - mas principalmente na época Song - que se deu uma revisão geral dos discursos da doutrina através de grandes autores como os irmãos Zheng e Zhuxi, mas suas preocupações se dirigiram muito mais a questões metafísicas e cosmológicas do que propriamente aos problemas sociais.

A época Tang mostrou a continuidade destes paradoxos. Uma literatura de contos surgida nestes tempos, por exemplo, mostra histórias fantásticas ou pitorescas, muitas envolvendo mulheres em condições não muito favoráveis, e abordam temas diversos como traição, divórcio, etc. O tom de algumas delas beiram um estilo Nelson Rodrigueano de denúncia, escândalo e preconceito social. Um outro manual, o Nu Lunyu, de Song Ruoxin - ou "Analectos para mulheres" -, reproduzia o tom original da obra de Confúcio, mas adaptava-o às necessidades de educação feminina. Mas seria o período Tang um momento de recrudescimento do machismo, ou estes escritos fazem parte, justamente, de uma literatura engajada na difusão de uma ideologia machista?

Afinal, os Tang se destacaram por serem tolerantes, cosmopolitas e abertos ao estrangeiro. A representação do feminino na arte também difunde-se de modo especial, e datam deste período fabulosas estátuas de cerâmica ou pedra que mostram mulheres nobres, cortesãs, musicistas, dançarinas, todas elas bem rechonchudas - este era o ideal de beleza nesta sociedade.

Outro fator ligado ao budismo iria se transformar num dos casos mais intrigantes da historia da religião: a mutação de um bodisatva masculino (uma emanação salvadora de Buda, Avalokitesvara) numa deusa extremamente popular entre os chineses, Guanyin. Despidos de preconceitos em relação à idéia de reencarnação, os chineses haviam adotado o culto a um bodisatva que originalmente veio da Índia na forma de homem; no entanto, a historia de uma jovem menina, cujos poderes para realizar milagres ficaram bem conhecidos, fizeram com que sua figura fosse associada a uma encarnação deste Buda - e sua forma feminina, por conseguinte, foi (e ainda é) muito mais venerada do que o "original macho". Esta transformação pode ser rastreada na época Tang, mas atingiu sua realização plena durante os Song. A lenda de Miao Shan, princesa piedosa sincretizada com Guanyin seria de uma época posterior - a dinastia Yuan, que acompanharemos adiante.

Mas é inevitável que, neste período, não façamos um comentário derradeiro sobre a figura inesquecível de Wu Zetian (683-705). Esta mulher foi a primeira imperatriz oficial da China, e quaisquer crimes que possam ser imputados à sua figura - traição, conspiração, luxúria - nada mais eram do que práticas comuns (e toleradas) entre os homens. Isso não basta, contudo. Sabe-se (e é preciso dizer) que seu governo foi um dos melhores no campo político, econômico, e que muito beneficiou o povo - sendo que tais coisas foram narradas por historiadores homens. Wu ainda aperfeiçoou o sistema de exames públicos para admissão na burocracia imperial, desenvolvendo um método ainda mais eficiente de recrutamento e qualificação de funcionários, e aumentando nitidamente sua eficiência. O reinado seguinte do brilhante Xuanzong deve muito aos empreendimentos desta soberana.

O que percebemos neste momento, pois, é uma inevitável tensão entre uma ideologia que queria ser dominante - pautada na tentativa de uma instauração definitiva da misoginia -, e um vasto movimento intelectual e popular que não aceitava comodamente tais exigências. Este conflito faz perceber que, criticamente, a história da mulher na China não pode ser lida de modo absolutamente linear e evolutivo. Muito do que pode ser dito sobre estes períodos mais antigos se baseia numa literatura de corte que, nem mesmo entre a elite, era aceita de forma ampla.


As origens de algumas práticas nefastas
No entanto, se seguem aos Tang a dinastia Song, marcada por características sombrias e introspectivas. Os Song produzem algumas das mais fascinantes obras de arte chinesas, de pinturas a porcelanas; a filosofia confucionista, como foi dito, foi alimentada pelo potencial intelectual de figuras fundamentais como Wang Anshi, dos irmãos Zheng e do indefectível Zhuxi; mas esta mesma dinastia se fecha para o mundo exterior, e inaugura (ou pelo menos, traz à tona) algumas das piores práticas sociais da história mundial.

Uma delas é a revelação trágica do infanticídio, praticado principalmente por famílias pobres e envolvendo, na maior parte dos casos, meninas indesejáveis. Denunciada e combatida pelo artista e intelectual Su Dongpo, esta prática já ocorria desde muito na China, mas ela ficou patente numa época de fome severa e escassez. No entanto, a atitude humanista deste artista e de muitos colaboradores envolvendo obras de caridade ajudou a mitigar o problema, embora não o resolvesse. Su mostrou esta faceta perversa de uma sociedade que se masculinizava e empobrecia.

Durante os mesmos Song se populariza também a estética do enfaixamento dos pés, tão aterradora e deformante, resultado destas inevitáveis buscas pela beleza que resultam em acidentes vis na psicologia humana. O estudioso Yu Huai, do século 17, estudou profundamente a questão para sondar suas origens, e as datou em torno do século 12, embora somente no domínio mongol elas tenham se desenvolvido plenamente. Para aqueles que desconhecem, o enfaixamento dos pés consistia em amarrar panos no pé das meninas, desde a mais tenra infância, para que seus pés adquirissem um tipo especial de deformação, que era considerada extremamente atraente e delicada. Embora muito difundida entre a elite urbana, esta prática nunca encontrou ressonância entre as classes mais populares, posto que a deformação impedia um andar normal e a execução de trabalhos comuns.

Um comentário em específico deve ser feito sobre esta prática vil: ela resulta, como foi dito, desta perversa busca por uma realização estética que ignora as condições físicas normais dos seres humanos, mas não pode ser utilizada como um índice de civilidade. Afinal, os chineses foram criticados como bárbaros, pelos europeus, por esta moda ainda existir no século 19; no entanto, na mesma Europa da época, as mulheres utilizavam espartilhos que deformavam suas costelas e não raro provocavam tuberculose. Mesmo um grande sinólogo como J. Fairbank, no seu livro "China, uma nova historia" (pgs. 168-171), achava que o enfaixamento de pés era tão abominável que só podia ser comparado à amputação do clitóris praticada em alguns lugares da África, mas não as práticas estéticas européias!!! Para quem dedicou apenas 4 páginas e meia sobre a questão feminina num manual sobre historia chinesa, tal indicativo deve ser apontado de modo claro. Infelizmente, pois, a China neste caso servia mais uma vez para mostrar as inevitáveis contradições do mundo ocidental.


A misoginia se acentua
Voltemos ao período Song e a subseqüente dinastia, os Yuan (1238 -1368) - que marcam o domínio mongol sobre a China. Um recrudescimento total nas relações sociais foi posto em marcha, dado o aprofundamento dos problemas entre grupos e etnias provocados pela presença do domínio estrangeiro. A sociedade chinesa foi posta a ferros numa hierarquia extremamente severa e desfavorável, e a condição da mulher piora de modo absoluto, dado que a mentalidade mongol sobre o feminino não era das mais exemplares: afinal, os mongóis se orgulhavam dos seus haréns repletos de nativas e estrangeiras submetidas ou capturadas - algo que os chineses já praticavam de algum modo anteriormente, posto que desde a época de Confúcio já se ouvia falar de concubinas-, mas que agora era levado ao extremo como um indicador de "sucesso social"; entre os chineses, afinal, existiam regras sobre quem era a primeira esposa, quantas mulheres um homem poderia ter, etc. Nada disso interessava aos mongóis: quantidade importava mais do que o tratamento dado a elas, e um nobre se media por seus feitos em batalha ou por quantas "esposas" possuía no seu harém. Não foi o próprio Gengis Khan que afirmou: "o maior prazer que um guerreiro pode conhecer é vencer seu inimigo, vê-lo fugir, tomar seus bens, fazer chorar sua família e violar suas esposas e filhas"?

Com esta mentalidade em vista, não é de se estranhar que o tratamento dado ao feminino apenas piorasse. Mas talvez o aspecto mais perverso neste processo fosse a concordância tácita de uma elite chinesa que via nisso a chance de afirmar suas praticas misóginas. Creio que podemos entender a já citada redação da lenda de Guanyin, neste período, como uma tentativa de reagir a essa masculinização geral da sociedade, buscando no culto a deusa uma forma de revalorizar a figura feminina.

A questão principal pode ser caracterizada, portanto, como uma mudança de foco em relação à defesa (ou não) da condição feminina. Se institucionalmente a ideologia incorpora de vez a condição subalterna da mulher, a luta agora seria por revalorizá-la, buscando inverter novamente um processo milenar de embate mental e social.


O advento dos Ming e dos Qing
Pois em 1368 os chineses retomam o controle de sua sociedade, expulsam vergonhosamente a pé os mongóis para fora de suas fronteiras, implementam uma sociedade altamente militarizada, mas que mantém alguns dos mecanismos repressivos da dinastia anterior - e neste ponto, a posição das mulheres não se altera. De fato, a tendência dos Ming foi a de se fechar em si mesmos, ensejando uma sociedade xenófoba, receosa da presença de elementos estrangeiros, e extremamente vigiada.

Tal tendência só favorecia o crescimento da intolerância, uma banalização de praticas chauvinistas e um temor constante de transformação. Exemplos clássicos da mentalidade pequena e fechada da sociedade Ming são a reconstrução da grande muralha e o abandono das expedições marítimas, manifestações claras de um desejo iníquo de fechar-se para o mundo. A presença dos estrangeiros europeus, que começavam a espalhar-se pelo Oriente por meio das navegações, iria forçar constantemente esta posição insustentável.

Sociedades fechadas e repressoras acabam sempre criando novos crimes, e transformando em devassidão o que era tido como natural. Um resultado sintomático desse homocentrismo foi o surgimento de uma literatura erótica vasta, que buscava tanto recuperar o velho sentido do sexo saudável dos daoístas, quanto criar uma perspectiva alternativa [pornografia] àquela difundida no meio social. O romance "Tapete de carne" (Ropotuan, de Liyu) é um exemplo destes escritos, embora seu final tenha um inevitável cunho moralista. Nele, aparecem os mais diversos tipos de práticas sexuais, mas conceitos usuais da mentalidade comum o contaminam (como o desejo inequívoco de um dos personagens em querer aumentar o tamanho do pênis, problema tipicamente machista). No entanto, um vasto grupo de textos deste gênero mostra que os discursos podiam ir mais longe, como podemos constatar no livro de Robert van Gulik, "A vida sexual na China antiga" ou nas diversas obras de Pierre Kaser, especialista dedicado à descoberta e tradução destes textos.

A literatura institucional produziu, no entanto, dois manuais dedicados à educação feminina: um deles, chamado "Lições domésticas", foi escrito pela imperatriz Xu (mulher de um soberano Ming), e se consagra a ditar as regras de bom comportamento de uma mulher da corte, seu papel submisso e seus deveres familiares. Seu trabalho foi complementado por outra pérola de misoginia, escrita por madame Liu, mãe de um grande letrado da época. Conhecido como "Modelos para uma mulher", ela descreve igualmente o que deveria (e o que não deveria) ser feito ou praticado por uma dama. Surpreende-nos, pois, constatar que estas autoras incorporaram por completo a concepção do machismo dominante e passaram a trabalhar em seu favor, utilizando dos instrumentos intelectuais disponíveis (a escrita, um confucionismo deturpado, uma complacência misógina, etc.) para difundi-lo.

Uma sociedade com tais características e que busca, ainda, fechar-se ao mundo exterior não poderia, de fato, ser bem sucedida em absoluto. Sua falta de visão política favoreceu a derrocada da China, novamente, para os nômades vindos do norte, agora sob a égide do Jurchen - doravante sinizados como Dinastia Qing, ou manchus, instalada no país a partir de 1644.

Nada, porém, parece colaborar numa revitalização da condição feminina na sociedade, ao contrário: com exceção de vagos protestos dos Qing contra o enfaixamento dos pés, este parece se popularizar, atingido uma parcela pobre da população que deseja negociar mais vantajosamente o casamento (ou venda) de suas filhas; os mercados de concubinas crescem, e se aperfeiçoam; o aumento da população barateia ainda mais o custo da mão de obra, e o valor humano diminui, refletindo-se diretamente na mulher. Pode-se dizer que o período manchu foi economicamente eficaz até o final do século 18, mas em nada ele favoreceu um aprofundamento crítico nas condições sociais. Romances populares como "O sonho do quarto vermelho", de Cao Xueqin, trazem um aperfeiçoamento notável na literatura, mas pouco acrescentam - senão no uso da pornografia como recurso estilístico - ao entendimento da condição feminina. Somente após as terríveis crises que se iniciam no século 19, a intelectualidade chinesa começa a prestar atenção na sua incapacidade de reagir aos perigos externos, nas idiossincrasias de sua sociedade, e como conseqüência disso temos uma tímido, porém promissor, início de uma análise mais consciente sobre o papel social da mulher.

Deve-se notar que a última soberana Qing, a imperatriz Cixi, foi um exemplo emblemático destas contradições latentes no fim da China Imperial. Hábil política e manipuladora, ela conseguiu controlar os destinos da dinastia em sua fase agonizante, mas a lançou num completo processo de estagnação e desagregação. Os comentaristas deste período viam a situação por ângulos diversos: alguns achavam que tal situação de crise era resultado, justamente, de haver uma mulher no poder; outros, porém, entendiam que o papel do feminino na sociedade não podia ser medido por um exemplo negativo, mas que o caso demonstrava, de maneira inegável, que as mulheres não recebiam uma educação adequada em termos políticos, sociais e humanísticos.


A entrada da China na modernidade
Ao se debruçarem sobre os problemas da China, os republicanos, que assumiram o poder em 1911, encontraram um panorama complexo e difícil, estraçalhado por guerras civis, ameaças estrangeiras e por uma cultura em muitos pontos retrógrada e reacionária. Não é possível transformar uma cultura milenar da noite para o dia, e esta constatação fatal mostrou a grande quantidade de trabalho e tempo que os chineses teriam que empregar para se reinventarem.

Creio que entramos num domínio no qual três sugestões cinematográficas são válidas para termos uma idéia do que era a época republicana na China: a primeira, o filme "Lanternas vermelhas" (chinês), que mostra a difícil vida de uma menina cujo casamento é arranjado com um desconhecido, torna-se prisioneira de uma casa cheia de cômodos separados e é obrigada a disputar a atenção do marido com as outras esposas - com extrema sutileza, o diretor Zhang Yimou apresenta-nos uma complicada época de transição, em que uma cultura milenar buscava preservar, em meio as revoluções da modernidade, suas características mais duras; o segundo filme seria "O pavilhão das mulheres" (americano), de William Dafoe - nesta película, adaptada de um romance de Pearl Buck, uma mulher decide arrumar uma segunda esposa para seu marido, talvez querendo dar férias para si mesma dos seus deveres de esposa; no entanto, ela termina se apaixonando por um padre ocidental, e tudo se complica ainda mais quando seu filho, um revolucionário comunista, apaixona-se pela nova esposa do pai. Enfim, um conjunto de situações que mostram a inevitável tensão de uma sociedade na qual a mulher busca novos espaços, mas não sabe qual direção seguir; por fim, uma historia real, "O amante da China do norte" (Francês), de Marguerite Durras - baseado em sua autobiografia, o filme conta a história de autora, passada no Vietnã colonial, quando ela tem apenas 15 anos e se apaixona por um rico filho de comerciantes chineses - o casamento impossível, a visão sobre amor e relacionamento, tudo é permeado pela estrutura pesada da sociedade tradicional chinesa, ainda que situada no estrangeiro.

A conclusão um tanto quanto inevitável é de que a Republica operou muito pouco no sentido de valorizar socialmente o papel da mulher, mas isso foi conseqüência também do curto tempo que ela realmente existiu em âmbito continental; em 1949, os republicanos foram obrigados a inventar Taiwan quando os comunistas tomam o governo da China por meio da revolução. Neste ponto da história, a contribuição comunista a causa feminina, no conjunto, é digna de nota. O PC chinês fez de tudo para garantir o lugar da mulher como um ser socialmente ativo, independente e com direitos iguais ao do homem. Muitas mulheres se destacaram politicamente neste período recente, e a visão tradicional de submissão feminina foi intensamente combatida. Claro, alguns elementos devem ser notados: o próprio Mao Zedong foi um desses líderes contraditórios que (ou ao menos, afirmam algumas biografias) defendia os direitos femininos, mas que traía suas esposas com jovens camponesas escolhidas - e de preferência virgens, pois isso "renovava o vigor masculino". A última esposa de Mao, Jiang Qing, foi - inclusive - extremamente ativa na política, mas repetiu uma serie de erros de suas antecessoras e, após a morte do marido, foi julgada publicamente como se fosse uma nova Cixi. O que pensar a respeito disso?

Devemos notar, portanto, que as iniciativas do governo comunista visavam inserir a mulher numa visão moderna do mundo do trabalho, orientadas pela ótica da teoria marxista-maoísta. Isso significou um amplo quadro de avanços, mas também de adaptações. Algumas delas marcam nitidamente as diferenças de visões dos chineses em relação ao resto do mundo. Por exemplo: dada à importância da questão do planejamento familiar, o governo foi obrigado a legislar sobre o número de filhos que um casal pode ter, evitando assim o fenômeno da super população; por outro lado, o aborto e o uso de contraceptivos foi amplamente liberado, mas recentemente proibiu-se o uso de exames que possam indicar o sexo da criança - muitos casais abortavam as meninas, posto que preferiam ter filhos homens.

Estas atitudes mostram que há um longo caminho a percorrer para demolir os traços de misoginia encruados na sociedade chinesa, e recuperar um espírito antigo de maior liberalidade e igualdade. Num livro recente, "As boas mulheres da China", Xinran (a autora) apresenta-nos casos diversos da intolerância para com o feminino que ainda persistem na China comunista. Em Taiwan, o discurso tradicional ainda amarra uma visão mais liberal da sociedade (nesta caso, uma outra sugestão cinematográfica sobre a vida moderna em Taiwan é valida: o filme "As coisas boas da vida"). Por outro lado, isso significa apenas visualizar o lado negativo da questão: a China comunista mantém ativos uma série de grupos que lutam pelos direitos da mulher, e neste caso especifico, os avanços das atividades destes grupos parecem muito maiores do que em vários países do ocidente (incluso aí o caso do Brasil).

O que quer que seja dito, enfim, sobre a História da mulher na China, não é fácil de ser estudado, analisado e concluído. A tensão que caracteriza sua trajetória - uma sociedade em que se deu o embate milenar entre a misoginia e a igualdade - está longe de findar, e acompanhar o curso destes acontecimentos significa, por conseguinte, encontrar estes contrapontos tão necessários, sempre, a compreensão de nossa própria história.

"A mulher é a outra metade do mundo", dizia um antigo ditado chinês - como demoramos tanto para entender isso?


Sugestões bibliográficas

Em português, temos apenas referências espaçadas nos manuais de história, e uma ou outra fonte apresentadas na obra de Lin Yutang (algumas estão separadas na página http://amulhernachina.blogspot.com/ ). Em espanhol, temos o livro de Gulik (citado no texto) e um outro titulo muito bom, de Taciana Fisac Badel, "El otro sexo del dragon". Devemos considerar criticamente, porém, este livro: a autora, em alguns momentos, perde de vista os objetivos históricos e faz um trabalho engajadamente feminista - e como foi dito, o problema neste tipo de análise é uma certa intolerância cultural, que projeta sobre a China, de modo atemporal, todas as criticas do feminismo moderno. O mesmo pode ser dito de alguns trabalhos em inglês; quase todos estes trabalhos são muito bons e marcadamente eruditos, mas resvalam nesta tendência a-histórica de lançar sobre o passado a existência de constatações modernas sobre a questão do feminino e do feminismo. Um comentário especial deve ser feito ao trabalho de Lee Swan, que fez uma tradução do livro de Banzhao, "Pan Chao: Foremost Woman Scholar of China”, 1932, e de Anne Kney, que realizou recentemente uma tradução do Lienu Zhizhuan (presente em http://jefferson.village.virginia.edu:8080/saxon/servlet/SaxonServlet?source=xwomen/texts/lienuzhuan.xml&style=xwomen/xsl/dynaxml.xsl&chunk.id=tpage&doc.view=tocc&doc.lang=bilingual ) - ambos trabalhos conscientes, historicamente críticos e que permitem um estudo livre sobre a questão. Sobre os manuais de educação feminina, o livro "Images of women in China" de Bettina Knapp é a recolha de fontes mais acessível existente. Em inglês, encontram-se ainda livros sobre vida social nos fins da China Imperial, como o de Headland, que servem de fonte para um estudo da época; em francês, o site de Pierre Kaser é http://homepage.mac.com/kaserpierre/Echo/PK/Publ.htm, e um bom livro sobre o assunto é de Danielle Ellisseeff, " La Femme au Temps des Empereurs de Chine ", excelente fonte para o estudo da história da mulher. Para terminar, duas bases bibliográficas na internet apresentam um bom número de títulos sobre o assunto:
http://hua.umf.maine.edu/China/womtxt.html e
http://paulrgoldin.com/db3/00258/paulrgoldin.com/_download/GenderandSexualityBibliography.pdf


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