ANDRE
Introdução
O
Daodejing 道德經 [em
outras grafias, Tao Te Ching ou Tao Te King] constitui uma fonte fundadora do
pensamento daoísta chinês. O texto teria
sido composto por Laozi 老子, em torno do séc. -6, sobre o qual se tem
poucas informações, basicamente presentes na biografia feita por Sima Qian 司馬遷 [-145
a -90] no Shiji 史記, praticamente quatro séculos depois. Isso deu margem a diversos
tipos de suposição sobre a vida do Mestre, inclusive sua existência. Todavia,
esse é um texto bem conhecido na China, e talvez o mais divulgado, junto com o
Lunyu 論語 de
Confúcio 孔夫子 [-551 a -479]. O Daodejing, porém, é mais
acessível, poético e sucinto, razão de sua atração. Sua leitura, no entanto, é
complexa, e demanda um profundo – ou ao menos, desenvolvido – raciocínio
filosófico e interpretativo.
O
Daodejing deu origem ao pensamento dos ‘Caminhantes’ [Daoísmo], que cedo se
dividiram entre os ‘pensadores’ [Daojia 道家, ou Escola do Dao] e os ‘religiosos’
[Daojiao 道教,
ou Ensinos do Dao]. No âmbito da Filosofia Chinesa, os ‘pensadores’
diluíram-se, incorporando-se [e incorporando] outras linhas de pensar chinesas.
Já a ‘religião daoísta’ consolidou-se como uma forma de culto bem estabelecida,
sincretizada com a religião popular [Shenjiao 神教, ou Ensinos dos Espíritos]. É notável
imaginar que ambas as visões tenham o Daodejing como texto fundador, já que
constituem pontos de vista bem distintos. Contudo, a religião daoísta pretende
a elaboração de uma abordagem igualmente filosófica que permite
concomitantemente, assim, a existência de Laozi como um pensador e santo do
Daoísmo.
De
fato, essa ligeira introdução é necessária para compreender que tipos de
tradução iremos analisar aqui. Foge ao nosso escopo, por exemplo, a resenha de
‘Te Tao Ching’, traduzido por Robert Henricks [1992], a partir das descobertas
de Mawangdui 馬王堆,
cuja ordem dos dois livros – Dao 道 [Caminho] e De 德 [Virtude] aparece invertida. Aqui, vale uma
postura tradicionalmente defendida na Sinologia que é: depois da dinastia Han 漢朝 [-206
a +221], esses textos estão praticamente consolidados nas formas que conhecemos
hoje. Desse modo, é relevante pensar que
poderiam existir versões diferentes do texto até o século -3. Isso, porém, só
serve para a própria história do livro, mas não do Daoísmo como um todo, que
tem por base a versão consolidada que hora discutimos. Assim, o que dispomos é
de uma série de traduções feitas com base no texto tradicional [ou oficial],
sobre a qual se assenta o discurso daoísta – filosófico e religioso, antigo e
moderno.
Tal
condição é importante para esclarecer que versões iremos debater. O Daoísmo, no
Brasil, pode ser encontrando em três abordagens distintas: a primeira, acadêmica,
ainda é esporádica e contextual, mas já apresenta algumas produções de relevo;
a segunda é a do Daoísmo religioso, trazido por mestres chineses como Wu Chao
Hsiang [Wu Chaoxiang, 1917 a 2000] e seu filho Wu Jyh Cherng [Wu Zhixeng, 1958
a 2004] e Liu Pai Lin [1907 a 2000, cuja abordagem oscilava entre a filosofia e
a religiosidade daoísta]; e, por fim, a abordagem exotérica, ampla consumidora
de obras daoístas, mas em caráter superficial e pouco preciso.
Obviamente,
essa separação só pode ser feita por uma leitura especializada. Afinal, algumas
das versões do Daodejing foram publicadas por editoras voltadas ao público
exotérico, bem como as análises religiosas do Daoísmo são facilmente absorvidas
pelos mesmos. O objetivo dessa nossa revisão, portanto, é apresentar aqueles
materiais que, numa visão sinológica, se tratam de versões que possam ser lidas
e pensadas de maneira acadêmica. Nisso, claro, minha opinião como leitor, e
autor dessa resenha, confundem-se claramente com minhas posturas sinológicas,
determinando de antemão que eu assuma as opiniões aqui apresentadas. Ver-se-á,
porém, que minha intenção é analisar os textos que considero como sérios,
utilizáveis para uma pesquisa científica e universitária. Não é da minha
alçada, portanto, discutir versões que possam ser lidas como auto-ajuda, nem os
seus méritos ou problemas; minha apreciação diz respeito á viabilidade de ler
essas traduções como fontes confiáveis para um estudo mais sério.
No
mais, limitarei a análise das obras publicadas no contexto brasileiro,
entendendo a sua circulação e possível aquisição. Obras portuguesas, ainda que
esporadicamente disponíveis, justamente por não representarem uma constante
entre o possível público em nosso país, não serão analisadas.
A primeira versão: Lin Yutang, 1945
Em
1945, a primeira versão do Daodejing surgiu no Brasil na coletânea de Lin
Yutang, ‘A Sabedoria de Índia e China’. As obras de Lin Yutang 林語堂 [1895 a 1976] desfrutavam de sucesso no
mercado brasileiro, e a editora Ponguetti encarregou-se de traduzir grande
parte delas. A ‘Sabedoria de Índia e China’ foi traduzida por um grupo seleto e
destacado de especialistas e literatos brasileiros, cujo esmero e capacidades
foram pontualmente ofuscados por certas confusões conceituais e terminológicas.
Um exemplo clássico é a tradução da palavra ‘Céu’ por ‘Deus’, numa evidente
associação cristã, como acontece com os textos de Confúcio da mesma coletânea.
Por outro lado, a tentativa de manter o tom poético recriou outras passagens do
texto, com o uso de palavras um tanto quanto distantes do original. Contudo, a
tradução foi feita do inglês [já com algumas dessas modificações], bem como os
tradutores se depararam pela primeira vez com textos da Cultura Chinesa, o que
os isenta da maior parte dos possíveis equívocos e pecadilhos. Trata-se, porém, de uma tradução responsável
e cuidadosa, capaz de escapar de uma mera estereotipização religiosa. A versão
consegue manter o tom espiritualizado de Laozi, sem tratá-lo de forma dogmática
ou exotérica, e preserva as possibilidades de uma abordagem filosófica
criteriosa.
Tomio Kikuchi, 1966
A
tradução de Lin Yutang só ficaria solitária até 1966, quando a versão de
Kikuchi, ‘Moral Universal de Lao Tsé e Essência do Oriente’ foi lançada. A
tradução se incluía em um programa cultural mais amplo, relacionado à
alimentação Macrobiótica, no qual o professor Kikuchi, vindo do Japão, era
promotor. As qualificações acadêmicas e lingüísticas do tradutor devem ser
levadas em conta, posto que privilegiam seu acesso ao texto original; todavia,
por estar inserida em um programa específico de pensamento que não está
diretamente ligado ao Daoísmo, a versão exige uma atenção especial em sua
leitura e emprego.
Richard Wilhelm, 1978
Foi
a editora Pensamento, conhecida por seu vasto catálogo de obras exotéricas, que
publicou a excelente versão de Richard Wilhelm [1873 a 1930], composta no
início do século 20, intitulada ‘Tao Te King’.
Wilhelm
era um pastor alemão que fora à China converter o povo ao Cristianismo, mas que
acabou tornando-se um dos maiores sinólogos e tradutores da Civilização
Chinesa. Ocasionalmente, suas obras são consideradas religiosas ou exotéricas,
dada a sua abordagem das crenças chinesas, ou mesmo, da sua defesa da eficácia
do Ijing 易經 [Tratado das Mutações]
como oráculo. Isso, porém, não desmerece a qualidade de suas obras. Wilhelm
traduzia os textos do chinês para o alemão, e depois, traduzia novamente para o
chinês, para comparar a precisão de seu texto. Por conta disso, a tradução do
Ijing e do Daodejing demorou anos, mas alcançou um nível de cuidado e
sensibilidade reconhecido pelos próprios mestres daoístas chineses como
excelente.
A
tradução para o português conseguiu conservar a maior parte das conquistas de
Wilhelm, bem como suas introduções elucidativas. Assim, essa tradução
qualifica-se para uma abordagem multifacetada do Daodejing, permitindo-nos
interpretar as inferências filosóficas e religiosas chinesas.
Huberto Rohden, 1982
Curiosamente,
uma boa – mas pouco conhecida – versão do Daodejing é a do filosofo catarinense
Huberto Rohden [1893-1981], dono de uma vasta obra, na qual se inclui o ‘Tao Te
Ching – o livro que revela a Deus’. Rohden era defensor de uma proposta
filosófica original, que defendia uma integração universal do pensamento
metafísico, cujas características complexas só podem ser mais bem avaliadas
pela leitura de seus livros. Aparentemente, a sua tradução não foi feita do
chinês; mas o que torna essa versão do Daodejing importante é a releitura que
ele faz do texto, inserindo-o em seu sistema filosófico, e estabelecendo com
ela um legítimo diálogo ‘Ocidente-Oriente’. O próprio título revela a
preocupação de realizar uma projeção religiosa sobre o texto; contudo, a
apresentação de Rohden não descamba para uma abordagem exotérica superficial,
mas mantém a integridade de um raciocínio lúcido e perscrutador, que investiga
o pensar chinês em busca de respostas. Desse modo, é necessário dizer que a
precisão com a terminologia chinesa se vê um tanto prejudicada; por outro lado,
ao captar [e transmitir] uma essencialidade da obra, bem como uma abordagem
filosófica Ocidental, Rohden conseguiu propor o livro de uma maneira original,
que vale ser conferida como fonte.
Murillo Nunes de Azevedo, 1992
‘O
livro do Caminho Perfeito – Tao Te Ching’ é a tradução de Murillo Nunes de
Azevedo [1920 a 2006], pensador brasileiro com intenso trânsito em disciplinas
asiáticas [foi monge budista] e na Teosofia. Posto que a Sociedade Teosófica,
com a qual ele se relacionava diretamente, é uma das agremiações mais comumente
associadas às práticas esoteristas, e que o livro foi publicado pela editora
‘Pensamento’, estaríamos diante de mais um caso [como o de Wilhelm e Kikuchi]
em que nossa tendência seria de classificar a obra como ‘exotérica’. Mas a
tradução de Murillo é de uma sensibilidade tremenda, capaz de captar e
transmitir a essência do Daoísmo de Laozi. Usando de sua experiência com as
doutrinas ‘orientais’, Murillo conseguiu ler o texto de uma forma profunda,
transformando-o em imagens brilhantes que surgem em cada um dos comentários que
é apresentado após os poemas. O seu texto, pois, além de bem produzido,
torna-se um guia para a leitura do Daodejing, possibilitando um acesso
consciente tanto ao especialista como ao leigo. Por fim, as inserções de
caráter sapiencial ajudam a explicar e entender o texto, o que o enriquece
sobremaneira. É notável que essa característica pode virtualmente torná-lo um
manual de auto-ajuda; todavia, se todos os guias de auto-ajuda fossem assim, eu
seria obrigado a rever minhas opiniões sobre essa categoria de livros. Assim, a
versão de Murillo facilmente emparelha com as outras já comentadas, mas possui
o caráter didático que muitas vezes falta às versões acadêmicas.
Wu Jyh Cherng, 1998
O
Mestre e Sacerdote daoísta Wu Jyh Cherng 武志成 produziu
uma tradução do Daodejing em 1998, que deve ser aqui indicada. Além de ser uma
versão direta do chinês para o português, ela nos põe em contato com o legítimo
pensamento religioso chinês, tratando-se então de uma versão de grande riqueza
antropológica. O interessante nessa tradução é buscar as conexões estabelecidas
entre o texto e o Daoísmo religioso difundido em nosso país pelo Mestre Cherng,
o que caracteriza uma abordagem relativamente diferente daquelas que podemos
classificar como literárias e filosóficas. Não que a dele não se propusesse,
também, filosófica: mas, inserida na mentalidade religiosa de sua comunidade,
ela nos proporciona um panorama alternativo e, por isso, relevante,
principalmente no que toca a compreensão das práticas religiosas chinesas.
Mário Bruno Sproviero, 2000/2002
‘Daodejing
– Escritos do Curso e sua Virtude’, de Mário B. Sproviero, é a primeira
tradução absolutamente nacional, feita por um especialista em literatura
chinesa. Sproviero fez um magistral uso da língua portuguesa, ao adaptar a
tradução versificada do texto chinês, criando uma imagem única, capaz de
transmitir a essência e de revelar o âmago de uma poesia altamente
espiritualizada e filosófica. Muitas vezes, é difícil combinar a correção da
tradução acadêmica com o vigor e a beleza da tradução livre, pois o que ganha
uma em sentido, perde em forma, e vice-versa. O trabalho artesanal de Sproviero
revela um domínio único do chinês, e uma habilidade ímpar em transcrevê-lo ao português.
Se já dispúnhamos de traduções capazes de dar conta dos aspectos filosóficos ou
religiosos do Daodejing, Sproviero conseguiu ir além, criando uma peça
literária, própria para o estudo sério, tanto quanto para a apreciação
estética. Esta tradução, pois, constitui-se obra indispensável na leitura do
Daodejing.
Burton Watson, 2002
Essa
versão se trata de uma ‘tradução-padrão’ do Daodejing, feita pelo prolixo e
altamente qualificado Burton Watson, cujo conjunto de trabalhos e traduções é
simplesmente maior, provavelmente, do que tudo que já foi publicado na área da
Sinologia no Brasil. Curioso, porém, é que essa versão é muito boa em termos
acadêmicos, mas não se destaca de modo específico em relação as outras. O
vocabulário conceitual é apropriado, correto, e consiste numa fonte segura para
o estudo do texto. Todavia, optou-se por um trabalho seguro, menos ousado ou
poético, sem um estudo mais amplo, mas com um texto acessível e correto, bem
reproduzido em português. É provável que a intenção de Watson fosse criar uma
versão de referência, que não incorresse em trechos dúbios, ambíguos ou criasse
pontos de tensão em relação à interpretação das passagens. Desse modo, sua
versão é absolutamente recomendável para estudos, mas é menos atraente em
termos estéticos e analíticos mais amplos.
Conclusão
Passada
mais de uma década, outras versões do Daodejing surgiram, mas não apresentam
dados relevantes para o nosso estudo, constituindo, em geral, obras de
divulgação sem maiores preocupações.
Diferente
das obras de Confúcio, o Daodejing foi contemplado, entretanto, com um escol de
tradutores dedicados e devidamente interessados na produção de traduções
responsáveis e adequadas. A presença das opções citadas permite ao estudioso
encaminhar suas análises sobre o Daodejing em bases relativamente seguras,
constituindo um bom ponto de partida para a compreensão do Daoísmo – seja
filosófico, religioso, ou ambos.
As
razões que poderíamos elencar – que o Daodejing seria um texto sucinto, rápido
ou simples – não justificam, ainda, a presença de tão boas traduções. É
possível que o esmero tenha ajuntado-se ao interesse legítimo e à própria
beleza que a natureza do texto nos traz, no momento de ‘transcriá-lo’ para o
português [mesmo nos casos chinês-inglês-português]. Há, contudo, um padrão
identificável no sucesso dessas versões, quiçá, ligado a apreensão do
‘espírito’ do texto. Se assim for, estamos bem providos de um acesso adequado –
e belo – ao Daoísmo no Brasil.
Nota Final: Daodejing, Tao Teh Ching ou Tao
Te King?
As
denominações usadas para a obra 道德經 correspondem às transcrições fonéticas do som
das palavras em chinês. O que ocorre é que, ao lidar com versões diferentes,
cada um terminou por grafar a forma que mais lhe convinha. A pronúncia
aproximada, em português, seria algo como ‘Dao Dê Jíng’, cujo ‘D’ tem um som
duro, como ‘d’ de ‘dado’ ou o ‘t’ de ‘tato’, e o ‘j’ um tanto soprado, como de
‘janela’. A pronúncia se presta mesmo à confusão, quando alfabetizada. Em
inglês, a transcrição fonética culminou em ‘Tao te ching’, e no alemão, o ‘k’
de ‘King’ representaria o som ‘ch’. A transcrição ‘Daodejing’ vem do sistema
pinyin 拼音,
usado na China continental, que tem se tornado padrão internacional. Nesse caso
específico, a pronúncia em português se aproxima bastante da original, tanto
sonora quanto da transcrição pinyin.
Traduções
[Ordenadas segundo o nome dos tradutores
originais]
Burton Watson. Tao Te Ching. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
Huberto Rohden. Tao Te Ching – o livro que
revela a Deus. São Paulo: Alvorada, 1982.
Lin Yutang. Sabedoria de Índia e China. Rio
de Janeiro: Ponguetti, 1945.
Mário Bruno Sproviero. Daodejing-Escritos do
Curso e da sua Virtude. São Paulo: Hedra, 2002 [1a versão: São Paulo: Mandruvá,
2000].
Murillo Nunes de Azevedo. O Livro do Caminho
Perfeito – o Tao Te Ching. São Paulo: Pensamento, 1992.
Richard Wilhelm. Tao Te King. São Paulo:
Pensamento, 1978.
Robert Henricks. Laozi: Te-Tao Ching. Nova
Iorque: Ballantines, 1992.
Tomio Kikuchi. Moral Universal de Lao Tsé e
Essência do Oriente. Belo Horizonte, s/Ed., 1966.
Wu Jyh Cherng. O Livro do Caminho e da
Virtude. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
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