Da Evolução do Espírito



Zapotzu andava pela rua, um dia, quando deparou com um velho louco praticando um estranho tipo de respiração. Curioso, resolveu perguntar ao velho que técnica era aquela que ele nunca tinha visto. O homem respondeu:

- Fui eu que criei. Li alguns manuais, e inventei meu próprio método.
- E o que você pretende alcançar com essa respiração?, Perguntou Zapotzu.
- Vou alcançar o nirvana em um mês.
-Como?, Disse mestre Za um tanto estarrecido.
- Sim. Antigamente, tudo era mais atrasado, menos desenvolvido. Por isso, demorava-se anos para chegar ao nirvana. Mas como o mundo evoluiu, as técnicas também, e hoje se pode chegar ao nirvana mais rápido.

Zapotzu sorriu gentilmente, mas ficou encucado com aquela afirmação aparentemente tão estapafúrdia. Como de costume, porém, Zapotzu gostava de discutir as coisas, antes de criar juízos.

À noite, ele se encontrou com alguns outros pensadores, e propôs a eles a história que havia testemunhado pela manhã. O primeiro a objetar sobre a questão foi um acadêmico:

- acho que ele está equivocado. Onde já se viu tal coisa? Há uma tradição nisso, que envolve muito estudo, e que não se altera de uma hora para outra. Isso é devaneio. Não se respira, nem se medita, de qualquer jeito. Falar de nirvana, então, é mais complicado ainda. Ele está errado.

Mestre Za ponderou, e respondeu:

- Mas Confúcio dizia que, do antigo, descobrimos o novo. As coisas evoluem. Acreditar que uma técnica, que funcionava há mil anos atrás, não deve ser mudada é um passo para o erro;  afinal, o próprio mundo não mudou? Aliás, se Confúcio não falou de nirvana, isso não quer dizer que ele não exista. Devemos acompanhar a mutação, e isso significa evoluir. Não estaria o louco, então, correto?

O acadêmico ficou quieto, pensativo. Nisso, o filósofo caminhante falou:

- O mundo piorou. Hoje se devasta a natureza, se matam as florestas e degradam-se os rios. Ninguém pratica o desapego. Como o mundo poderia ter evoluído? Os espíritos se perderam, isso sim.

Mestre Za, sempre cuidadoso, colheu essas palavras e disse:

- Por outro lado, as florestas e rios são devastados desde antigamente, mas só agora vejo as pessoas defendendo a natureza. Isso tem, inclusive, um custo para abundância econômica, que muitos estão dispostos a aceitar. Tal postura não demonstra um certo desapego? Aliás, que eu saiba, Laozi, os sábios de Huainan, e outros caminhantes eminentes diziam que, para as pessoas buscarem a harmonia com a natureza, precisavam estar com as panças cheias e a cabeça sossegada. As conquistas humanas ajudaram as pessoas a terem melhores condições de vida, levando-as a ter mais conforto, mas prestando atenção nas causas do mundo, tal como a agressão à natureza. Por fim, só se pode desapegar quem tem algo. Parece curioso, mas talvez hoje as pessoas estejam mais próximas de escolher, refutar e se desapegar do que antes, quando eram obrigadas a sobriedade. Não seria isso, então, uma evolução?

O caminhante ruminou esses argumentos em silêncio. Foi a vez, no seguir, do monge budista argumentar, dizendo;

 - Bem, deixe-me falar sobre nirvana. Nirvana é uma conquista espiritual, uma libertação, a iluminação individual. Ele existe porque os problemas humanos são os mesmos de sempre. Como afirmar que alguém pode eliminar esses problemas mais rapidamente, se o mundo continua o mesmo? O louco disse bobagem. Vai ter que respirar muito...

Diante de um especialista, Za aprofundou sua reflexão, e respondeu;

- Me perdoe perguntar, caro monge, mas os budistas buscam iluminação espiritual, correto?
- Correto, mestre Za.
- Bem, existem hoje mais budistas do que antes, correto?
- Correto novamente, mestre Za.
- Ora, se não me falha a lógica, se há mais gente buscando a iluminação, não houve, assim, certa evolução da humanidade?
- Pode ser mestre Za. Também há mais gente, hoje, do que antes.
- Sim, caro colega. Mas antes, o budismo só existia na Índia. Hoje se espalhou por diversos povos. Isso não representa um real crescimento dessa mensagem?
- De fato, mestre Za.
- Mas colega, isso tudo eu afirmo porque entendo que vocês buscam algum tipo de iluminação espiritual, que você chama de nirvana. O senhor já o alcançou?
- Não mestre Za, quem me dera...
- Bem, se o senhor não chegou ao nirvana, como pode afirmar que ele não pode ser alcançado em um mês, um ano, ou mesmo um dia? Se Buda demorou a chegar, é porque foi o primeiro. Depois que se aprende o método, no entanto, não fica mais fácil segui-lo?

O monge concordou, e ficou quieto. Mestre Za contemplou os argumentos, ponderou mais uma vez, e disse:

- Me parece que realmente houve evolução espiritual. A técnica apenas a acompanhou. Ainda há maldade e ignorância, mas há mais e mais recursos para estudar, refletir e praticar um humanismo digno. Tudo isso permite o desapego, o exercício do desprendimento. Há hoje, mais do que nunca, a possibilidade de pensar livremente, e conhecer formas de meditar e evoluir espiritualmente. Por outro lado, há tanto sendo oferecido para conhecer, saber e crer, que nos perdemos num mar de fragmentos de doutrinas, e bolamos sistemas sem conhecer ao certo seus fundamentos. Essa postura é uma caminhada direta em direção ao engano. Por isso, eu acredito que o louco está certo. Só um louco pode achar que vai atingir o nirvana em um mês. Mas como afirmar que ele não vai? E aceitar isso - a dúvida - não é, afinal, uma evolução de nosso espírito, mais tolerante e compreensivo com os outros? O louco me ensinou essa lição, e por isso, temo agora criticá-lo.

E ficaram todos quietos, pensando, e se pegaram prestando atenção se estavam respirando corretamente. 

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