Um Pós-Confucionismo?

Após quase um século de marxismo, a China retomou o estudo do confucionismo. Segundo o pesquisador americano Daniel Bell, “Enquanto tradição política dominante no país, o confucionismo é a alternativa óbvia.“ [Bell, 2010] Perseguida, humilhada e proibida, a doutrina confucionista sofreu agressões atrozes numa época presente da história – no entanto, depois de trinta anos após a morte de Maozedong, ela voltou a ser um dos temas fundamentais na pauta política e intelectual da China contemporânea. É possível, assim, falar de um pós-confucionismo?

Precisamos retomar o que foi o Confucionismo na história chinesa: uma doutrina muito mais filosófica do que religiosa, o confucionismo surgiu no século V a.C., logo após a morte de Confúcio [551 -479 a.C.], seu grande mestre. Ele defendia a importância fundamental da educação, a preparação das pessoas para a vida política e cotidiana, a valorização da família e o respeito à vida comunitária. Pacifista, propunha um governo austero e tranqüilo, que optasse pela justiça e pela sabedoria ao invés da violência. Por fim, Confúcio propunha uma ênfase no estudo da história, para ele, fonte de conhecimento fundamental e aprofundado da civilização. [Bueno, 2002, p.39].

O próprio Confúcio disse, nesta frase consagrada que mostra o cerne de seu pensamento: “sábio é aquele que, por meio do antigo, descobre o novo” [Analectos, cap.II]. A doutrina confucionista se transformou, desde seus inícios, num poderoso e influente sistema ético-social, cujas contribuições foram importantes para a arte de governar na China – e um bom exemplo é a própria durabilidade do império chinês, que existiu até 1912. Além disso, como dissemos, Confúcio propunha que o fundamento da preservação da cultura era a educação, o que propiciou o estabelecimento e a continuidade das tradições sem impedir, contudo, os progressos tecnológicos e intelectuais. Confúcio buscava, no passado, compreender as razões pelas quais a cultura (e nas suas práticas, a moral) se originava, se mantinha, se aplicava e por fim, se transformava. Na compreensão do passado, portanto, residia a compreensão das coisas.

Isso não impediu que o confucionismo engessasse em certas épocas da história. O chamado Neoconfucionismo, que teve grandes expoentes como Zhuxi [1130-1200 d.C.] – representou uma renovação dos estudos e propostas confucionistas. Tal condição demonstra que, apesar de todos os esforços, orientar a sociedade de maneira completa e abrangente era uma tarefa complexa, difícil e permanente. A educação seria um processo contínuo, que não deveria cessar, mas os interesses volúveis de certos governantes dificultaram, sempre, a manutenção deste princípio fundamental.

Assim, após as tormentas da revolução comunista, a China percebe e retoma, sem receios, as origens de sua cultura – e eles sabem, o grande zelador deste patrimônio foi Confúcio e a escola dos letrados, que por dois mil e seiscentos anos produziram a história e a antropologia desta civilização. Mais do que uma teoria política ou econômica, o confucionismo é um sistema de análise da vida, da formação dos seres humanos autônomos e conscientes, e o retorno desta doutrina como orientação fundamental do governo chinês era apenas uma questão de tempo, como bem afirmou Daniel Bell. As revoluções do século 20 tentaram destruí-lo e apagá-lo, o que se demonstrou tão equivocado e impossível quanto as perseguições promovidas contra os confucionistas pelo primeiro imperador da dinastia Qin, Qinshi Huangdi, no séc. -3, ou das destruições patrimoniais provocadas pelos movimentos sociais da história chinesa [Bueno, 2002, p.47-49]. Para os chineses, a ignorância pode atentar contra a sapiência, mas não pode submetê-la por muito tempo. A retomada do confucionismo vem ocupar o vazio ético e filosófico de um marxismo cansado, contraditório e cada vez mais distante do mundo. Confúcio, numa frase quase profética, afirmou que “Um povo mostra o quanto é educado pela consciência de seu passado” [Analectos, cap.II].

O resgate do confucionismo, pois, é o cumprimento destas proposições, e a reconstrução dos laços com o passado. Este confucionismo moderno, adaptado ao mundo contemporâneo, mas calcado nas tradições antigas é, se podemos considerá-lo assim, um pós-confucionismo, que incorpora as análises do confucionismo antigo, do neoconfucionismo, e os desafios dos séculos 20 e 21 num novo e instigante movimento social e intelectual.

Talvez por isso, um dos grandes intelectuais do Confucionismo, Mêncio, afirmou o seguinte: “O grande fim da ciência não é outro senão o de procurar a inteligência perdida”. [Mêncio, 2:1]

Referências
BELL, Daniel. China aposta no renascimento do confucionismo, 2010. Disponível em: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,china-aposta-no-renascimento-do-confucionismo,527215
BELL, Daniel. O partido Confucionista, 2009. Disponível em: https://noticias.bol.uol.com.br/internacional/2009/05/17/o-partido-confucionista.jhtm
BUENO, André. História da China Antiga. Rio de Janeiro: Ed.Tartaruga, 2000.
Confúcio. Analectos [Trad. Simon Leys]. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
Mêncio. Livro de Mêncio [Trad. Alfredo Doeblin]. Rio de Janeiro: Proj.Orientalismo, 2002. 

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