Conselho Chinês


Há apenas duas coisas com que você deve se preocupar;
Se você está bem ou se você está doente:
Se você está bem, não há nada com que se preocupar.
Se você está doente, há duas coisas com que se preocupar:
Se você vai se curar ou se vai morrer.
Se você vai se curar, não há nada com que se preocupar.
Se você vai morrer, há duas coisas com que se preocupar:
Se você vai para o céu ou vai para o inferno.
Se você vai para o céu, não há nada com que se preocupar.
Agora, se você for para o inferno, estará tão ocupado cumprimentando os velhos amigos, que nem terá tempo de se preocupar.
Então, pra que se preocupar?

Recebi essa divertida história de uma amiga querida, e não sei quem é o autor. Atualmente, ela circula pela internet e tem sido divulgada com um razoável sucesso. De qualquer forma, quem a escreveu captou bem a ideia de desprendimento dos caminhantes – ainda que pensar uma tal história como sendo ‘chinesa’, apenas pelo texto ser irônico, é um tanto estereotipado. Eu a li e ri; e tenho por costume não analisar piadas, mas em se tratando de um ‘conselho chinês’, parei para refletir um pouco sobre sua mensagem. Afinal, antes de soltar aquele fatídico ‘é verdade’ - a velha concordância tácita com um apólogo moral – precisei pensar o quanto, de fato, esse conselho poderia ser aplicável na vida cotidiana.

Acredito que os chineses comuns apreciariam esse conselho, pois que ele cumpre os itens principais para ser um conto ou um provérbio; sintetizar uma ideia de forma rápida e clara, deixando poucas brechas para a discussão. E bem... é justamente por isso que eu começo a discuti-lo.

Confúcio teria dito uma vez: ‘Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para recuperá-la. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente nem no futuro. Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido’. Esse, portanto, seria também um outro tipo de provérbio, mas que se choca inteligentemente com o conselho anterior. Temos aí uma constatação: em geral, as pessoas não se preocupam se vão ficar doentes, ou não a buscam conscientemente. A doença vem, na concepção chinesa, pela desarmonia interna. Focar muito a uma coisa só, gastar tremendamente a energia na obsessão ou na dispersão, isso desarranja as energias internas, e quebra o equilíbrio que compensa as tensões. Contudo, não é um estado de equilíbrio estático, mas de ajuste constante; e assim, a saúde depende também de sua constante manutenção contra a degenerescência. Em última instância, os caminhantes levaram isso ao extremo de acreditar na imortalidade, o que não pretendemos aqui de modo algum. Então, há que se preocupar em manter o equilíbrio. A prevenção contra a doença existe enquanto há saúde; na doença, o desejo de recuperação envolve, muitas vezes, promessas íntimas de mudança de comportamento – mas essas podem ou não se concretizar.

É a incerteza da cura que provoca o medo da morte; é a anulação das pretensões do futuro que sacode os planos do presente. E o futuro deve ser planejado e pensando enquanto há saúde. Os empreendimentos devem ser iniciados em épocas tranqüilas; nas crises, eles são forçados pelas circunstâncias, e incertos nos resultados. Deste modo, somente um insano deixaria de se preocupar com o futuro. A perspectiva da doença impeditiva, ou mesmo da morte, são capazes de desorganizar os planos daquele que busca a sabedoria. O tempo é sempre escasso, e nunca é o suficiente, para quem almeja o conhecimento. O próprio Confúcio sentiu sua vida incompleta perto do fim; a dificuldade frente à morte não é o céu ou o inferno, mas o desejo de fazer mais, de sentir que uma missão não foi devidamente completada.

Paradoxalmente, existem milhares de ‘bons religiosos’ que, em face da morte, ao invés de agradecerem a oportunidade de ir para o céu, imploram insistentemente por mais tempo na terra. O desejo de permanecer vivo resulta da incerteza do além ou da incerteza sobre a própria redenção? Por essa razão, talvez o sábio não tema morrer pela morte em si, mas por sentir sempre a angústia de querer saber mais.

A aposta no destino transcende (o céu ou o inferno) não depende, pois, de se acreditar neles, mas de transpô-los para a nossa realidade. Realizar a boa vida, aqui, é o espelho do plano celeste; mas essa ‘vida correta’ é um curso de sabedoria, no qual a sapiência, conjugada com o ideal da vida sossegada, trazem a harmonia. Esse é o céu de agora, a harmonia com as leis da natureza, a ecologia confucionista; o céu do além só pode ser, por conseguinte, a realização plena, potencial e aprofundada desse mesmo sistema. Não se pode responder ao transcendente com um bocejo ou desleixo; mas sua construção depende do presente, no qual se planeia o futuro e a manutenção da ordem (harmonia)- e não será essa a preocupação mais legítima possível?

Zigong disse: "As opiniões de nosso Mestre sobre cultura podem ser compiladas, mas não é possível escutar suas opiniões sobre a natureza das coisas e sobre o Caminho para o Céu". Zigong disse isso por apenas uma razão: porque Confúcio afirmou que,

"Quando se ofende o céu, qualquer prece é inútil."

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