Dentre as civilizações atualmente existentes, a China é uma das únicas a conseguir manter viva, de uma forma bem própria, a sua estrutura religiosa básica. Dizemos "estrutura" pois não podemos afirmar com clareza que - além do daoísmo - a China tenha o que nós ocidentais classificamos propriamente como "religiões". Sejam quais forem os critérios que adotarmos, a tríade fundamental das crenças e do pensamento metafísico chinês - o confucionismo, o daoísmo e o budismo chinês - costumam usualmente escapar, de um lado ou de outro, de nossas tentativas de categorizá-las ou enquadrá-las.
Mas isso não significa, absolutamente, que a China seja uma civilização desprovida de religiosidade; ao contrário, um conjunto rico de crenças, costumes, supertições e mitologias continua a existir, e suas origens podem ser traçadas até uma antiguidade distante.
Do que trata, então, este artigo? A idéia que desenvolveremos adiante é de que o pensamento religioso chinês se orienta através de uma estrutura cosmológica e mental claramente definida, estabelecida em tempos ermos (porém rastreáveis) que fundamenta a sua relação com o que definimos pertencer ao campo do "religioso". Tal estrutura, eminentemente filosófica, foi capaz - no caso chinês - de organizar os métodos de exploração do real através de campos diversos que categorizamos como "ciência", "medicina", "história" e, no caso deste texto, "religião".
Por este motivo, mais do que organizar a interpretação das concepções religiosas, a estrutura básica do pensar chinês consegue explicá-la, análisá-la, de modo teológico e antropológico, ensejando mesmo a conexão com um passado anterior ao seu tempo de construção. As possibilidades geradas por esta íntima ligação permitem nos fazer compreender, por conseguinte, os fundamentos pelos quais a visão religiosa chinesa tem se desenvolvido ao longo dos séculos. Esta é, provavelmente, uma oportunidade única no campo da história das religiões.
Aspectos iniciais
Como analisei no meu artigo “A estrutura do pensar chinês”, desde um tempo remoto os chineses buscam explicar os significados de sua existência no real através de uma estrutura geradora (Li, ou princípio, estrutura) que se bifurca na oposição complementar primordial (o sistema yin-yang), base pelo qual se explica como os objetos existem, e de como são percebidos através de suas contraposições ideais.
Por esta razão, os chineses tenderam – até onde podemos investigar sua história – a opor (mas sempre de forma complementar e dependente, nunca excludente) o mundo da terra ao mundo do céu, o mundo dos homens ao dos animais, o mundo real ao mundo do sonho; e neste último está a chave para compreender o cerne do pensamento religioso chinês.
O sonho é o meio de acesso ao mundo espiritual (que se opõe ao mundo material), e por meio dele conseguimos alcançar um outro nível de existência onde tudo se realiza, pois lá vivenciamos o nosso “verdadeiro eu” (ou eu interno, a alma, em oposição ao corpo) (veja também meu artigo “sonhar e religião na china”). Estes mundos estão ligados, imbricados, e ambos funcionam dentro de regras similares (embora no mundo celeste ou infernal estas regras sejam extrapoladas além dos limites materiais, pois lá é o mundo do espiritual, do sonho, onde tudo pode ser realizado).
A prova de que possuímos um “eu verdadeiro” dentro de nós está, porém, na evolução do próprio corpo material: como podemos ter consciência de que somos os mesmos se desde criança nossos corpos mudam, e mesmo a nossa forma de pensar? Sabemos que somos algo além do corpo: sonhamos com pessoas que já foram, ou mesmo, no sonho temos poderes que vão além de nossa capacidade. No sonho encontramos as leis pelas quais o mundo espiritual é regido, e como manipulá-las. E se o sonho é resultado do sono cotidiano, a morte é o “sonho eterno”. Ao morrer, podemos voltar nos sonhos ou no oráculo de outros, mas não diretamente (exceto nos casos em que conseguimos tomar “emprestado” o corpo de alguém, como afirmam os daoístas e alguns budistas). Podemos viver toda uma vida na corte celeste ou nas fontes amarelas (uma espécie de “hades” chinês”), uma vida semelhante a deste mundo, mas potencializada pela libertação do verdadeiro eu. Reencarnamos? Na China antiga, não sabemos bem se tal crença existe ou não. Zhuangzi parece ter dado uma pista que sim, Confúcio preferia acreditar que os ancestrais ficam onde estão (mas sabemos, o mestre era um especialista em confundir as pessoas sobre a questão da morte – afinal, seu pensamento sempre focou mais a “vivência da morte” através dos rituais e do luto dos que ficam do que propriamente tentou explicá-la de forma cosmológica).
Se vamos para um outro mundo, então, que é parecido como nosso, porque não levar o que mais gostamos daqui para lá? Ao sacrificar as coisas que gostamos – animais, livros, objetos – estamos também “matando-os” ritualmente e permitindo que eles vão para o outro lado junto conosco. Eis a razão pelo qual, então, desde a antigüidade, os chineses defenderam a continuidade da vida sobre a morte, não importando a concepção religiosa do praticante. Este é um ponto importante, e completamente arraigado no pensar religioso chinês: nenhuma religião se afirmaria na China sem defender, de algum modo, a duplicidade dos mundos (o material e o espiritual) como um continuum. Se reencarnamos ou não, tanto faz: há uma outra realidade, e nela continuamos a ser quem éramos aqui (embora possamos, virtualmente, mudar). Somente os confucionistas, num momento avançado de suas especulações, pretenderam alguma forma de ateísmo, que resultará inútil; as crenças chinesas nascem de uma especulação que conjuga a mitologia popular e uma interpretação intelectual, e como toda boa “oposição complementar chinesa”, será indefectível até os dias de hoje.
As primeiras manifestações rituais
Estas afirmações adquirem forma nos modos primitivos de enterramento chinês, realizados durante o período da dinastia Shang. Um vasto conjunto de túmulos reais e nobres demonstram como a crença da continuidade no mundo do além operou no imaginário da época: uma grande quantidade de nobres menores, auxiliares, esposas, concubinas e serventes eram sacrificados junto com o personagem principal, com o fim de servi-lo no outro mundo. Mesmo animais familiares, como cavalos e cães eram postos na tumba. O conjunto completo de todo uma vida deveria segui-lo, eternamente.
A partir desta constatação, porém, é que percebemos como a estrutura do pensar chinês idealiza a noção de continuidade e se torna capaz de alterá-la. No tempo da dinastia Zhou, atribui-se ao eminente Duque Zhou a modificação do macabro ritual. Teria dito ele que após a morte, os corpos de tornam pó, e viram barro. Se de barro somos feitos, e ao barro retornamos, que diferença fará, portanto, sacrificarmos estátuas de barro ou bronze ao morto? Além disso, se o mundo espiritual é tal como o sonho, então, ao chegarmos do outro lado, podemos ordenar que as estátuas se transformem em autômatos e elas nos servirão. Tal concepção demonstra que se é possível manter o princípio da continuidade no pós-morte, mas que ele pode ser modificado sem prejuízo a teoria. Confúcio (e provavelmente muitos chineses mais humildes) louvaram a iniciativa sobremaneira, apesar de alguns soberanos mal-humorados terem lhe dado prosseguimento, ocasionalmente.
Ao longo dos Zhou, porém, o pensamento social e moral modificou-se lentamente, ensejando a consolidação da prática. Mesmo o período de surgimento das escolas de pensamento no século VI a.C. não alterou de modo substancial esta concepção, e discutiu-se muito mais os aspectos éticos e econômicos dos enterramentos do que, propriamente, o problema da vida além.
Um exemplo claro disso pode ser observado pela monumental tumba do primeiro imperador Qin, Qinshi Huangdi. O re-unificador da China encomendou para si um exorbitante mausoléu formado por uma quantidade infindável de guerreiros de terracota, componentes de um exército temível que embarcaria consigo para o além. Sabemos que o imperador era dado a execuções em massa de sábios, escravos, prisioneiros, entre outros. Mesmo os engenheiros e operários de sua tumba foram sacrificados para não revelar os seus segredos: mas nenhum ser humano, a princípio, parece ter sido sacrificado para servi-lo no mundo espiritual. Aparentemente, Qinshi tinha planos ainda mais audaciosos: mesmo tendo testado inúmeros elixires da imortalidade, seu desejo era o de – após a morte física – conquistar o mundo espiritual com seu exército invencível (ou, ao menos, protegê-lo de todos os seus inimigos).
A evolução
A tumba do imperador Qin nos dá uma idéia do seu desejo de continuar reinando após a morte. Seus guerreiros - cópias fiéis de seu exército segundo a tradição - são proporcionalmente maiores que os seres humanos comuns. Teríamos aí um caso singular, portanto, de um tumba super dimensionada por um soberano megalômano. Mas, o que Qinshi fez foi apenas abrir um precedente.
No tempo da dinastia Han, o imperador Jingdi inspirou-se na idéia e construiu, para si, uma tumba similar, porém de proporções muito menores do que a de Qin. Seus guerreiros e funcionários tem de um terço a um quarto do tamanho de um ser humano real, e são igualmente feitos de barro. Sendo uma descoberta arqueológica recente, podemos supor que outros soberanos Han tenham feito o mesmo. O interessante aí é a diminuição da escala: apesar do argumento economicista de que estas estátuas seriam mais baratas, não podemos supor, apenas, que esta justificativa seja válida. A diminuição só ocorre, novamente, por uma evolução desta teoria mortuária: que diferença faz o tamanho, se do outro lado alguém pode ordenar que as estátuas mexam-se e tomem outra estatura ou forma? Para aqueles que conhecem as regras do além, tudo é possível; apenas os que a ignoram continua fracos do outro lado. No entanto, Jingdi não nos deixa entrever a conquista do paraíso celeste: sua tumba parece muito mais o desejo de manter uma boa vida no além do que, propriamente, de conquistar o mundo do imperador de Jade.
Estas modificações graduais operar-se-iam nos modos de enterramento chinês ao longo de toda a sua história. Os imperadores mais recentes da dinastia Ming e Qing optaram por tumbas menos sofisticadas, porém sempre repletas de seus objetos pessoais preferidos. Não nos iludamos também pelo fato de ilustrarmos a teoria com os mausoléus do poderosos: no seio do povo, os mesmos tipos de crenças, práticas e rituais se encontram reproduzidos em escala menor. Parentes do morto lhe queimam dinheiro falso para que ele possa ser rico em outro vida; miniaturas de seus instrumentos de trabalho, roupas e desejos de consumo são “sacrificados” junto com morto. Hoje mesmo, se sacrificam bonecos de papel (para serem serviçais do morto) junto com brinquedos de plástico que representam carros, tvs, geladeiras e outros objetos materiais que as vezes o próprio morto não possuiu em vida. Os budistas adicionaram a esta crença a idéia de que atos meritórios nesta vida geram um “crédito especial” na vida além que pode ser convertido em poder de compra de benesses materiais e espirituais (do outro lado). Os daoístas chegam ao limite em afirmar – reproduzindo a total materialidade desta crença – de que é melhor levar um dinheiro certo para subornar o barqueiro da morte e o tribunal que julga os pecados da pessoa, buscando lhe garantir e proporcionar uma vida melhor. Há absoluta certeza, pois, de que o outro lado é muito parecido com aqui.
A formação das mitologias cotidianas
E se a China Antiga possuía uma mitologia rica (apesar do acachapante desinteresse confucionista pelos mitos de criação, somente resolvida pelas especulações daoístas que surgem depois do século IV a.C.), esta nunca parou de se desenvolver, posto que a convivência entre o mundo espiritual e o terreno promoveu um aumento constante do número de divindades existentes. Os chineses continuam até os dias de hoje alimentando seu panteon divino com deuses e santos provenientes das mais diversas fontes. Alguns surgem de revelações míticas (sonhos, transes, aparições), mas um grupo bastante especial (e ainda mais interessante, ao meu ver) é o daqueles que tiveram uma vida mortal e foram deificados depois de sua passagem. Seria um tanto impreciso caracterizá-los como “santos”, apesar de algumas características comuns os aproximarem com esta classificação ocidental. O fato é que alguns mortais não apenas destacam-se em vida mas, continuam a interferir no mundo terreno através do “outro lado”. Casos clássicos disso são Guan-yin, a encarnação de Buda na forma feminina que intervém pelos fracos e oprimidos, ou Guan-gong, deus da justiça, guerreiro da época dos Três reinos que destacou-se em vida na busca da perfeição ética e retidão moral, e que continua a defender aqueles que precisam de sua ajuda. Exemplos mais recentes desta prática encontram-se na deificação da imagem de Maozedong e Zhu Enlai – o primeiro transformou-se num vingador dos pobres, num santo furioso, enquanto o segundo (famoso pela suas artes diplomáticas) tem sido invocado em questões onde é necessária a conciliação ou obtenção de alguma benesse material. Bottons e imagens destes personagens estão, cada vez mais, dividindo espaço em altares das classes mais humildes e devotas. Ironia do destino, ateus convictos viram divindades numa sociedade onde as pessoas, inequivocamente, acreditam no além.
Conclusão
O estudo da religião na China pressupõe, portanto, a continuidade. Sem ela, nada há de fazer sentido, pois a intima ligação com o passado se mantém através da concepção de princípio (Li) que permeia todo este pensar hierofânico. As distinções pertencem a uma concepção ideológica em que elas mesmas são apenas opostos complementares indispensáveis a existência um do outro. A evolução do pensar chinês é, pois, um eterno jogo de reproduções de um ciclo infindável. Nele se perdem mitos, e ao mesmo tempo se criam outros. Como uma árvore milenar, cujas raízes fincam-se num passado distante, ela ainda dá frutos, e alimenta o imaginário religioso do povo chinês.
Bibliografia
Os documentos clássicos para saber os ritos funerários encontram-se principalmente no Liji (O Livro dos Rituais) de Confúcio. Uma versão condensada dos capítulos que tratam sobre estes ritos pode ser encontrada o livro de Le Dru, “Rituels de la mort en la Chine Ancienne”. Uma importante bibliografia sobre o assunto pode ser encontrada em francês na página Chine Ancienne (http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/classique). Consulte o manual dos rituais (em francês, LiKi), na seção clássicos chineses; na seção Marcel Granet os textos La vie et la mort. Croyances et doctrines de l’antiquité chinoise, Le language de la douleur, d’après le rituel funéraire de la Chine classique, La religion des Chinois, e na seção dos outros autores, os livros La religion chinoise dans son développement historique, Mythologie de la Chine moderne, Histoire des croyances religieuses et des opinions philosophiques en Chine, The Religious System of China, its ancient forms, evolution, history and present aspect. Manners, customs and social institutions connected therewith e LE TAOÏSME et les religions chinoises. m inglês, podemos achar o livro dos rituais na página http://www.sacred-texts.com/cfu/index.htm. Em português, a sugestão de leitura é o livro de Smith, “Religiões chinesas”, disponível em http://sinografia.vilabol.uol.com.br/sinologia.htm
Outros:
Chu Hsi Chu Hsi's Family Rituals, traduzido por Patricia Ebrey. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991.
Watson, J. e Rawski, Evelyn.(org.), Death Ritual in Late Imperial and Modern China. Berkeley: University of California Press, 1988.
Ebrey, Patricia Buckley. Confucianism and Family Rituals in Imperial China. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991.
Loewe, Michael. Ways to Paradise: The Chinese Quest for Immortality. London: George Allen and Unwin, 1979.
Poo, Mu-chou. In Search of Personal Welfare: A View of Ancient Chinese Religion. Albany: State University of New York Press, 1998.
Yang, C. K. Religion in Chinese Society. Berkeley: University of California Press, 1970
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.