Uma civilização sem mitos de criação


Nos tempos antigos, as pessoas moravam em cavernas

Ijing


Paul R. Goldin, escreveu um artigo, “The Myth That China Has No Creation Myth,” (Monumenta Serica, 2008, 56: 1-22), no qual defende o abandono da tradicional teoria de que a China não teria conhecido, em suas origens, mitos de criação. Anne Birell, em seu livro “Chinese Myths” (1999) já reproduzira essa idéia, listando uma série de possíveis mitos de criação chineses.

A meu ver, o problema é claro: há uma necessidade cultural – essencialmente ocidental – que, por meio de justificativas antropológicas, torna inaceitável que uma civilização não tenha mitos de criação, dentro de uma linha de raciocínio que basicamente é Greco-romana-cristã. Por causa disso, tanto Goldin quanto Birell desprezam a documentação confucionista e o desinteresse dos intelectuais chineses pelo tema. Ambos usam exemplos tardios, e no caso de Birell, que cita Zhuangzi, ela utiliza textos absolutamente aforísticos como se fossem histórias, confundindo uma parábola sapiencial com um acontecimento ou tradição mítica.

A questão é que se os chineses tiveram ou não seus mitos de criação, isso foi absolutamente desinteressante para os estudiosos da antiguidade, bem como para a própria religião popular. O princípio do raciocínio chinês era básico: os chineses acreditavam que não podiam descrever o que não presenciaram. Qualquer teoria nesse sentido era absolutamente especulativa, sem ter qualquer serventia para a ética – tema central das escolas a partir do século -6. O próprio Confúcio, tão preocupado com os costumes, tradições e origens, não apontou nenhum desses mitos. Sua descrição dos tempos antigos, presente no Liji, é essa: “No começo, Li (civilização) surgiu com a comida e bebida. O povo assava milho e carne de porco, cortados à mão, em lascas de pedra aquecidas. Cavavam buracos no chão, à maneira de vasilhames, e bebiam diretamente nas conchas das mãos. Modelavam em barro seus tambores e as baquetas, materiais esses que parece terem-se provado à altura de seus cultos aos espíritos. Quando morria alguém, os parentes subiam ao telhado e gritavam bem alto, ao espírito: "Ahoooooo! Fulano, quereis fazer o obséquio de voltar ao vosso corpo?" (Se o espírito não voltava, e a pessoa estava realmente morta) então assavam arroz cru e carne assada para oferendas, levantavam a cabeça para o céu "a fim de ver longe" (wang) o espírito e enterravam o cadáver. O elemento material descia então (à terra) e o elemento espiritual subia (ao firmamento). Os mortos eram enterrados com a cabeça na direção norte, e os vivos tinham suas casas com o frontispício voltado para o sul. Tais eram os costumes primitivos. Antigamente os governantes não possuíam casas; moravam em grutas escavadas ou em abrigos de madeira empilhada, no inverno, e em ninhos feitos com ramos secos (na copa de árvores) durante o verão. Não conheciam os usos do fogo; comiam frutos e a carne de aves e animais, bebendo-lhes o sangue. Não tinham sedas nem outros tecidos, vestiam-se com penas e peles de animais. Mais tarde vieram os Sábios, que lhes ensinaram a utilizar o fogo e a fundir metais em moldes de bambu e a modelar o barro em vasilhas. Então construíram galpões e casas com portas e janelas, e passaram a chamuscar e fumegar e cozer e assar a carne em espetos, e fabricaram o vinho e o vinagre. Começaram também a usar tecidos de fibras e sedas, preparando as vestes para uso dos vivos e oferendas aos mortos e cultos aos espíritos e ao Céu”. Absolutamente humana e baseada numa observação dos povos ainda primitivos de sua época. Temos detalhes sobre a crença dos mortos, mas nada de origens cósmicas. Se esse detalhe fosse realmente importante, não teria passado pelo crivo do velho sábio.

Assim, os mitos de criação universal, como conhecemos, só surgiram na literatura do século +1, e mesmo assim parecem importados de outros lugares – como o famoso mito de Pangu.

Fuxi e Nuwa, antes humanos nos textos confucionistas, começam nessa época a serem representados, nos relevos, com caudas de cobra. Antigos soberanos e heróis se amontoam em tradições inexistentes no século – 6, quando Confúcio escrevia seus livros. Como reação a história confucionista de Sima Qian, aparece o Shanhaijing – o tratado das montanhas e dos mares – cuja geografia mítica é absolutamente desconsiderada pelos sábios. Com certeza, é o crescimento dos caminhantes como religião que influencia fortemente essa visão das coisas. A filosofia caminhante cedia espaço à alquimia e aos cultos aos deuses, sendo sua sabedoria paulatinamente substituída por uma tradição dogmática e baseada na fé.

A reação clara é dada por Wang Chong, que dedica todo um capítulo a combater a mitificação da origem do universo: “os comentadores do Ijing dizem que, no início, só existia uma massa caótica e uniforme. A separação do yin e yang se deu espontaneamente, e continua a ocorrer, sem que haja uma vontade do céu ou de terra para provocá-la. É apenas isso [...] buscar propósitos para a criação celeste, ao invés de aceitar sua espontaneidade, como fazem os caminhantes, é uma perda de tempo e em geral termina de modo decepcionante e contraditório”. Se suas propostas não vingaram de modo imediato, serviram contudo para o surgimento de uma cosmologia cientificizada que se consolidou entre os neoconfucionistas do período Song.

Estas questões nos levam a pergunta: porque uma civilização tem que possuir mitos de criação? Essa é uma imposição mental ocidentalizada, cuja recusa por esta exceção curiosíssima, que é a China, mostra as limitações de uma antropologia que se pretende laica mas que não escapa à velha busca filosófica da Arké (origem) – tão importante para os gregos, que filosoficamente acabaram, mas tão inútil aos chineses, que continuam.

Siga a ordem natural das coisas

Confúcio




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