Desde a mais remota antiguidade, passaram sábios pela Terra – ou, ao menos, parte deles realmente era sábia. Se for verdade que a obra de um sábio só é reconhecida na posteridade, isso nos livra de muitos enganos sobre o passado – mas não nos isenta, de modo algum, de estarmos sendo ludibriados, agora, pelos supostos sabichões de plantão.
Esta condição é o cerne da questão: como ninguém nasce sabendo, por melhores que sejam nossas propensões e inclinações, estamos sempre sujeitos a presença da ignorância das coisas, e somente a cultura (Li 禮) pode nos ajudar.
Neste processo, que é tanto de elucidação quanto de contágio de maus hábitos, uma melhor educação é o diferencial da formação humana. No entanto, no inevitável conflito entre a sabedoria e a ignorância, a segunda continua ganhando de sobra, posto que para tê-la só é necessário fazer nada. Por outro lado, a sabedoria é como uma vela na escuridão; ela ilumina todo um quarto, é vista a distância e serve de guia para os buscadores. Assim sendo, para quando seria a vitória definitiva da sabedoria? Ou é uma miragem a crença de que o mundo pode melhorar por meio da sabedoria?
Ora, o que somos hoje é resultado direto de nossas heranças culturais anteriores – com todas as vantagens e desvantagens que isso possui. Na visão dos caminhantes, como Laozi e Zhuangzi, isso é, na verdade, um problema. Melhor seria retornar a natureza original, uma forma de selvageria autêntica (e sem conotações pejorativas) que livrassem o ser humano da prisão dos conceitos e valores humanos:
[...] O povo tem certos instintos naturais - tecem as roupas e se vestem, lavram os campos e se alimentam. Esse é o instinto comum dos quais todos têm sua parte. Tal instinto pode ser chamado "no Céu nascido". Assim, nos dias da natureza perfeita, os homens eram calmos nos movimentos e serenos no olhar. Naquele tempo não havia caminhos nas montanhas, nem botes ou pontes sobre as águas. Todas as coisas produziam-se naturalmente. Os pássaros e as feras se multiplicavam; as árvores e os arbustos medravam. Dessa sorte, acontecia que as aves e as feras podiam ser levadas pela mão e podia-se subir e espiar para dentro do ninho da pêga. Pois nos dias da natureza perfeita, o homem vivia junto com as aves e as feras e não havia distinção de espécie entre eles. Quem pode saber as distinções entre os gentis homens e os homens do povo? Sendo todos igualmente sem desejos, permaneciam num estado de integridade natural. Nesse estado de integridade natural, o povo não perdia sua natureza (original). E depois, quando apareceram os Sábios, rastejando por caridade e mancando com o dever, a dúvida e a confusão entraram no espírito dos homens. Eles disseram que era preciso alegrá-los por meio da música e criaram as distinções por meio de cerimônias, e o império dividiu-se contra si mesmo. Sem cortar a madeira bruta, quem faria os navios de sacrifício? Se o jade branco não fosse cortado, quem poderia fazer as insígnias reais da corte? Não sendo destruídos Dao e a virtude, que utilidade teriam a caridade e o dever? Se não se perdessem os instintos naturais dos homens, que necessidade haveria de música e cerimônias? Se as cores não se confundissem, quem precisaria de decorações? Se as cinco notas não se confundissem, quem adotaria os seis diapasões? A destruição da integridade natural das coisas para a produção de artigos de várias espécies - eis a falta do artífice. A destruição de Dao e da virtude a fim de introduzir a caridade e o dever - eis o erro dos Sábios. [...] Nos dias de Hexu os homens nada faziam de particular em seus lares e saiam a passeios sem destino. Tendo alimentos, regozijavam-se; dando pancadinhas na barriga andavam de um lado para outro. As capacidades naturais desses homens os levavam até aí. Os Sábios vieram depois e os fizeram curvar-se e abaixar-se com cerimônias e música, a fim de regular as formas externas de trato social e ostentaram a caridade e o dever diante deles com o fito de conservar-lhes os espíritos submissos. Depois o povo começou a trabalhar e desenvolveu gosto pela ciência, e começou a lutar entre si na ambição do lucro, para a qual não há fim. Eis o erro dos Sábios.
Mas pensemos bem: de onde vieram os sábios, que Zhuangzi maltrata tanto? Da vontade humana de superar, justamente, suas limitações humanas. Embora na selvageria ideal de Zhuangzi o ser humano nem se preocupasse com isso, a questão é que o fato de ESTAR humano o torna potencialmente capaz de analisar, criticar e vencer as limitações da manifestação material na mutação. Além disso, na dúvida da vida após a morte, deve-se apostar no prolongamento da vida com forma de realização autêntica – do contrário, qual o seu sentido? Os humanos nascem – mas principalmente, se manifestam – com propensão à cultura. Do contrário, não a construiriam, não a desenvolveriam e não se apegariam tanto a ela.
Isso soa materialista, e de certo modo é. Somente os tolos se apegam à mutação pela mutação, e giram desesperados e agarrados aos seus corpos; mas o que o sábio busca, nessa vida, se ele também está sujeito a estas mesmas regras?
O sábio busca a manifestação dos princípios, aquilo que faz a existência humana evoluir e, justamente, a prolonga. O pessimismo de Zhuangzi não podia compreender ou alcançar as conquistas que se vêem hoje. Talvez os médicos, influenciados em certa medida tanto por caminhantes quanto por letrados, haviam percebido que a continuidade humana se dá em função, única e exclusiva, do desejo humano de se perpetuar. Seu discurso sobre a antiguidade pregava a preservação da saúde como alicerce da busca da sabedoria:
Antigamente, essas pessoas que compreendiam o Dao moldavam-se de acordo com o Yin e o Yang e viviam em harmonia com as artes da adivinhação. Havia temperança no comer e no beber. As suas horas de levantar e recolher eram regulares e não desordenadas e ao acaso. Graças a isso, os antigos conservavam os seus corpos unidos às suas almas, a fim de cumprirem por completo o período de vida que lhes estava destinado, contando cem anos antes do passamento. Hoje em dia, as pessoas não são assim; utilizam o vinho como bebida e adotam a temeridade e a negligência como comportamento habitual. Entram na câmara do amor em estado de embriaguez; as paixões exaurem-lhes as forças vitais; o ardor dos desejos malbarata-lhes a verdadeira essência; não são hábeis na regulação da sua vitalidade. Devotam toda a atenção ao divertimento dos seus espíritos, desviando-se assim das alegrias da longa vida. Levantam-se e deitam-se sem regularidade. Por tais razões só chegam à metade de cem anos e degeneram. Na Antigüidade mais remota, os ensinamentos dos sábios eram seguidos pelos que se encontravam abaixo deles. Os sábios diziam que a fraqueza, as influências insalubres e os ventos nocivos deviam ser evitados em ocasiões específicas. Sentiam-se tranqüilamente satisfeitos no nada e a verdadeira força vital acompanhava-os sempre; preservavam dentro de si o vigor vital primitivo. Assim, como podia a doença acometê-los?. Reprimiam a vontade e reduziam os desejos; os seus corações estavam em paz e sem qualquer medo, os seus corpos labutavam e, contudo, não sentiam fadiga. O seu espírito respeitava a harmonia e a obediência, estava tudo de acordo com os seus desejos e conseguiam o que quer que desejassem. Achavam excelente qualquer espécie de comida e qualquer espécie de vestuário os satisfazia. Sentiam-se felizes em todas as circunstâncias. Para eles, não importava que um homem ocupasse na vida uma posição elevada ou inferior. Os homens assim se podem chamar puros de coração. Não há desejo capaz de tentar os olhos destas pessoas puras, e a sua mente não pode ser desencaminhada pelos excessos nem pelo mal. Numa sociedade assim, quer os homens sejam sensatos, quer idiotas; quer virtuosos, quer maus, não têm medo de nada, estão em harmonia com o Dao, o Caminho Certo. Por isso, os antigos viviam mais de um século e permaneciam ativos e sem se tomarem decrépitos, porque a sua virtude era perfeita e nada jamais a punha em perigo.
Somente Confúcio percebeu, porém, que o ser humano antigo, em sua ignorância, levava surras da natureza por não compreender como se harmonizar com ela:
Quando reinava o grande Dao (na Idade de Ouro) o mundo era propriedade comum (não pertencendo a nenhuma família dominante), os governantes eram escolhidos de acordo com a sua sabedoria e capacidade, havia paz e confiança mútua. Por isso as pessoas não tratavam apenas os próprios pais como pais e os próprios filhos como filhos. Os anciães sabiam prezar a sua ancianidade e os jovens sabiam usar o seu talento, os mais moços tinham os velhos por quem olhar, e as viúvas desamparadas, e os órfãos, e os mutilados e aleijados eram tratados com carinho. Os homens tinham afazeres específicos e as mulheres cuidavam dos lares. Como as pessoas não desejassem ver seus bens desperdiçados, não tinham motivo para os conservarem egoisticamente para si; e como as pessoas tivessem energia mais do que suficiente para o trabalho, não precisavam limitar-se a trabalhar só em proveito individual. Por isso não havia malícia nem intrigas, nem ladrões nem bandidos, e conseqüentemente não havia necessidade de cada qual fechar a sua porta (ao cair da noite). Assim era o período do Datong, ou a Grande Comunidade. [...] Antigamente os governantes não possuíam casas; moravam em grutas escavadas ou em abrigos de madeira empilhada, no inverno, e em ninhos feitos com ramos secos (na copa de árvores) durante o verão. Não conheciam os usos do fogo; comiam frutos e a carne de aves e animais, bebendo-lhes o sangue. Não tinham sedas nem outros tecidos, vestiam-se com penas e peles de animais. Mais tarde vieram os Sábios, que lhes ensinaram a utilizar o fogo e a fundir metais em moldes de bambu e a modelar o barro em vasilhas. Então construíram galpões e casas com portas e janelas, e passaram a chamuscar e fumegar e cozer e assar a carne em espetos, e fabricaram o vinho e o vinagre. Começaram também a usar tecidos de fibras e sedas, preparando as vestes para uso dos vivos e oferendas aos mortos e cultos aos espíritos e ao Céu. Tais práticas foram também herdadas dos primórdios. [...] Todas essas práticas tinham o propósito de manter a devida distinção entre governantes e governados, preservar o amor entre pais e filhos, incutir a gentileza entre os irmãos, regular as relações entre superiores e subalternos, e estabelecer de parte a parte as condições de convívio entre marido e mulher, para que sobre todos pairasse a bênção do Céu.
A desorientação humana era explicada pelo conflito entre seu lado “selvagem” ou natural, e a sua igualmente natural propensão para criar a cultura. Coube aos sábios promover esta revolução, conduzindo e orientando as gentes na melhoria de suas vidas, por meio de Li.
Mas Confúcio acreditava numa Era de Ouro, no passado; estaria ele afirmando que antes era melhor do que agora? Ou manifestando, apenas, seu desejo de ser como os antigos, capaz de revolucionar o mundo e ajudar as pessoas?
Como sabemos, o sábio é um crítico da sua época, e se opõe aos problemas que estão nela presentes. Por isso Confúcio imitava os antigos – no sentido de tentar ajudar o presente como os sábios ajudaram no passado.
Deste modo, o que se constata é que o nascer ignorante é um processo contínuo da mutação, e a cultura é a manifestação dos princípios. A busca dos sábios é perene, e eles se apresentam no mundo para ajudar em sua reforma. O que observamos, pois, é a procissão dos sábios na Terra, aparecendo – mas não sumindo – para legarem às pessoas o que sabiam, e a ajudar na manutenção da vida.
Resta-nos, porém, a última questão: mas porque os sábios insistem em mudar o mundo, se a ignorância é o estado natural do ser humano? Porque a evolução é a manifestação dos princípios, e a vida da humanidade tanto tem melhorado quanto evolui a cultura. Mesmo que os sábios passem, o que fazem é o que fica, sustenta e alimenta o mundo. Um sábio se desprende dos resultados que obtém de suas missões, pois o que ele dá de bom, é o que a humanidade necessita. Somente quando erra é que assume a inteira responsabilidade pelos seus enganos, o único meio sensato, de fato, de ajustar as teorias, os modelos e sistemas que ele propõe.
Mesmo que o sábio só seja reconhecido depois, isso não importa; a sabedoria é uma doação infindável de si mesmo para Ren 仁; e para os comuns, só cabe a sorte de vislumbrar a passagem de alguém assim em sua época, e reconhecê-lo como tal.
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