Uma teoria daoísta do sonho


O Mestre não gostava de falar de coisas espirituais.
Conversas, de Confúcio

Zhuangzi sonhou que era uma borboleta. Ao acordar, não sabia se era ele que sonhara ser uma borboleta ou se era uma borboleta sonhando ser ele.
Zhuangzi


O sonho foi a atividade humana que mais motivou a concepção de existência da alma. Ao dormir, o ser humano – no estado mais próximo da morte total – acorda, porém, no mundo do sonho, em que aparentemente pode viver um momento de outra vida. É o sonho, pois, a prova da alma? Na visão daoísta, o que o sonhar representa para os seres?

Confúcio dizia que antes de nos preocuparmos com os mortos, devíamos saber servir aos vivos. Com isso, ele não descartava de modo algum a existência dos espíritos, mas insistia que discutir sua presença e atuação seria uma questão extremamente problemática. O encontro com os ancestrais se dava em ocasiões apropriadas, durante cerimônias que determinavam o trânsito entre os mundos. O próprio Confúcio chegou a afirmar, no Justo Meio: “O poder das forças espirituais no Universo - como se faz sentir por toda a parte! invisível aos olhos, e impalpável aos sentidos, é inerente a todas as coisas e nada escapa à sua influência". No entanto, seriam as forças materiais que regeriam o mundo – e o Tratado das mutações cumpria devidamente este objetivo.

Já os caminhantes eram escapistas, e lhes interessava, justamente, a possibilidade de ausentar-se dos laços que os ligavam a este mundo. O privilégio aos aspectos espirituais do ser, em detrimento dos interesses materiais, focavam a ação humana, na visão dos caminhantes, no desprendimento sensorial e da busca deste “transcendental”, que encontrava no sonho a possibilidade de saída.

O sonho de Zhuangzi mostra, pois, que o estado de consciência em que se encontra uma pessoa acordada é, tão somente, um momento em que o espírito se encontra plenamente ligado ao corpo. Mesmo num momento de devaneio, em que alguém não esta dormindo, mas “se perde em pensamento”, sua alma se transporta para outro lugar, obliterando–lhe os sentidos (mesmo com os olhos abertos), e só retorna mediante o estímulo ou a vontade própria.
Todavia, no momento do sonho, o corpo relaxa seus laços e a alma pode movimentar-se para fora. E para onde ela vai? A teoria de Zhuangzi se torna complexa, neste ponto. Podemos ser uma alma que, ao dormir, transporta-se para outro corpo (no caso, o da borboleta), que está em outro mundo – o do sonho. Porém, podemos também estar acordados neste mesmo mundo, mas apenas em outro corpo – o fato de dormirmos a noite não significa que não seja dia em outro lugar. O sonho, pois, é tão somente a percepção de alguém que está acordado em algum lugar e dormindo alhures. Isso significa que posso estar, inclusive, adormecido, agora, em outra instância, enquanto escrevo; do mesmo modo, estar acordado equivaleria simplesmente a estar sonhando. Mas podemos ir além: se sonhamos ser um tigre, uma outra pessoa, ou mesmo nós numa realidade alternativa, então, podemos ser mais que uma alma; podemos ser várias consciências que operam, paralelamente, em realidades distintas! Se aceitarmos que há um mundo dos sonhos, então, a questão ficaria resolvida: e lá seremos o que quisermos ser. Mas, se supusermos ser uma borboleta sonhando ser gente, deste modo, somos de fato ente, borboleta, o tigre, eu agora, outra pessoa e eu mesmo em um outro lugar cuja única distinção é aquela da consciência que predomina num dado momento. Logo, eu só estou tendo a impressão de estar acordado enquanto escrevo, porque esse eu de agora não fugiu para nenhum outro lugar ou está dormindo em outras formas corporais. Contudo, se esse eu parar tudo e começar a me imaginar em outro lugar, eu estarei lá, e o corpo permanecerá parado, aguardando minha presença.
Por esta razão podemos concluir que, seja o que formos, somos a nossa mente. A distinção das realidades conscientes é, como vimos, uma teorização do escapismo, mas enquanto nos encontramos em um certo mundo, precisamos viver nele. Após a morte do corpo, podemos acordar em outro lugar, mas tal suposição não nos isenta de termos que sobreviver agora.

O Mestre disse: "Estou ficando assombrosamente velho. Passou-se muito tempo desde que vi o duque de Zhou em sonhos pela última vez".
Confúcio

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