Tradicionais Botijas de Vinho Chinesas; nosso tema desse mês...
Antes de tudo, gostaria de dizer que não sou um apologista do errado, como pode parecer. Sei que já escrevei um texto defendendo o cachimbo; e agora, venho falar da história do vinho entre os chineses. Mas sinceramente, está um inverno terrivelmente frio este ano, e aqueles que se recusam a tomar um cálice de vinho ou uma dose de conhaque vão ter que gastar muito mais dinheiro com aquecimento artificial. Não consigo conceber também uma noite romântica movida a chá, refrigerante ou café; eu adoro esses três, o primeiro sem açúcar, os outros dois apenas com açúcar; mas nossa cultura ainda não construiu um espaço amoroso para eles em seu imaginário. Ademais, tenho muito receio dos que são abstêmios totais. Aprendi na vida que, depois que essas pessoas que tentavam se controlar a si mesmas, tentavam depois controlar aos outros – e de modos desastrosos e violentos, no geral, tanto quanto os alcoólatras. No livro das canções outonais, escrevi:
E até hoje não vi razão para mudar de opinião. Muitos anos atrás, quando eu era bem novo e cheio de boas intenções (mas imaturo para realizá-las), aprendi muito com um amigo médico que liderava expedições noturnas para distribuir comida e agasalhos entre os pobres e trabalhadores. Que se diga, a primeira coisa que descobri é que a maioria dos que dormiam na rua não eram 'vagabundos', mas trabalhadores que moravam longe e economizavam o dinheiro das passagens. O preço disso era se acomodar, ao longo da semana, debaixo de marquises próximas aos seus trabalhos. Em noites quentes isso não era ‘tão complicado’ (se me permitem o eufemismo), mas nas noites frias, a coisa ficava ainda mais difícil.
Numa noite, presenciei dois deles tomando um gole de cachaça antes de dormir. Comecei (inocentemente) a repetir a mesma cantilena moralista irritante dos abstêmios de “olha só eles bebendo, que coisa, etc.”, quando o médico simplesmente me interrompeu e disse: “veja uma coisa: ele estão tomando um gole só, que esquenta o sangue, aquece a pele e enfrenta o frio da noite. A cachaça tem glicose, que alimenta quase como soro; e por fim, eles estão bebendo, mas não estão, e nem são bêbados”. Ao lado de um sábio, aprendemos em um minuto mais do que ao longo de anos.
Isso me remete a outro extremo dessa introdução. Conheci igualmente o caso de um sujeito que fumava muito, e um dia desejou parar. Para se acalmar, começou a beber e usar remédios. Em algum tempo, eles misturava os três, e tornara-se um inconveniente absoluto.
Já na época do Shang se produziam vinhos diversos, mas o preferido era mesmo o de arroz. Uma lenda dizia que a mulher do imperador Yu, da dinastia anterior (Xia) havia criado o Huangju (o ‘Vinho amarelo’) a partir do milho, e descoberto a prática da fermentação dos grãos. Verdade ou não, os Shang difundiram intensamente o hábito de produzir e beber vinhos. Além do vinho de arroz, conheciam-se também os vinhos de uva, maçã, laranja, frutas silvestres, sorgo, painço, além do de milho e de ervas aromáticas. Em geral eram servidos na temperatura ambiente (em dias ou noites quentes) ou aquecidos previamente, em infusões nas quais se misturavam mel, melado, frutas, condimentos (cravo, canela, pimenta) e ervas medicinais.
De fato, os Shang eram conhecidos por exagerar na dose, realizando grandes orgias regadas a vinho. Grande parte dos vasos de bronze que achamos dessa civilização são copos de bebida. Interessante é notar que os críticos dos Shang nunca os acusaram de imoralidade por beber ou fazer orgias; acusaram-nos de fazer demais, descuidando da nação. O problema do excesso nos mostra o lastro da sabedoria chinesa: a culpa é das pessoas, e não das coisas.
Na época Zhou, que os sucedeu, nada muda substancialmente nesse panorama. É o que Confúcio nos indicará em um famoso texto do Shujing, que busca orientar a sociedade sobre a questão do álcool. O problema é o excesso, mas proibi-lo é uma utopia. O vinho possui a virtude de relaxar o corpo, congregar os amigos, ajudar na digestão e saudar os ancestrais. Do nobre ao camponês, o vinho é uma benção no final de um dia de labuta. Só o parvo o usa de modo errado; e o parvo, sempre ele, claro, crias as normas sobre o errado, e serve de índice para o engano:
Essa pequena lista é o estofo de outros capítulos do Liji (42 e 44) em que Confúcio explica os procedimentos para bebedeiras (festas alcoólicas, mais corretamente) e banquetes. Ao longo do Liji, são mais de 40 citações ao uso de bebidas em todos os tipos de cerimônias (inclusive, ‘beber defuntos’ ou cerimônias oficiais).
Há que se argumentar se não havia opções na época, como sucos ou o chá (que chegou muitos séculos depois na China, ao contrário do que se pensa). Por inversão, porém, o vinho não parou de ser bebido com o surgimento de outras bebidas; é necessário encarar a questão de que as sociedades desenvolvem gostos particulares sobre os alimentos e bebidas, e que eles não são facilmente substituídos por imposições de consumo industriais (mais fácil, na verdade, as empresas se adequarem a essas predileções).
Ocasionalmente um vinho poderia obter certa fama para seu fabricante, mas a obsessão européia num cânone de regras fixas para o vinho nunca se sucedeu entre os chineses. Numa civilização gigantesca como essa, os parâmetros eram outros. A diversidade garantia, por si só, o destaque de um sabor único – e que fatalmente seria pouco conhecido numa sociedade repleta de fabricantes caseiros. Vinhos como Fenjiu, do século +6 (de sorgo, com absurdos 65% de nível alcoólico) ou Sanhua (que se afirma feito há quase mil anos pelos habitantes da região de Guilin, com água e ervas especiais e também, com mais de 50% de teor) são exceções, e cuja vagueza da denominação ou origem impedem a construção de uma ‘tradição’ nos moldes enológicos ocidentais.
Em tempos de crise, as bebidas também servem para esquecer, e os chineses também sabiam disso. Um grupo chamado ‘sete sábios do bosque de bambu’, por exemplo, vivia embriagado para se alienar da crise que devastava o país após a queda dos Han no século +3. Isso na verdade criou uma tradição de poetas bêbados. Em busca de inspiração, esses artistas embebedavam-se de vinho; e depois, quando descobriram que o vinho era a própria inspiração, começaram a cantá-lo também. Tao Qian (Tao Yuanming) escancara o sentimento de amizade por meio do vinho;
Sua teorização sobre o vinho dava na seguinte fórmula:
Homens duros que bebem
E ficam bons
São bons
...
Homens bons que bebem
E ficam maus
São maus
...
Homens que não bebem
Não vão à festa dos ancestrais
São os piores de todos
E até hoje não vi razão para mudar de opinião. Muitos anos atrás, quando eu era bem novo e cheio de boas intenções (mas imaturo para realizá-las), aprendi muito com um amigo médico que liderava expedições noturnas para distribuir comida e agasalhos entre os pobres e trabalhadores. Que se diga, a primeira coisa que descobri é que a maioria dos que dormiam na rua não eram 'vagabundos', mas trabalhadores que moravam longe e economizavam o dinheiro das passagens. O preço disso era se acomodar, ao longo da semana, debaixo de marquises próximas aos seus trabalhos. Em noites quentes isso não era ‘tão complicado’ (se me permitem o eufemismo), mas nas noites frias, a coisa ficava ainda mais difícil.
Numa noite, presenciei dois deles tomando um gole de cachaça antes de dormir. Comecei (inocentemente) a repetir a mesma cantilena moralista irritante dos abstêmios de “olha só eles bebendo, que coisa, etc.”, quando o médico simplesmente me interrompeu e disse: “veja uma coisa: ele estão tomando um gole só, que esquenta o sangue, aquece a pele e enfrenta o frio da noite. A cachaça tem glicose, que alimenta quase como soro; e por fim, eles estão bebendo, mas não estão, e nem são bêbados”. Ao lado de um sábio, aprendemos em um minuto mais do que ao longo de anos.
Isso me remete a outro extremo dessa introdução. Conheci igualmente o caso de um sujeito que fumava muito, e um dia desejou parar. Para se acalmar, começou a beber e usar remédios. Em algum tempo, eles misturava os três, e tornara-se um inconveniente absoluto.
Tal situação nos mostra que o vício não existe só, mas depende sempre do viciado – alguém cuja inteligência é sempre escrava da vontade, ou traduzindo, uma espécie de idiota.
Há vícios de todos os tipos. As pessoas gostam de colocar no topo dos mais perigosos os narcóticos (maconha, cocaína, etc.), mas experimente cortar a carne de uma nação churrasqueira como a nossa. Fui vegetariano durante três anos, e descobri um mundo de preconceitos terríveis. A própria fama de ‘chato’ que o vegetariano carrega consigo foi criada por carnívoros, que consideram absolutamente incompreensível não se alimentar de animais mortos. Em diversos lugares fui maltratado apenas por não querer comer carne. Voltei ao hábito, depois, pela absoluta impossibilidade de continuar a sê-lo quando se precisa que outros cozinhem para você. Estranho que alcunhem os vegetarianos de obcecados por saúde; e quem é obcecado por não cuidar dela é o que? Aliás, quem é mais viciado? Ele ou os carnívoros intransigentes e excludentes?
Poderia juntar nessa lista de vícios, na qual acabei de incluir a carne, o açúcar, a TV, o racha de automóveis, a ignorância, o desdém pela leitura, o chimarrão as 6 hs da manhã... Tire uma dessas coisas da mão dos viciados e você descobrirá uma escalada de violência, acompanhada de fúrias assustadoras.
Por conta disso, me sinto a vontade para falar do vinho entre os chineses, entendendo-o como um hábito culturalmente maravilhoso, contanto que não caia na ausência ou no excesso – a justa medida, regra sábia de Confúcio, é o nosso guia da razão, a teoria e a metodologia desse trabalho.
Assim sendo, discutir a cultura do vinho não é meramente uma excentricidade, mas um exercício de se constatar se tal prática, historicamente, é de fato destrutiva para um povo. Os chineses chegaram aos limites; foram destruídos pelo ópio (pelo vício e pelas armas inglesas que o vendiam) tanto quanto pela alquimia, que muitas vezes defendeu idéias estapafúrdias de imortalidade pelo total controle do corpo e de suas vontades.
Assim sendo, discutir a cultura do vinho não é meramente uma excentricidade, mas um exercício de se constatar se tal prática, historicamente, é de fato destrutiva para um povo. Os chineses chegaram aos limites; foram destruídos pelo ópio (pelo vício e pelas armas inglesas que o vendiam) tanto quanto pela alquimia, que muitas vezes defendeu idéias estapafúrdias de imortalidade pelo total controle do corpo e de suas vontades.
Foram dois os campos nos quais a cultura do vinho foi sabiamente pensada, pesada e aprovada; a medicina e a filosofia.
Pouco afeitos a vasta relação de pecados e proibições que povoavam o imaginário ocidental, os chineses simplesmente decidiram examinar as propriedades das bebidas alcoólicas até chegar as suas próprias conclusões. Os médicos entenderam as propriedades nutritivas e assépticas do álcool, receitando-o com parcimônia e liberando seu consumo com ponderação. Alguns remédios foram criados, inclusive, com uma mistura de vinho, licores e ervas medicinais. Não é de estranhar que eles (os chineses) sejam os mais numerosos do mundo: alguma coisa sobre saúde ele certamente entendiam. Li Shizhen, médico da época Ming, defendia - simplesmente - a sensatez, quando afirmou que:
O vinho é, na verdade, uma bebida deliciosa, concedida pelo céu. Beber corretamente ajuda o sangue e qi a circularem, revigora a mente, alivia o cansaço mental, e acrescenta prazer a vida. [Mas] Beber sem moderação prejudica a mente, o sangue e o qi do estômago, afeta a produção de calor interno, leva às piores doenças e, no limite, traz a humilhação à nação, arruína a família, e faz perder de vida!
Quanto aos filósofos, esses trataram a bebida como um elemento capaz de interferir na individualidade humana. Inspiradora, consoladora, destruidora, a bebida não promove a anulação do ser humano; é ele mesmo, com todas as suas fraquezas, que se consome nos seus erros. A bebida é apenas um veículo, como poderia ser qualquer outro; essa foi a conclusão geral desses sábios.
Cabia pensar, então, quais efeitos a bebida provocava no ser humano, e de que modo eles poderiam ser empregados a seu favor.
No tempo de Confúcio
No tempo de Confúcio
Desde um passado remoto os chineses produziam vinhos e bebidas destiladas. Nos ateremos ao vinho, em específico, cuja tradição tem um espaço próprio na cultura chinesa; e que é o que cabe nas dimensões que esse artigo se propõe.
Já na época do Shang se produziam vinhos diversos, mas o preferido era mesmo o de arroz. Uma lenda dizia que a mulher do imperador Yu, da dinastia anterior (Xia) havia criado o Huangju (o ‘Vinho amarelo’) a partir do milho, e descoberto a prática da fermentação dos grãos. Verdade ou não, os Shang difundiram intensamente o hábito de produzir e beber vinhos. Além do vinho de arroz, conheciam-se também os vinhos de uva, maçã, laranja, frutas silvestres, sorgo, painço, além do de milho e de ervas aromáticas. Em geral eram servidos na temperatura ambiente (em dias ou noites quentes) ou aquecidos previamente, em infusões nas quais se misturavam mel, melado, frutas, condimentos (cravo, canela, pimenta) e ervas medicinais.
De fato, os Shang eram conhecidos por exagerar na dose, realizando grandes orgias regadas a vinho. Grande parte dos vasos de bronze que achamos dessa civilização são copos de bebida. Interessante é notar que os críticos dos Shang nunca os acusaram de imoralidade por beber ou fazer orgias; acusaram-nos de fazer demais, descuidando da nação. O problema do excesso nos mostra o lastro da sabedoria chinesa: a culpa é das pessoas, e não das coisas.
Na época Zhou, que os sucedeu, nada muda substancialmente nesse panorama. É o que Confúcio nos indicará em um famoso texto do Shujing, que busca orientar a sociedade sobre a questão do álcool. O problema é o excesso, mas proibi-lo é uma utopia. O vinho possui a virtude de relaxar o corpo, congregar os amigos, ajudar na digestão e saudar os ancestrais. Do nobre ao camponês, o vinho é uma benção no final de um dia de labuta. Só o parvo o usa de modo errado; e o parvo, sempre ele, claro, crias as normas sobre o errado, e serve de índice para o engano:
Ouvi constantemente minhas instruções, todos vós, meus altos funcionários e chefes de seção, todos vós, meus nobres principais; quando houverdes cumprido amplamente o vosso dever na atenção de vossos maiores e no serviço de vosso governante, podereis comer e beber livremente até saciar-vos. E para falar de coisas mais importantes: quando puderdes manter constantemente um exame vigilante de vós mesmos e vossa conduta esteja de acordo com a virtude correta, então podereis apresentar as oferendas do sacrifício e ao mesmo tempo entregar-vos às festividades. Nesse caso sereis verda¬deiramente ministros que prestais o devido serviço ao vosso rei o Céu aprovará igualmente vossa grande virtude, de modo que nunca sereis esquecidos na Casa Real.
Confúcio sabia claramente disso; no Liji, ele – grande mestre dos letrados, que tinha um pé na cozinha – discorre sobre o uso do vinho com os alimentos, ou mesmo para comemorações e recepções:
[São as] Bebidas: Vinho com mel, vinho de arroz coado e espesso, vinho de milho coado ou espesso, vinho de sorgo coado ou espesso, vinho de papas de arroz e milho, arroz diluído, licor da armênia, em abundância, licor de crostas de arroz, vinho de uva, vinho branco.
Essa pequena lista é o estofo de outros capítulos do Liji (42 e 44) em que Confúcio explica os procedimentos para bebedeiras (festas alcoólicas, mais corretamente) e banquetes. Ao longo do Liji, são mais de 40 citações ao uso de bebidas em todos os tipos de cerimônias (inclusive, ‘beber defuntos’ ou cerimônias oficiais).
Há que se argumentar se não havia opções na época, como sucos ou o chá (que chegou muitos séculos depois na China, ao contrário do que se pensa). Por inversão, porém, o vinho não parou de ser bebido com o surgimento de outras bebidas; é necessário encarar a questão de que as sociedades desenvolvem gostos particulares sobre os alimentos e bebidas, e que eles não são facilmente substituídos por imposições de consumo industriais (mais fácil, na verdade, as empresas se adequarem a essas predileções).
Após o Liji
Mas voltemos ao passado. Os chineses adoravam vinho, e continuaram apreciando-o, de todos os modos. A própria palavra chinesa para bebida ( 酒 Jiu) designa qualquer líquido alcoólico, mas os chineses nutriam sua paixão pelos fermentados, fáceis de produzir, agradáveis de saborear e com uma larga margem para as invenções.
Se não estabeleceram grandes marcas ou denominações, é porque o gosto chinês atinha-se ao rito de consumo, mais do que o sabor. Desde o bodegueiro até o camponês, cada um tinha sua receita de vinho. Vinhos da região de Shaoxing, por exemplo, ficaram famosos por serem estupidamente alcoólicos; mas cada localidade tinha suas variações. Onde haviam lichias, amoras, pêssegos, morangos, essas eram adicionadas a uma base de vinho; em áreas tropicais, banana, coco, condimentos, especiarias importadas e ervas davam o tom. Cada produtor tinha seu vinho; alguns eram inclusive, guardados debaixo da terra para envelhecer, descansar e pegar corpo. Um antigo conto do Soushenji (Histórias dos Espíritos) nos dá uma idéia do que era essa ‘especialização’ na fabricação do vinho, e o que era o ‘padrão ideal’:
Dixi era um nativo de Chungshan e sabia fazer "vinho de mil dias", capaz de manter um homem bêbedo durante mil dias. Havia um homem no mesmo distrito chamado Xuanshi que desejou provar o vinho em sua casa. No dia seguinte ele foi ver Dixi e pediu-lhe um gole; este último respondeu - "Meu vinho ainda não está completamente fermentado e não ouso oferecê-lo a você." - "Quero prová-lo assim mesmo", disse Xüan. Dixi não pôde dizer "não" e deu- lhe um copo. - "é delicioso," observou Xuan, "quero outro copo." - "Deve ir para casa agora," replicou Dixi. "Volte outro dia. Só esse copo o embebedará por mil dias." Xuan saiu parecendo um tanto tonto e ao chegar em casa morreu sob a influência do vinho. A família jamais desconfiou de nada: chorou-o e enterrou-o. Após três anos, Dixi disse consigo mesmo - "Xuan a esta hora já deve estar acordado. Preciso ir vê-lo." Quando chegou à casa de Xuan perguntou se este estava. A família surpreendeu-se muito e disse - "Morreu há muito. Até já tiramos o luto." Dixi ficou aflito e disse - "O que! foi efeito do meu maravilhoso vinho, capaz de embebedar um homem por mil dias. Ele deve estar a acordar agora mesmo." Deu, então, ordens para que a família de Xuan abrisse o sepulcro e o caixão para ver o que tinha acontecido. Ergueu-se uma nuvem de vapores da tumba, nuvem que se elevou até os céus e em seguida procederam a abertura do caixão. Quando a tampa foi retirada, viram o homem "morto" abrir os olhos, bocejar e dizer - "Oh! como é delicioso ficar bêbedo!" Depois perguntou a Dixi - "Que vinho é esse que você faz? Um só copo produziu esse efeito. Acabo de acordar. Que horas são?" As pessoas que estavam perto riram muito à custa dele mas, devido a forte exalação da tumba, cheiro intenso que lhes entrou pelas narinas, todos caíram bêbedos por três meses.
Ocasionalmente um vinho poderia obter certa fama para seu fabricante, mas a obsessão européia num cânone de regras fixas para o vinho nunca se sucedeu entre os chineses. Numa civilização gigantesca como essa, os parâmetros eram outros. A diversidade garantia, por si só, o destaque de um sabor único – e que fatalmente seria pouco conhecido numa sociedade repleta de fabricantes caseiros. Vinhos como Fenjiu, do século +6 (de sorgo, com absurdos 65% de nível alcoólico) ou Sanhua (que se afirma feito há quase mil anos pelos habitantes da região de Guilin, com água e ervas especiais e também, com mais de 50% de teor) são exceções, e cuja vagueza da denominação ou origem impedem a construção de uma ‘tradição’ nos moldes enológicos ocidentais.
Em tempos de crise, as bebidas também servem para esquecer, e os chineses também sabiam disso. Um grupo chamado ‘sete sábios do bosque de bambu’, por exemplo, vivia embriagado para se alienar da crise que devastava o país após a queda dos Han no século +3. Isso na verdade criou uma tradição de poetas bêbados. Em busca de inspiração, esses artistas embebedavam-se de vinho; e depois, quando descobriram que o vinho era a própria inspiração, começaram a cantá-lo também. Tao Qian (Tao Yuanming) escancara o sentimento de amizade por meio do vinho;
Velhos amigos compartilham da minha pobreza
Chegam com jarras de vinhos e esteiras [...]
Tudo fica longe, nos perdemos por completo
Ah, esse vinho tem sabores insondáveis!
Em outra passagem, ele diz:
Bebo uma taça e minhas preocupações desaparecem
Bebo outra e até me esqueço do céu
Libai, da época Tang, outro inesquecível poeta chinês (cujo conjunto poético chega a ter quase 20% das poesias destinadas ao vinho) também se derramava intimamente ao sabor da ‘embriaguez calculada’:
Um jarro de vinho entre as flores,
bebo sozinho - nenhum amigo me acompanha.
Alço minha taça, convido a lua
e minha sombra - agora somos três.
A lua não bebe
e minha sombra apenas imita meus gestos.
Mesmo assim, são elas as minhas companhias.
É primavera, tempo de festa -
canto, a lua escuta e cintila;
danço, minha sombra se agita, animada.
Enquanto estou sóbrio, juntos estamos os três;
quando me embriago, cada um segue seu rumo.
Selamos uma amizade que nenhum mortal conhece.
E juramos nos encontrar na via láctea.
Sua teorização sobre o vinho dava na seguinte fórmula:
Li Qingzhao (época Song), a fantástica poetisa chinesa, arrematava a expressão do íntimo com a ajuda do vinho:
Nunca me esquecerei daquela tarde no pavilhão à beira do rio.
Tontos de tanto vinho, não achávamos o caminho de volta.
E zonza ainda, a felicidade retardava o nosso barco,
Enquanto avançávamos no verde denso dos lótus em flor,
Até irrompermos na margem, espantando garças e gaivotas.
Ou
Quanta saudade de minha terra natal!
Como esquecê-la, a não ser embriagada?
Na hora de dormir, queimei áloe no porta-incenso.
Foi-se dele a embriaguez, ficou a do vinho.
Ao longo do séculos, o hábito do vinho se transformou num ritual a parte. As jantas com vinho passaram a ser acompanhadas de jogos e divagações. Os gregos abandonaram os banquetes platônicos há séculos; os chineses, contudo, mantiveram (e mesmo, instituíram) a bebedeira sadia que levava à contemplação.
Curiosamente, isso não tornou a China uma nação de bêbados; ao contrário, se há um lugar onde se aprecia o vinho com cuidado é lá (ressalva, claro, a França). Que se entenda: nessa sociedade gregária, a aparência e o bom entendimento com familiares, amigos e colegas é uma regra sólida, e a inconveniência é tida como uma vergonha absoluta. Bêbados, somente os divertidos, piadistas ou solitários. O alcoolismo degenerado não é bem visto - e ainda assim, nessa cultura paradoxal, ele é tratado como um problema individual, menos que uma doença ou vício. Há pontos de acupuntura que inibem o desejo de álcool, mas que dependem do paciente ir até o médico – ou seja, não é mais que evidente que o desejo de beber (demais, de menos, idealmente) ou abster-se é um critério individual?
Passados os séculos, os chineses continuam a tomar vinhos, mas a situação mudou em alguns aspectos. A ideologia de austeridade comunista reduziu bastante o aspecto hedônico do vinho, mas mesmo assim, não diminuiu drasticamente o seu consumo. Sumiram muitas das receitas ou fabricações caseiras, mas as fábricas criaram os padrões de produção que conhecemos. Os chineses, desejosos de entrar no mercado internacional em todos os aspectos, resolveram também adotar os parâmetros europeus de qualidade para vinhos de uva. Falta muito, ainda, dizem os enólogos ocidentais, para eles fazerem um vinho reconhecido internacionalmente; contudo, o avanço chinês nos últimos cinco anos foi muito maior do que o do Bras... Bom, deixa pra lá.
Resumo de tudo
A história do vinho na China demonstra uma paixão pelas bebidas que não caiu na vulgaridade. Não é uma nação de alcoólatras, mas de bebedores. Com sapiência, o vinho é um prazer; com estupidez e ignorância, mesmo um singelo copo de café se torna um inimigo.
Muitas das poesias que apreciamos foram feitas sob efeito da leve embriaguez; a lista dos gênios que apreciavam um bom vinho, ou mesmo uma cerveja, é enorme. Quanto a lista dos ‘grandes’ que eram abstêmios em tudo, vai Hitler – não bebia, não fumava e era vegetariano. Até mesmo o primeiro milagre de Jesus foi reproduzir o vinho. Como eu disse desde o início, esse texto não é uma apologia do vício, mas de apreciação de coisas boas da vida.
Os chineses nos ensinaram que beber um pouco não faz mal. Se embriagar em segurança às vezes é um prazer - se bem acompanhados, e se soubermos não ultrapassar os limites do conveniente. Temamos aqueles que exalam moralidade, e que por baixo de suas belas roupas, sempre arrumadas, escondem sempre as piores intenções possíveis.
Por fim, termino texto com o relato de uma de minhas experiências com um legítimo ‘vinho’ chinês. Foi no Rio de janeiro, quando fui num restaurante chinês de chineses escondido num canto da cidade. Era hora do almoço, e estava vazio, pois era muito pouco conhecido. Diante de um panorama desse, há que se recear. Mas eu gostei, me permitiu uma intimidade maior com os donos. Ainda ensaiava meus passos no chinês, e por isso a conversa alternou em três idiomas (meu mau chinês, o português ruim deles e nosso péssimo inglês comum). A entrada foi ótima, com wonton’s (ou huntun), uma forma de pastel em geral cozida, mas que eles serviam fritos também. Pedi desses fritos, que vieram numa folha fina de massa, cuja ponta, apenas, estava recheada de frango agridoce ou repolho frito com molho de soja. O prato principal foi macarrão de arroz com pedaços de porco, vegetais e algumas coisas que não identifiquei (e eles também não quiseram dizer, mas isso faz parte da arte de cozinhar). Quanto a beber, pedi um chá chinês (essa é um daqueles momentos em que a gente quase pede uma coca-cola por hábito, e magoa um bom cozinheiro, que gosta de ver seus pratos serem saboreados). Os dois velhinhos estavam gostando de me ver adorar a comida deles. Por fim, para finalizar, me ofereceram um copo de ‘vinho da casa’. Já tinha ido ao Rio Grande do Sul alguns anos antes, e aprendido a apreciar bom vinho (e saber quando um é uma porcaria), o que me deu um certo receio. Mas vamos lá, era a hora; aceitei o gole, que parecia quase um coquetel de ‘saque’ com algum sabor de fruta e condimento. Não sei dizer exatamente a sensação; era forte, diferente, de início chocava e afastava. No entanto, umas duas ou três bicadas depois, e aquele gole se tornou suave, aprazível, como se fosse possível bebê-lo de litro. Não saí tonto, mas feliz. Havia um gosto bom na boca. Anos depois que fui entender a honraria: haviam me dado uma prova do seu vinho, que fosse bom ou ruim, era deles. Eu testemunhara uma antiga tradição chinesa, que só me fez sentido agora.
Todavia, a experiência não se perdeu por inteiro. Aquele vinho me lembrou (por associação, claro) dos tempos em que, com alguns poucos trocados no bolso, era possível se reunir com os amigos, comprar um garrafão de vinho ordinário e ser feliz pelo simples prazer de estar com as pessoas ao seu lado. Onde foi parar toda essa feliz simplicidade? Quando termina a saudável experiência da comunhão de espíritos embriagados, de modo que ela vire vício, depravação ou que se preserve, apenas, na poesia?
Confúcio discursou sobre o abuso do álcool
Confúcio discursou sobre o abuso das palavras
Confúcio abusava dos discursos quando não bebia
(Livro das Canções Outonais)
Mistérios engarrafados... quem se habilita? Quem encara um bom vinho de botija, longe das garrafas bonitas e assépticas com que nos acostumamos?
Nota: os poemas de Li Qingzhao foram emprestados de Sérgio Capparelli, em www.capparelli.com.br
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