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A história da civilização indiana antiga é, antes de tudo, a história de uma forma de pensar. Embora como indólogo eu seja somente um amador, acredito, contudo, que um exame em conjunto desta cultura – nos princípios que unem as suas mais diversas manifestações, e não dos que as distinguem – pode nos dar uma idéia do modelo histórico que os indianos desenvolveram desde a antiguidade – e que podemos, igualmente, considerar como muito bem sucedido.
Meu olhar, pois, assenta-se na teoria sinológica de história que defendo – a busca dos princípios articuladores que dão sentido à construção dessa civilização. Partindo desta, posso afirmar, por conseguinte, que os indianos não desenvolveram a idéia temporal de história (tal como entendemos), e não priorizaram de modo algum a teoria de que os registros históricos poderiam servir para a educação cultural. No entanto, isso não fez diferença nenhuma para a construção de um pensamento que deu ordem e organizou a estrutura mental e social da Índia desde a antiguidade. Antes da chegada do Islã, os indianos não sabiam o que era “história”, como conhecemos. Discordo do eminente indológo Louis Renou, que em sua Antologia da Literatura Sânscrita (Paris, 1943), defendia muito fragilmente que os indianos possuíam algum conhecimento neste sentido – e nos apresenta como prova um documento tardio, em torno do século 11, que embora tenha sido redigido em sânscrito é, de fato, um texto pós-islâmico. Não encontramos, nesta antiguidade indiana, nenhuma 'história' propriamente dita (o que temos a partir da dinastia Maurya, por exemplo, são as crônicas de estrangeiros, como Megástenes), a não ser aquela representada pelos puranas – epopéias e textos semelhantes às de Homero e Hesíodo.
Do mesmo modo, os próprios indianos desconheciam seu passado mais remoto; as civilizações de Mohenjo daro e Harappa, assim como milhares de templos e monumentos, que tanto a selva como as areias do deserto engoliram ou fizeram desaparecer, mostram uma indiferença fundamental para com o antigo-material (ou seja, do patrimônio, ou do vestígio).
Este pensamento indiano não deu praticamente nenhuma importância as datações, cronologias ou exames de conjuntos históricos. Sua articulação temporal dá-se em torno das yugas, períodos da humanidade definidos por crenças religiosas, ou estágios de evolução da humanidade e do mundo. Ainda assim, ele afirma-se detentor de uma cultural ancestral e antiqüíssima (e aqui, no sentido da tradição), que os próprios especialistas ocidentais costumam referendar (até certo ponto).
Mas qual 'história' se quer buscar na Índia? A temporal, aquela que tem sido construída pela arqueologia moderna, transpõe o passado da Índia para épocas distantes – mas ela só faz diferença para aqueles que justificam a importância de algo por sua idade. Novamente, pois, isso não faz diferença para a civilização indiana tradicional.
Porém, se buscarmos a história de uma cultura, seremos forçados a admitir que os indivíduos, mesmo sem se preocupar em preservar um passado material, conseguiram um sucesso notável na construção e na manutenção de seus saberes. Como isso se deu?
Em nossa análise, a “ahistória” da civilização tradicional indiana foi construída numa perspectiva igualmente atemporal, em que se transferiu o problema da origem e da sucessão das coisas para uma antropologia religiosa capaz de reproduzir, incessantemente, este modelo social para o qual o tempo, a princípio, não fazia diferença.
Isso não implica que a sociedade indiana não tenha passado por mudanças, mas a consciência desta civilização desloca o problema do que foi para o que continua sendo. O “tempo” indiano é o tempo presente, que visa atender ao problema das crenças religiosas, ao qual a existência da materialidade se atrela.
Esta Índia tradicional criou um modo de pensar que dispensa a autoridade da cronologia. Fixado nestas questões que se supunham ligadas a princípios imutáveis – como o problema da reencarnação – os indianos dirigiram seus esforços em preservar meios para lidar com estas mesmas questões, para as quais a observação do passado físico seria inútil.
As idéias fundadoras
Por esta razão, como afirmamos no início, a história indiana é a história de um pensamento, que hoje chamamos de hinduísmo. Desde onde podemos rastrear os documentos indianos, dos quais os mais antigos são os vedas, a Índia não quer se preocupar com o mundo material. Este mundo é uma prisão, e o que ocorre aqui é a repetição incessante de velhos problemas, causados pela ilusão e pelas paixões físicas, definidas pelo conceito de Maya.
Ou seja, olhar o passado seria simplesmente um exercício redundante de constatar que continuamos presos à uma mesma realidade, proposta pela teoria da reencarnação (karma), em que os deméritos morais proporcionam um retorno a existência física.
O paradoxo desta teoria é propor, pois, que os métodos e os textos para aliviar o karma – desde a yoga aos clássicos do pensamento, dos quais podemos citar os vedas, os upanishads e os puranas (como o mahabharata) – devem ser preservados pois são os meios, no mundo material, de livrar-se do mesmo! Este é o motivo pelo qual podemos classificar o pensamento indiano como uma sabedoria religiosa, com conseqüentes implicações sociológicas que as mesmas têm, ao serem aplicadas na cultura.
O caso das castas (varnas) e dos 4 pilares do hinduísmo são casos clássicos disso. Kama (desejo), artha (lei social), dharma (lei religiosa) e moksha (libertação) são considerados os valores fundamentais a serem buscados e praticados por cada indivíduo para alcançar a libertação. Alguns documentos fundamentais dessa história indiana – o kama sutra, o manavadharmashatras (leis de manu) e o artashastra (leis sociais) dirigem-se justamente à estas questões, fornecendo um alicerce para o seu domínio e a conseqüente consecução das questões religiosas.
Quanto as varnas – brâmanes, xátrias, vacias e sudras – elas são uma reproduçõ direta da concepção de que o karma legitima a desigualdade, criando uma espécie de ecologia hierárquica social e religiosa, cujas possibilidades de mobilidade seriam mais espirituais do que materiais.
Estes textos foram lidos por séculos, bem como esta estrutura social se manteve perenemente, apesar das críticas jainas, budistas e islâmicas. Quando foram escritos os textos fundadores, ou quando foram criadas as castas? Após alguns anos, a mentalidade indiana não mais distingue se um tratado havia sido feito há anos ou na semana passada – a sua aceitação e divulgação lhe davam a autoridade do saber, na qual se incluía a indistinção do tempo.
O mesmo se dá com as visões de mundo – elas encontram justificativas nas tradições míticas, contidas nos puranas, cujo fundo moral é o grande apanágio de sua verdade “ahistórica”. Gerações inteiras foram educadas lendo os vedas, o mahabharata e o ramayana. Vyasa, autor destes dois puranas, foi um dos maiores professores da antiguidade indiana (e mesmo, do mundo). Assim sendo, a antropologia religiosa da Índia antiga gerou possibilidades interessantes para a construção deste modelo histórico, cujos desdobramentos intelectuais são instigantes.
Uma possível história ahistórica
Primeiramente, talvez esta história indiana torne impraticável saber mais sobre o seu próprio passado – no entanto, as tradições religiosas que articulam o hinduísmo como o cerne da cultura indiana, nos permite inferir que estamos vislumbrando, ao mesmo tempo, um passado indatável, uma manifestação direta de práticas milenares.
Podemos ter certeza da antiguidade dessas tradições? Não, e isso não faz diferença alguma para os indianos, como já dissemos. Elas serão tão antigas quanto forem eficazes, ou reconhecidas como válidas para a superação do karma. A Índia, neste ponto, seria (por analogia), um mundo homérico que “deu certo”, e cujos filósofos não quiseram destruir.
No entanto, o instrumental da história ocidental, que se inseriu na índia em busca do passado material, tem constatado que a comparação dos documentos antigos com algumas tradições ainda conservadas apresenta uma identidade impressionante.
Pensadores como Alain Danielou, por exemplo, são considerados na Índia como indólogos legítimos dentro desta perspectiva, por abordarem o pensamento hindu de modo atemporal. A leitura de seu livro Shiva e Dionisos (1979) é uma demonstração direta das possibilidades de se escrever uma história sapiencial fundada em exemplos, lendas e mitos que “dispensa” um aprofundamento material (Danielou, contudo, escreveu também uma História da Índia nos moldes ocidentais tradicionais, um contraponto em sua obra).
Isso poderia por em xeque a validade destas propostas, cujos fundamentos poderiam ser discutidos pelas evidências arqueológicas; mas se a questão das origens for anulada, então, problemas como o desconhecimento de Harappa se tornam uma condição irrelevante. Do mesmo modo, a guerra que se desenvolve no Mahabharata e no Ramayna podem ser remeter à lugares cuja existência até podem ter ocorrido, mas isso também não é importante nem decisivo; são os modelos de virtude, os ensinamentos, o momento fundamental do Bhagavad Gita que realmente importam para o buscador da sabedoria, do indivíduo que quer livrar-se do seu karma.
A sofisticação e a complexidade da cultura indiana se atém a raiz deste pensamento, que é o motor de sua preservação. A articulação da temporalidade se dá de maneira diminuída, restrita, a qual poderíamos comparar, por exemplo, com a dos índios brasileiros ou com algumas culturas africanas, como os Bantos. No entanto, a presença material desta mesma civilização hindu – seus monumentos, escritos, práticas, tradições e estrutura social – tornam incompreensível para os ocidentais a desconexão que pode existir entre esta concepção de passado e sua presença física.
A mesma Índia da mitologia riquíssima, que se mantém, é a civilização que não conhece os mitos de seus sítios antigos (ou acredita que são, simplesmente, os mesmos do hinduísmo). A superação da materialidade é, justamente, o objetivo das tradições que continuam – e assim, esta cultura, para continuar, se propõe a desprezar o próprio mundo em que vive e existe.
O tempo, a lei, o acaso, a matéria, a energia primordial, a inteligência - nenhum desses, nem uma combinação deles, pode ser a causa final do Universo, pais eles também são efeitos, e existem para servir a alma. Nem pode o Eu individual ser a causa, pois, estando sujeito à lei da felicidade e da miséria, não é livre. Os videntes, absortos na contemplação, viram dentro de si próprios a realidade final, o ser autoluminoso, o único Deus, que mora como o poder auto consciente em todas as criaturas. Ele é Um sem segundo. Ele habita o interior de todos os seres, oculto da vista pelos invólucros das gunas - sattwa, rajas e tamas. Ele reina sobre o tempo, o espaço e sobre todas as causas aparentes. Este vasto Universo é uma roda. Sobre ela estão todas as criaturas que estão sujeitas ao nascimento, à morte e ao renascimento. Ela gira continuamente e nunca pára. Ela é a roda de Brahman. Enquanto o Eu individual pensa que é separado de Brahman, ele dá voltas sobre a roda ligado às leis do nascimento, da morte e do renascimento. Porém, quando, através da graça de Brahman, percebe sua identidade com ele, não gira mais sobre a roda. Ele alcança a imortalidade. Aquele que se realiza por transcender o mundo da causa e do efeito, em profunda contemplação, é expressamente declarado pelas escrituras como sendo o supremo Brahman. Ele é a substância; tudo o mais é a sombra. Ele é imperecível. Os que conhecem de Brahman o conhecem como a única realidade por trás de tudo o que é aparente. Por essa razão, são devotados a ele. Absortos nele, libertam-se da roda do nascimento, da morte e do renascimento. O Senhor sustenta este Universo, que é feito do perecível e do imperecível, do manifesto e do imanifesto. A alma individual, esquecida do Senhor, apega-se ao prazer e, desse modo, se prende. Quando ela vem para o Senhor, é libertada de todos os seus grilhões. A mente e a matéria, o senhor e o servo - ambas existem desde tempos sem início. Maya, que as une, também existe desde tempos sem início. Quando todas as três - a mente, a matéria e Maya - são conhecidas como unas com Brahman, percebe-se então que o Eu é infinito e não participa da ação. Revela-se então que o Eu é tudo. A matéria é perecível. O Senhor, o destruidor da ignorância, é imperecível, imortal. Ele é o único Deus, o Senhor do perecível e de todas as almas. Ao meditar sobre ele, ao se unir a ele, ao se identificar com ele, a pessoa deixa de ser ignorante. (Shvetasvatara upanishad)
A civilização indiana desdobra-se, por meio deste discurso, em um passado vivo – e um “não passado”. Uma história absolutamente improvável, e no entanto, eficaz em eliminar a condição fundamental do tempo. Que história, pois?
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