O que é Ideologia?


Ao tomar contato com a obra de Slavoj Zizek (mapa da ideologia e sobre a prática e a contradição), percebemos que as questões sobre a ideologia estão longe de caducarem, apesar do muito que se diz acerca da falência do comunismo, da emergência da globalização, etc. Teses como a de Francis Fukuyama sobre o fim da história venderam uma grande quantidade de livros, mas se verificaram falsas. O mundo está inquieto, buscando novos sistemas para administra as vidas de seus países e povos; o socialismo, na visão de Hobsbawm, está finalmente livre das amarras estalinistas e poderá ocorrer "de verdade"; o próprio Zizek acredita que o modelo chinês superou as contradições do mundo moderno e pode servir de inspiração para a contemporaneidade.

Ao ler estas discussões, resolvi retornar a Confúcio para saber o que ele poderia ter dito ou observado sobre isso que chamamos de "ideologia". Creio que devemos ter um grande cuidado em trabalhar ideologia como sinônimo de "pensamento dominante", como ocorre usualmente; da mesma maneira, interpretar ideologia como um simples conjunto de idéias aproximaria o termo do conceito de cultura, esvaziando-o. Resta-nos ainda um último problema: como o conceito não existia na china antiga, poderia ser inútil buscar algo em Confúcio ou qualquer outro autor para tentar explicar este conceito essencialmente ocidental e relativamente moderno.

Por outro lado, ao carecer de uma definição mais precisa sobre o que seria "ideologia", acredito que se delimitarmos sobre ela uma proposta de interpretação, então, poderemos encontrar intercessões entre as visões de ideologia no ocidente e o que seria uma teoria chinesa-confucionista de ideologia. Isto é reducionista, de certo modo; no entanto, não pretendo também cair na armadilha de estender a análise o conceito a tantas frentes que ele acaba se tornando, apenas, negável ou indefinível. Se a ideologia for tudo, logo, ela nada será; então, precisamos de um norte para nossa investigação.

Uma definição, antes de irmos para Confúcio
Ideologia pode ser traduzido, a grosso modo, como ciência (logos, logia) das idéias - ideo, no sentido de idéia mas também, do que é imaginado. Se aceitarmos esta breve e simples definição poderemos continuar, por conseguinte, propondo que a ideologia é um conjunto de idéias presentes dentro de uma sociedade por alguma razão específica. Neste caso, ideologia seria um sistema dentro de uma cultura, e não seu sinônimo; ela pressupõe que existam sistemas de idéias diferentes dentro de uma mesma sociedade, e que estes concorrem entre si.

Tal concorrência deve ter um propósito: e neste caso, acredito que é a busca de uma supremacia, de um domínio de um grupo sobre outros, dentro da comunidade, por meio da imposição de um sistema de idéias (o seu) sobre os outros. Esta definição que aqui buscamos se aproxima do pensamento marxista, mas não necessariamente o engloba como um todo. As ideologias se prestam a imposição de idéias, mas também, ao desenvolvimento de crenças, leis ou costumes que defendam a harmonia social, a constituição de uma ordem aceita pelas partes da sociedade.

Na china, este poder (qian), que constitui o conjunto de idéias que governam a sociedade são entendidas, nitidamente, como uma via de Mao dupla que compreende tantos as determinações do governo quanto o exercício da vida pública por parte das pessoas. Neste caso, seria possível compreender, por extensão, que Confúcio propunha uma teoria de governo que atende ao nosso conceito de ideologia, seja por se tratar de uma proposta apresentada aos governantes, seja porque ela dependeria, também, da aceitação do povo.

Mas o que seria a ideologia confucionista?
Tradicionalmente - ou ao menos, no senso comum -, a ideologia confucionista consistiria num grupo de ordenações sociais que pregariam a submissão total das pessoas ao poder estabelecido, baseado num conjunto de idéias arcaizantes de sociedade (Li, ou ordem social) estabelecidos no início da dinastia zhou. A ideologia confucionista defenderia uma estrutura imóvel da sociedade, vinculada por relações de poder hierárquicas e paternalistas.

Esta é a visão negativa do confucionismo. Mal compreendido pelo ocidente (e de certo modo degradado pela época final do império chinês), ignora-se que Confúcio defendia um extenso projeto educacional, para capacitar as pessoas a atuarem mais conscientemente na sociedade. Sua teoria de governo ideal incluía, sempre, a prioridade em atender os anseios e as necessidades do povo. Longe de ensinar que as pessoas deveriam somente obedecer, Confúcio advogava que elas deveriam ser leais, sim (o que é diferente de submissão), contato que seus governantes fossem corretos - e para tal, seria indispensável que ela soubessem diferenciar o que seria apropriado ou não numa conduta política.

O projeto confucionista, centrado na sabedoria do ren (o humanismo), apregoava, por conseguinte, uma autonomia consciente do indivíduo- mas que ele compreendesse, igualmente, sua inserção numa sociedade organizada por regras e leis, necessárias a estruturação de uma ordem maior. Esta foi a razão pela qual mencio, seu discípulo, chegou a defender abertamente que, no caso dos governos serem cruéis para com um povo, eles deveriam ser derrubados e substituídos:

Disse Mêncio: "Quando prevalece no reino o governo justo, os príncipes de pouco valor e virtude mostram-se submissos aos de grandes predicados e de subido valor. Quando predomina o mau governo, os pequenos são sujeitos aos grandes, os fracos servem os fortes. Estes dois casos são lei do Céu. Os que se harmonizam com o Céu são poupados; os que se rebelam contra o Céu têm de perecer". [...]

Mas o texto que julgo central, em nossa análise, é o capitulo 12 do lunyu (diálogos), em que há uma coletânea bastante especificam de citações sobre a questão do governo e da ideologia. A partir de trechos selecionados, buscarei identificar alguns pontos fundamentais a esta nossa análise sobre o que seria a ideologia confucionista, e ao final, a importância desta pequena introdução para uma compreensão da realidade atual.

Analisando o capítulo 12 do Lunyu
12.1 Yan Hui perguntou sobre humanidade. O Mestre disse: "A prática de humanidade resume-se a isto: domar o eu e restaurar os ritos. Doma o eu e restaura os ritos por apenas um dia, e o mundo inteiro irá juntar-se à tua humanidade. A prática de humanidade tem origem no eu e não em outra pessoa".
Yan Hui disse: "Posso perguntar quais passos devem ser dados?" O Mestre disse: "Observa os ritos da seguinte maneira: não olhes para nada que seja impróprio; não dês ouvidos a nada que seja impróprio; não digas nada impróprio; não faças nada impróprio".
Yan Hui disse: "Posso não ser muito inteligente, mas, com vossa permissão, procurarei fazer o que dissestes".

COMENTÁRIO: o primeiro ponto fundamental para o estabelecimento de uma ordem social harmoniosa, segundo Confúcio, é a questão da individualidade consciente. Domar o eu significa o controle sobre as emoções, os desejos e os interesses particulares por parte das pessoas. Por conseqüência, isso implica em não flertar com aquilo que pode ser inapropriado, pois tal condição afeta diretamente o restante da sociedade. Isso é fundamental para ordem; do mesmo modo, a ordem é essencial para o bom governo da sociedade.

12.2 Ran Yong perguntou sobre humanidade. O Mestre disse: "Quando estiveres fora de casa, comporta-te como se estivesses diante de um importante convidado. Conduz o povo como se estivesses realizando uma grande cerimônia. Aquilo que não desejas para ti mesmo não imponhas aos outros. Não permitas que o ressentimento se imiscua nos assuntos públicos; não permitas que o ressentimento se imiscua nos assuntos privados"
Ran Yong disse: "Posso não ser muito inteligente, mas, com vossa permissão, procurarei fazer o que dissestes".

COMENTÁRIO: neste segundo trecho, fica claro que a imposição de uma ordem social divide a questão da administração publica em duas instancias: aquela que diz respeito diretamente ao povo, e por isso se baseia nas leis, e aquela que depende das decisões do individuo, ao qual Confúcio chama a atenção: não se deve administrar o publico tendo por base interesses privados ou pessoais. Isso significa que o individuo não deve se anular perante o poder, bem como não deve também se sobrepor a ele, bem como implica em que não deve existir uma submissão total por parte das pessoas, mas sim, lealdade, sinceridade e dedicação.

12.5 Sima Niu estava triste: "Todos os homens têm irmãos; só eu não tenho nenhum". Zixia disse: "Escutei isto: vida e morte são decretadas pelo destino, riquezas e honrarias são conferidas pelo Céu. Desde que um cavalheiro se comporte com reverência e diligência, tratando as pessoas com deferência e cortesia, todos os habitantes dos Quatro Mares são seus irmãos. Como poderia um cavalheiro queixar-se de não ter irmãos?"

COMENTÁRIO: não há um destino pré-determinado para os indivíduos, mas eles devem construí-lo por meio de uma ação social consciente. Isso implica nas regras de relacionamento que administram as tensões entre os indivíduos, bem como seu processo de integração. Alguém que conheça as regras das interações sociais pode, por conseguinte, estabelecer laços em qualquer lugar.

12.7 Zigong perguntou sobre governo. O Mestre disse: "Alimento suficiente, armas suficientes e a confiança do povo". Zigong disse: "Se tivésseis de chegar a bom termo sem um desses três, qual descartaríeis?" - "As armas". - "Se tivésseis de chegar a bom termo sem um dos dois restantes, qual descartaríeis?" - "O alimento; em última instância, todo o mundo acaba morrendo um dia. Mas, sem a confiança do povo, nenhum governo se mantém".
COMENTÁRIO: esta passagem é importantíssima. Ela demonstra que um governo depende muito mais de seu povo do que o povo, propriamente, depende do seu governo. Se isso for compreendido, as relações de poder se invertem, e os governantes compreendem o seu papel de servidores públicos. Este discurso é uma constante no shujing, e os soberanos antigos fazem questão de frisar a sua condição secundaria na sociedade. Curiosamente, pois, um governo é tanto melhor quanto menos interfere na sociedade, e quanto mais prepara seus cidadãos para viveram em equilíbrio, por meio da educação.

12.8 Ji Zicheng disse: "Uma pessoa é um cavalheiro simplesmente por sua natureza. De que serve a cultura?" Zigong disse: "Senhor, o que acabais de dizer é deveras deplorável. 'Uma parelha de quatro cavalos não consegue alcançar uma língua solta'. Natureza é cultura, cultura é natureza. Sem o pêlo, a pele de um tigre ou de um leopardo é exatamente igual à de um cachorro ou à de um carneiro".
COMENTÁRIO: neste trecho, fica patente que a responsabilidade social é atribuída ao individuo por meio da cultura; assim, a ideologia confucionista propõe a necessidade constante de atuar sobre a cultura e a educação - sem o que, as pessoas começam a acreditar em sorte, azar, acaso, dons, e esquecem-se de utilizar a razão.

12.9 O duque Ai perguntou a You Ruo: "A safra foi fraca; estou quase sem verbas, O que devo fazer?" You Ruo respondeu: "Por que não cobrar um dízimo?" O duque Ai disse: "Nem mesmo o dobro disso resolveria minhas necessidades; de que serviria um mero dízimo?" You Ruo respondeu: "Se o povo tem o suficiente, como poderia seu senhor não ter o suficiente? Se o povo não tem o suficiente, como poderia seu senhor ter o suficiente?"
COMENTÁRIO: a harmonia social se obtém, portanto, pela boa administração. A má administração, calcada na exploração ou na desigualdade criam um panorama perigoso de instabilidade e crise. Este raciocínio é básico e simples, mas dificilmente aplicado. Contudo, na maior parte das instituições de uma sociedade razoavelmente organizada, esta condição ocorre de modo natural, propiciada pela consciência sobre os recursos de que se dispõe para conduzir a vida do povo.

12.10 Zizhang perguntou como acumular poder moral e como reconhecer a incoerência emocional. O Mestre disse: "Coloca a lealdade e a fé acima de tudo, e segue a justiça. É assim que se acumula poder moral. Quando se ama alguém, deseja-se que viva; quando se odeia alguém, deseja-se que morra. Agora, se desejares simultaneamente que a pessoa viva e que morra, este é um exemplo de incoerência".
Se não por amor à riqueza,
Então por amor à mudança...

COMENTÁRIO: em outra parte, Confúcio dizia: retribui o bem com o bem e o mal com justiça. As regras da boa ordem social estão estabelecidas, e devem ser seguidas; se não for assim, e se o exemplo vem do governo, este deve ser mudado. Eis a razão pela qual um governo sempre deve dar os exemplos, inspirando a população a segui-lo. Se estes forem corretos, como poderão ser negados?

12.11 O duque Jing de Qi perguntou a Confúcio sobre o governo. Confúcio respondeu: "Que o senhor seja um senhor; o súdito um súdito; o pai um pai; o filho um filho".
O duque disse: "Excelente! Se, de fato, o senhor não for um senhor, o súdito não for um súdito, o pai não for um pai, o filho não for um filho, não poderei ter certeza de mais nada - nem mesmo de meu alimento diário".

COMENTÁRIO: a ideologia defende o cumprimento adequado dos deveres sociais, de modo que haja o bom andamento das coisas. Estes, contudo, não são uma prisão; ao contrário, eles são a base da mudança, e devem ser a garantia dos direitos de quem os cumpre zelosamente. Quando não há respeito à conduta correta, então há descalabro, violência e conflito. As leis se fazem respeitar não pela força, mas pelo exemplo e pela educação. Se cada um faz a sua parte, então, tudo resultará bem; o problema em si, porém, é saber qual a parte de cada um. Esta condição é tremendamente banalizada nos dias de hoje, em que se reduz drasticamente a ação social do individuo a um mero ato casual e pouco relevante para o conjunto da sociedade.

12.13 O Mestre disse: "Posso julgar processos judiciais tão bem quanto qualquer um. Mas eu preferiria tornar os processos judiciais desnecessários".
COMENTÁRIO: numa sociedade instruída, os crimes diminuem, e menos leis são necessárias. Por estas razoes a educação é fundamental, e deve ser patrocinada pelo governo: ela incute as noções de Li (ordem) necessárias ao bom andamento social. Esta educação deve ser, porém, formadora, e não apenas impositória; povos limitados por deficiências educacionais não conseguem atingir o equilíbrio nas relações sociais, e a razão do grande desenvolvimento de algumas civilizações é o compromisso claro com a formação de uma consciência pública.

12.14 Zizhang perguntou sobre governo, O Mestre disse: "Pondera sobre ele incansavelmente. Leva-o a cabo de forma leal".
COMENTÁRIO: governar é buscar um estado de equilíbrio dinâmico, pois toda a sociedade que se desenvolve encontra novos problemas e desafios. Ter consciência disso é o primeiro passo para embasar as mudanças; para levá-las a cabo, porem, é necessário a confiança e o interesse no povo.

12.15 O Mestre disse: "Um cavalheiro amplia sua aprendizagem por meio da literatura e se refreia pelo ritual; por isso é improvável que cometa erros".
COMENTÁRIO: estudo e costumes são a base da ideologia; o objetivo da ideologia é a harmonia social, por meio do equilíbrio das relações humanas e do governo efetivo, que as viabiliza. É isso que um cavalheiro (o junzi) faz, mesmo que não seja ainda um sábio - é, no entanto, um cidadão completo.

12.17 O senhor Ji Kang perguntou a Confúcio sobre como governar. Confúcio respondeu: "Governar é ser reto. Se diriges com retidão, quem ousaria não ser reto?"
COMENTÁRIO: uma ideologia só pode funcionar, na visão confucionista, se os seus mentores dao o exemplo; e quanto mais correto for o exemplo, melhor será a ideologia e a sociedade. Más ideologias, contudo, também podem dar exemplos e serem seguidas; essas inevitavelmente se destruirão em pouco tempo.

12.19 O senhor Ji Kang perguntou a Confúcio sobre como governar, dizendo: "Suponhamos que eu fosse matar os maus para ajudar os bons: o que acharíeis disso?" Confúcio respondeu: "Estás aqui para governar; qual a necessidade de matar? Se desejas o que é bom, o povo será bom. O poder moral do cavalheiro é vento, o poder moral do homem comum é grama. Sob o vento, a grama tem de se curvar".
COMENTÁRIO: embora o governo tenha o monopólio da violência institucionalizada, ele deve atuar por meio da cultura e da moral. uma ideologia calcada na violência redundará no mesmo.

12.20 Zizhang perguntou: "Quando é possível dizer que um erudito alcançou uma percepção superior?" O Mestre disse: "Depende: o que entendes por 'percepção'?" Zizhang respondeu: "Ser reconhecido na vida pública, ser reconhecido na vida privada". O Mestre disse: "Isso é reconhecimento, não percepção. Para alcançar a percepção, um homem tem de ser talhado em madeira reta e amar a justiça, examinar as palavras dos homens e observar suas expressões, e ter em mente a necessidade de deferir aos outros. Quanto ao reconhecimento, basta assumir um ar de virtude, ainda que comportando-se contrariamente. Mantém apenas uma aparência imperturbável, e certamente obterás reconhecimento na vida pública, e certamente obterás reconhecimento na vida privada".
COMENTÁRIO: aqui, Confúcio define a diferença entre alguém que compreendeu as regras da ordem social e aquele que, por razões culturais meramente estéticas e de fama, se perde em seus valores individuais. O exemplo das pessoas equivocadas é perigoso, pois inspira a ignorância dos outros.

12.21 Fan Chi estava fazendo uma caminhada com Confúcio sob o Terraço da Dança da Chuva. Ele disse: "Posso perguntar-vos como se acumula poder moral, se neutraliza a hostilidade e se reconhece a incoerência emocional?" O Mestre disse: 'Excelente pergunta! Colocar sempre o esforço acima da recompensa: não é esse o caminho para acumular poder moral? Atacar o mal em si mesmo e não o mal que está nas pessoas: não é esse o caminho para neutralizar a hostilidade? Pôr a si mesmo e seus parentes em perigo num súbito ataque de ira: não é isso um exemplo de incoerência?"
COMENTÁRIO: assim, simplesmente, se alcança o equilíbrio e a harmonia no convívio com os outros.

12.22 Fan Chi perguntou sobre humanidade. O Mestre disse: "Ama todos, sem distinção".
Ele perguntou sobre conhecimento. O Mestre disse: "Conhece todos os seres". Fan Chi não entendeu. O Mestre disse: "Promove os homens retos e coloca-os acima dos tortos, para que eles possam endireitar os tortos".
Fan Chi retirou-se. Ele encontrou Zixia e perguntou: "Um momento atrás, estando com o Mestre, perguntei-lhe sobre o conhecimento, e ele disse: 'Promove os retos e coloca-os acima dos tortos, para que eles possam endireitar os tortos'. O que isso quer dizer?" Zixia disse: "Palavras deveras valiosas! Quando Shun dirigia o mundo, escolhendo entre a multidão ele promoveu Gao Yao, e os maus desapareceram. Quando Tang dirigia o mundo, escolhendo entre a multidão ele promoveu Yi Yin, e os maus desapareceram".

COMENTÁRIO: a primeira frase de Confúcio diz tudo; ame a todos sem distinção, o que significa a busca pela harmonia dos seres. Mas amar a todos depende de prática do que é correto também: afinal, o amor e a dedicação ao próximo não podem servir de defesa ou excusa para a realização de crimes. O verdadeiro amor universal protege, de fato, mais do que gera clemência. A presença do governo correto inibe o mal, tanto pelo exemplo quanto pelo temor da justiça justa.

Uma revisão desta ideologia para os dias de hoje
A importância de compreender estas propostas confucionistas reside em seu retorno ao panorama político e cultural das civilizações asiáticas sinizadas. Após as experiências de singapura e taiwan, a china continental resgata hoje os valores confucionistas como uma forma de adaptar-se as transformações do mundo contemporâneo. Jean-Philippe Bejá (Naissance d'un national-confucianisme?. In: Perspectives chinoises. N°30, 1995. pp. 6-11.) observou que o novo confucionismo pode vir a tornar-se, inclusive, um "nacional-confucianismo", realizando a tarefa de redefinir a identidade chinesa perante outras culturas; o artigo de Daniel Bell, The chinese confucian party? também é bastante esclarecedor sobre as contradições da leitura deste confucionismo moderno.

Vimos que a radicalização da proposta original de Confúcio só pode advir, neste caso, de uma simplificação de seus propósitos. Como observamos, as teorias básicas confucionistas de ordem social implicam realmente no estabelecimento de vínculos pessoais, de uma hierarquização nas relações publicas mas, ao mesmo tempo, numa busca de conscientização individual que cria mecanismos de resistência aos desgovernos da aplicação desta mesma ideologia. Confúcio estava ciente de que a ordenação da sociedade depende de regras e valores, mas estes devem ser praticados por meio de uma consciência ética de suas razões e implicações, e não puramente pelo exercício da violência. Esta mesma consciência crítica, inserida dentro desta proposta ideológica, estaria pronta a denunciar os crimes e abusos cometidos por aqueles que se valessem dela para obter favores particulares. Foi o que Confúcio fez com seu discípulo Ran Qiu, quando este se mostrou um mau administrador de interesses vis:

11.17 O chefe da família Ji era mais rico que um rei, e, contudo, Ran Qiu continuava pressionando os camponeses para enriquecê-lo ainda mais. O Mestre disse: "Ele já não é meu discípulo. Tocai o tambor, meus pequenos, e atacai-o: tendes minha permissão".
Ran Qiu já demonstrara, em outra parte do lunyu, que sua compreensão acerca de ideologia confucionista era limitada, incompleta e deturpada:

6.12 Ran Qiu disse: "Não é que eu não goste do caminho do Mestre, mas não tenho a força para segui-lo". O Mestre disse: "Quem não tem a força pode sempre desistir no meio do caminho. Mas tu desistes antes de começar".
Este último comentário de Confúcio é elucidativo: do mesmo modo que ele estimula a abnegação, a dedicação e o esforço intimo tão característicos do povo chinês, ele explícita que mesmo as pessoas educadas podem falhar em seu processo de auto-afirmação na sociedade. Este fracasso íntimo é essencialmente moral e mental, e pressiona o individuo a desenvolver-se ou a apelar para meios escusos. No entanto, esta ideologia imagina que os propósitos equivocados são, de certo modo, contidos por uma maioria que aceita as regras de ordem social como corretas.

Obviamente, pois, este sistema possui falhas ou impossibilidades, que o tornariam utópico se ele não tivesse, de alguma maneira, estruturada a compreensão chinesa de mundo. Esta é uma das razoes que levou françois jullien a chamar a china de uma heterotopia, ou, uma utopia realizada, mas que assusta (justamente por isso). Esta civilização, que se entende confucionista em seus modos sociais, está disposta a aceitar as hierarquias, o esforço educativo, a noção de trabalho redentor e a estrutura dos laços sociais como partes integrantes de sua ideologia, de seu modo de auto-governo que foi analisado, dissecado e compreendido séculos atrás por Confúcio. Tanto quanto ela se distancia no passado, mais ela se afirma como uma tradição intelectual e social testada ao longo de séculos e, por isso mesmo, eficaz. Nem mesmo o marxismo maoísta pode abatê-la inteiramente, e agora a recupera como um elemento fundador de suas idéias e concepções sociais.

Devemos atentar, portanto, que velhas ideologias estão voltando com roupagens novas. O caso chinês é um exemplo único que conjuga uma teoria ocidental com sua própria cultura, mas de um modo tão particular que conseguiu garantir-lhe a continuidade, conquanto no próprio ocidente as mesmas teorias pareçam estar em crise. Na encruzilhada deste futuro próximo, em que novas ordens são buscadas, o modelo chinês parece seguro, e calcado em uma ideologia consagrada e eficaz.

Mas há perigos: a invocação de ideologias antigas pode trazer também fantasmas de intolerância, de medos ancestrais e de preconceitos arraigados. A recorrência ao passado depende de um foco consciente e esclarecido sobre as questões dos tempos antigos, aos quais estas velhas ideologias podem não responder. O próprio confucionismo sabe disso, e precisou viver várias crises para se re-inventar, mantendo seus princípios.

Termino este texto com um poema de Hanxia, que fez uma apologia interessante sobre a ruptura com o "passado ideal":

Antigamente os soldados eram camponeses
Os camponeses eram ricos, e os soldados poderosos
Antigamente os letrados eram camponeses
E os camponeses eram honrados, e os letrados bondosos
Quando separaram as armas da agricultura
Nas casas não faltou grão
Quando se separaram as armas das letras
Os lavradores deixaram de ser instruídos
É difícil ser soldado sem comer
É difícil ser letrado faminto
Ao separá-los se prejudicaram os três
Reunindo-os, reinaria uma ordem uniforme
Queria assinalar aos que tem algum cargo
Que a paz e os distúrbios da sociedade
Dependem disso
(Han Xia)

A consciência social e crítica são a única e verdadeira ideologia.

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