'Re-si[g]nificar' nossa História em comum


É notável a preocupação do ‘mundo ocidental’ – essa vaga abstração sobre a extensão da visão eurocêntrica de mundo – com a presença [e quem sabe dependência] cada vez maior dos produtos chineses. Acusam aos chineses de tomarem empregos, derrubarem preços, arruinarem recursos naturais, como se tudo isso não atendesse a demanda de mercados espalhados por todos os continentes. Mas o centro da preocupação é essa disseminação de uma visão ideológica chinesa, expressa por sua cultura e política, que nitidamente afeta o predomínio euro-americano.

A sinologia nos cria oportunidades enriquecedoras de colocar em questão tais hegemonias. Não se pode refutar a difusão da cultura européia pelo orbe, principalmente a partir do século 19. Friso o século 19, pois a idéia de que a Europa já comandava o mundo desde o século 16 é absolutamente falsa; antes disso, os europeus viviam em cidadezinhas nas costas de África e Ásia, e a conquista da América necessitou inequivocamente da mestiçagem para funcionar. A leitura do antigo clássico “A dominação Ocidental na Ásia”, de K.M. Panikkar [1965] já nos daria essa idéia. Todavia, é preciso relembrá-la, trazê-la novamente à tona, para fazer perceber que o domínio eurocêntrico mundial é, de fato, muito recente.

É preciso colocar o passado em perspectiva: a Europa foi, durante séculos, um canto do planeta. Não é questão de desmerecer suas conquistas; mas postas num plano geopolítico, elas precisam ser re-interpretadas. No século 2 d.C., por exemplo, auge das expansões romanas, o império romano tinha menos habitantes do que a China Han. No período medieval, a Europa estava cercada, enquanto existiam outros grandes impérios espalhados pelo mundo. O que pretendo afirmar com isso é que a longa genealogia de preponderância européia, afirmada por uma historiografia orientalista [mas ainda em largo uso], precisa ser urgentemente revista.

Isso nos remete ao problema chinês. Se hoje se clama contra a difusão alarmante da cultura e das mercadorias chinesas em tudo que é lugar, incorre-se ao menos num irônico equívoco. Desde a antiguidade, os mesmos romanos gastavam seu ouro e prata para adquirir seda chinesa, entre outros tantos produtos exóticos. A via era de mão dupla, e os chineses também compravam o que lhes interessava da Ásia Central, Índia, Pérsia, África e do Mediterrâneo. Notavelmente, porém, eram os chineses que produziam mercadorias manufaturadas de “interesse mundial”. Desde então, somaram-se à seda invenções decisivas, como a pólvora, a bússola, a fórmula do papel, o leme de popa, sem as quais a Europa teria grandes dificuldades de navegar e de empreender as viagens marcantes do século 16.

O que se seguiu, nós sabemos. No século 18, os europeus continuavam a navegar até a China para comprar porcelana, pois eram incapazes de reproduzi-la. A ‘Chinoiserie’, movimento estético que buscava copiar os motivos chineses na arte e na decoração, estava amplamente difundida pelo velho continente. Missionários iam e vinham, desde o período medieval, debatendo-se para tentar converter aquele povo gigantesco a fé cristã. A China era, pois, o centro do mundo globalizado daquela época. Em termos tecnológicos, ela era a maior produtora de saberes.

A virada do século 18 para o século 19 trouxe uma combinação de fatores que levou ao declínio da China nesse papel, e sua substituição pelas nações européias. Fatores internos, ligados a dinastia arcaizante dos Qing, aliados ao surto de desenvolvimento europeu, calcado nos primórdios da revolução industrial, alavancaram o desenvolvimento da Inglaterra e da França. Enquanto isso os chineses perdiam força, conhecimento e motivação. Estagnaram em técnicas cada vez mais obsoletas, capazes ainda de sustentar sua própria sociedade, mas não de concorrer com o dinamismo estrangeiro.

Ora, foi antes de tudo o discurso da propaganda colonialista do século 19 que criou a miragem do ‘eterno atraso’ dos asiáticos. As guerras do ópio impuseram tratados vergonhosos para os chineses em torno da segunda metade do século 19 [1839-42 e 1856-60]. Mas notem: exceto pelo domínio de cidades como Hong Kong e Macau, a China como um todo não foi tomada. Em 1949, a revolução comunista empreendeu um grande esforço de reconstrução do país, e em breve seria capaz de oferecer um empate técnico para os americanos na Guerra da Coréia [1950-53]. O suposto ‘predomínio europeu’ durou pouco mais de um século, o que é quase nada em termos de cronologia na história mundial. Não há como negar o seu impacto no âmbito da tecnologia e, principalmente, das ideologias. No entanto, esse curto espaço de tempo não foi capaz de simplesmente demolir a continuidade da civilização chinesa.

Não é de estranhar, pois, que a retomada chinesa esteja alcançando todos os continentes. Estamos repetindo algo que já fizemos antes: vamos a China comprar o que nos interessa. Não há sequer um habitante nesse mundo atual que não traga consigo algum produto chinês. Como produtores de tecnologias, talvez os chineses demorem a alcançar a Europa e os Estados Unidos, mas muitos chineses já estão em excelentes universidades ‘ocidentais’ aprendendo o que precisam. No espaço dos produtos de consumo, a expansão chinesa é inequívoca.

Precisamos, pois re-significar – ou ainda, ‘re-sinificar’ nossa visão histórica de mundo baseada numa exclusão do mundo chinês. Sem ele, simplesmente a Europa talvez não pudesse ser o ‘centro da civilização Ocidental’, já que muitas das técnicas, experiências e motivações foram importadas da China. Tais visões cambetas da história só servem para reforçar construções estereotipadas, em geral voltadas para a afirmação de uma alteridade que se constrói pela negação do outro. Não pretendo com isso afirmar a necessidade de uma homogeneização cultural, baseada numa globalidade idealizada; mas simplesmente, afirmo que é necessário constatar a presença dessa 'sinidade' [ou 'Chinidade'] num mundo anterior ao século 20, sem a qual, provavelmente, seríamos muito diferentes do que somos nos dias de hoje. Para além da especulação, porém, trazemos conosco as poderosas influências da civilização chinesa em nosso passado, e aceitar tal condição tornaria muito mais leve e interessante nossa relação com a cultura chinesa, sem os receios abjetos de uma ‘perda de identidade’ europeurizada ou americanizada.

Assim, ainda que o interesse pelos chineses esteja marcado pelo oportunismo imediatista de visões neoliberais, há que se compreender que essas relações hegemônicas e culturais são milenares; e hoje, testemunhamos tão somente a sua retomada.

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