Ban Zhao e o Feminino na China Antiga - 2004 (adaptado do artigo Ban Zhao e a ética feminina na China Antiga in Legein, UGF, 2002).

Ban Zhao nasceu numa família de intelectuais chineses no século I d.C. Seu pai, Ban Biao, foi um dos maiores escritores da época Han. Seu irmão, Ban Gu, foi o historiador oficial da dinastia, e redator do Han Shu (Anais históricos da Dinastia Han). Teve uma educação completa, aos moldes confucionistas, o que incluía literatura, história, poesia, artes, música, etc. Seu primeiro grande trabalho foi terminar a obra do irmão, que havia falecido sem completar parte do mesmo.

Casou-se cedo, e mesmo com a morte prematura do marido, decidiu-se por não mais contrair matrimônio. Ban Zhao havia observado, como esposa, os problemas existentes em um casamento, que decorriam de vários circunstâncias: desrespeito, desnível intelectual, machismo, etc. No entanto, de onde se originava esta desarmonia? No que o relacionamento entre duas pessoas podia estar em desacordo com a vontade do céu e da natureza?

A resposta, segundo a visão de Ban Zhao residia, justamente, na ausência da educação. A falta de estudo levava á vários males, como por exemplo, a incompreensão mútua, a sobreposição de atribuições dentro de um lar, e por fim, a ignorância sobre os papéis de ambos os sexos na realidade cósmica. E para resolver isso é que foi escrito o seu tratado, o Nüjie, ou Lições para Mulheres, que na verdade não se destinava apenas às meninas, mas também aos homens que quisessem entender mais sobre a ética social do relacionamento e do sexo.

Ban Zhao não acreditava numa desigualdade absoluta entre o Homem e a Mulher. Na verdade, sua preocupação se originava justamente dos problemas que podiam ser gerados pela ignorância mútua. Na introdução de seu livro, ela deixava bem clara sua aflição por se considerar uma pessoa estúpida, que havia educado seus primeiros filhos sem qualquer sistema, incorrendo sempre no perigo disso ocasionar alguma desgraça para a família. Mas em que princípios se basear para construir uma idéia de ética? Ela poderia ter recorrido aos métodos tradicionais de educação chinesa, já bem desenvolvidos na época, mas concluiu que isso seria reproduzir uma série de mecanismos sociais do qual discordava, e que em última análise somente afirmavam o machismo.

A idéia geradora da igualdade proposta por Ban Zhao residia na observação dos já citados princípios do Yin e do Yang. Mesmo a idéia chinesa da natureza era feminina: a terra era a mãe, e o céu o pai. No vale misterioso (uma fenda no terreno, representação de uma vagina), onde corre um rio, está escondida a manifestação do feminino. Ela é fecundada pela chuva e pela força dos trovões, agentes masculinos do céu (que representam o esperma e a força orgásmica), que então geram a cheia, pelo transbordo da água, nos campos. E esta inundação, periódica, é que traz a fertilidade ao mundo. Dessa harmonia, do qual Yin e Yang são indispensáveis, é que surge o equilíbrio. Logo, isso se reproduz na natureza dos seres, como nos humanos. Ban Zhao deixa bem claro esta posição em dois trechos, como podemos ver: “O caminho do Marido e da Esposa está intimamente ligado com o Yang e o Yin, que são os dois elementos bases do universo.(...)” (NJ, 1) e ”Como Yin e Yang não são da mesma natureza, mulher e homem têm naturezas diferentes: o Yang é rígido, e o Yin é suave (...)” (NJ, 3).

Isso, porém, não significava a afirmação de um sobre o outro. Como complementares, era fundamental reconhecer a essência de cada um deles e, partindo disso, identificar seus atributos e funções. E para isso era fundamental a educação: “Um marido indigno não pode controlar sua esposa; uma esposa indigna não pode exigir nada de seu marido. Somente o equilíbrio dos dois princípios pode harmonizar uma relação (...) Isso se inicia pela educação: conforme o Li Qi (Livro dos Rituais), a regra é começar a ensinar uma criança a ler aos oito anos, e perto dos quinze elas estão aptas ao estudo da cultura. Apenas porque isso se refere aos meninos, não pode e deve ser igualmente outorgado às meninas? Esta é a base do equilíbrio” (NJ, 3).

Tal comentário deixa bem claro o que Ban Zhao achava sobre a educação feminina: a falta dela era um dos motivos de problema no casal. Era fundamental que as famílias estimulassem isso, sem o que a relação estaria comprometida pela incapacidade de um dos componentes em manter a harmonia. Mas o aviso não era unilateral: “(...) um homem é honrado pela força: uma mulher, pela suavidade. Há [no entanto] um ditado que diz: um homem pode ser parecido com um lobo terrível, mas no fundo pode ser um monstro fraco; e uma mulher, embora possa parecer um ratinho amedrontado, pode ser, na verdade, uma tigresa furiosa. (...) deve sempre haver um respeito mútuo, sem o que ambos destroem o amor próprio um do outro e então marido e esposa se dividem (...)” (NJ, 2).

Quando a autora propõe, no entanto, que a mulher é “honrada pela suavidade”, ela estaria atribuindo alguma espécie de inferioridade ao ser feminino? Essa expressão poderia dar margens á confusão, se não for devidamente abordada. E ficaria ainda mais obscura quando lemos os trechos a seguir: “(...) uma mulher que respeita os outros; que deixa os convidados serem os primeiros, e ela a última; que faz algo de bom, mas não se vangloria; que faz o mal, mas reconhece o erro; suporta ofensas e não se importa; aparenta medo e temor, mas guarda sua verdadeira força para não humilhar os que estão a sua volta; uma mulher, quando segue estes preceitos, pode ser dita humilde diante dos outros, mas é, na verdade, intocável (...)” (NJ, 1).

Isso pressupõe uma posição, portanto, de submissão feminina, contrária a todo o seu discurso de igualdade? Na verdade, não.

Existem dois conceitos complementares na mentalidade chinesa antiga (que já apareciam no Yijing) chamados O Poder de Domar do Grande (YJ, 26) e O Poder de Domar do Pequeno (YJ, 9). O primeiro, como podemos inferir, é Yang, e o segundo Yin. O Poder de Domar do Pequeno é que nos interessa, aqui. Ele se remete a idéia que a submissão, o servir, na verdade, são atributos do amor pelo outro. Logo, submeter-se não é, necessariamente, fazer a vontade do outro; mas sim, fazer o que é melhor pelo outro, excluindo daí a vontade e o interesse próprio.

Esta concepção era muito importante para os chineses: eles acreditavam que esse era o atributo dos melhores reis, dos maiores sábios. O Poder de Domar do Pequeno é aquele que conquista pela virtude, pelo sentimento, não pela força ou pela dominação. O reinado pela intimidação seria efêmero, mas o reinado daquele que cede ao ciclo da natureza, que é receptivo (Yin), dura seu tempo certo e acompanha o ciclo universal.

Logo, para Ban Zhao, praticar este princípio era tentar compreender, sempre, o papel do outro: em última instância, aprender a se isentar dos interesses egoístas, e conquistar, pela sujeição espontânea da alma, e não pelo trabalho bruto ou pela imposição social. É o que vemos em outra parte: “(...) Uma mulher deve ter quatro qualificações; virtude, carinho, beleza e esforço. A virtude não exige brilhantismo, mas apenas a atenção íntima; o carinho não precisa ser inteligente ou aguçado nas palavras, mas sincero; a beleza não requer formas ou faces perfeitas, mas apenas dedicação e cuidado com o corpo; e por fim, o esforço não é trabalhar mais, ou melhor, que outros, mas apenas o necessário (...) Estas quatro qualificações fazem a virtude completa da mulher, e ela não pode viver sem elas. O maior tesouro de um Homem é estar no coração de uma mulher assim (...)” (NJ, 4).

Resta-nos perguntar se Ban Zhao, no entanto, não fez concessões em seu discurso à esta asfixiante sociedade em que vivia. Infelizmente, em algumas partes ela deixa entrever o fato de que algumas práticas culturais não podiam ser mudadas de imediato (Lee Swann, 1932: 82-90 e Badell, 1997:48-52). Mas não podemos, por isso, deixar de afirmar o valor de suas idéias sobre igualdade e condição humana. Ela termina um de seus parágrafos com uma citação brilhante da sabedoria chinesa: “(...) Diziam os antigos: o amor está distante de você? Se desejas o amor, ele está em suas mãos! (...)” (NJ, 4).

Este comentário é bem específico: ele significa, exatamente, que qualquer um que queira, um dia, ser amado e amar deve, antes de tudo, usar o coração e prestar atenção em si mesmo antes de julgar os outros.



Bibliografia Indicada:

NJ = Nujing (Tratado das mulheres) ou Nujie (Lições femininas) [ambos os títulos são utilizados]

YJ = Yijing (Tratado das Mutações).

BADELL, T. El outro sexo del dragon. Madrid: Narcea, 1997.

GULIK, H. La vida sexual en la China Antigua. Madrid: Siruela, 2000.

LANG, O. Chinese Familiy and Society. Yale, 1946.

LEE SWANN, N. Pan Chao: foreman woman scholar of China. New York: Century, 1932.

WILHELM, R. I Ching. São Paulo: Pensamento, 1988.

YU, N.L. Chinese Women through chinese eyes. New York: Sharpe, 1992.



Adaptado de "Ban Zhao e a Ética Feminina na China Antiga" in Revista Legein. Rio de Janeiro: UGF, 2002.

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