Confúcio, o Humanista Chinês - (2000)

Kung zi, ou Confúcio (551 a.C – 479 a.C.) foi, provavelmente, o pensador que mais influenciou a cultura e a sociedade chinesa desde a antiguidade até nossos dias. Não é exagero dizer que o amor nutrido pela China ao antigo, a tradição, tem grande parte de suas raízes fincadas no pensamento deste sábio, um entusiasta da história, dos costumes e da civilização: “revelando-se o passado, compreende-se o presente”, teria dito (LY, 2:11). Preocupado com a crise que se instalava nas instituições da dinastia Zhou, sua resposta filosófica centrou-se na discussão dos mais diversos tópicos relativos à política, aos costumes, e a construção do conhecimento, difundido através de uma ampla proposta educativa. Era antes de tudo um humanista, e sua figura praticamente molda o arquétipo do sábio chinês; um ser profundo, denso, sensível, comedido e perspicaz.(LY, 10)

Decorrente disto, aquela que veio a se chamar escola dos letrados (rujia), organizada por seus discípulos, constituía-se num sistema de pensamento muito bem estruturado, pautado em valores definidos, como o Li (Ritual), Zhong (Conduta), Ren (Humanismo), entre outros. Nesta nossa pequena introdução, decidimos por privilegiar estes três conceitos, que julgamos ser os mais importantes para um conhecimento inicial do confucionismo.

Iniciemos pelo Li. Para Confúcio e seus seguidores, a questão do comportamento ritual era o grande índice da civilidade humana, separando o ser educado dos bárbaros e ignorantes. No entanto, não havia ninguém, na mentalidade confucionista, que não pudesse aprender o comportamento ritual e a cultura (educar-se, aliás, era a base da formação de um ser humano, sem o que ele não se aperfeiçoaria nem evoluiria do estado primitivo de sua natureza). O Li se constituía, por conseguinte, no conjunto dos atos oficiais, religiosos e sociais responsáveis pela interação entre os membros da comunidade e pela sua conexão com a ordem natural e a vontade do Céu: “o homem de bem, ampliando seus conhecimentos sem cessar, e ordenando-os pelo ritual, este não perde o caminho” (LY, 6: 25) Para este sábio, a execução deste comportamento ritual era uma forma de assegurar a reprodução da velha estrutura de vida que havia possibilitado a existência da China desde os tempos ancestrais. (LY, 4:13) A degradação moral, a corrupção dos costumes e a apropriação indébita do poder vinham, justamente, do desconhecimento que as pessoas tinham sobre a importância deste comportamento ritual, ocorrido tanto pelas tendências egoísticas dos homens quanto pela sua má formação educativa.

Estudar, para Confúcio, era a base de tudo; instruindo-se, o ser humano assegurava a conduta reta (Zhong) e a justiça (Yi) nos negócios públicos e para com as pessoas. Para o Mestre, a conduta não era apenas uma forma polida de etiqueta: era um meio pelo qual as pessoas conheciam seus limites internos e externos, garantindo seu bom relacionamento com o próximo. Era também uma forma de autocontrole, que em última analise levava a criatura a perceber sua importância no mundo, deslocando-a dos interesses próprios para os interesses da comunidade. Temos uma noção muito hipócrita da etiqueta, que em nossas concepções apresenta-se como uma forma diplomática de relacionamento, muito ligada à cultura de elite. A idéia dos confucionistas ia bem além da mera formalidade: o hábito da retidão na conduta moral deveria forçar o ser a repensar suas atitudes, perante seu papel na sociedade. Assim sendo, as práticas de relacionamento não seriam uma mera repressão dos sentimentos, mas sim uma expressão digna e respeitosa do íntimo, que através da formalidade, seriam filtradas de forma não agressiva.

Estas idéias se originavam da concepção de Confúcio de que Ren (o Humanismo) era, de fato, a base de todo o Mundo. Mas o que é Humanismo numa visão confucionista?

É complicado traduzir este termo para nossa língua, tendo em vista que ele engloba várias idéias diferentes, mas façamos uma aproximação explicativa.

O primeiro conceito que podemos utilizar para entender este Humanismo confucionista é o do Amor. (LY, 4:3) Muito se deturpou em relação à sua proposta de distribuição do afeto entre os seres, e cedo tendeu-se a acreditar que Confúcio defendia a possibilidade de amar apenas aqueles que também fossem civilizados, o que em breve traduziria-se por “chineses”. Isso não é verdade: mesmo criticando os bárbaros do Norte por seus costumes diferentes e agressivos, Confúcio nunca estabeleceu um limite para quem poderia ou não entender o caminho (Dao) por ele proposto. A base desse Humanismo, assim como do ritual e da conduta eram, sempre, os estudos. Estudar a si próprio, estudar os outros, estudar a cultura, formando assim um arcabouço íntimo de idéias e valores: eis o mister dos autênticos confucionistas. Assim sendo, Amar é um termo que se aproxima pela noção de sentimento afetivo recíproco, de compreensão mútua, de equilíbrio e equanimidade entre as pessoas. Isso não basta, porém, para explicar o Ren.

Devemos aqui incluir outra noção, a do Altruísmo. A ajuda desinteressada faz parte dos elementos componentes do Ren, o que permite o equilíbrio da sociedade pelo aproveitamento sadio de todos os seres. Para Confúcio, a simples caridade era uma medida emergencial; a longo prazo, no entanto, o mestre se colocava contra a sua prática - por ser humilhante em certos casos - e por reforçar as desigualdades e a acomodação (LY, 6:3). Era necessário empreender a educação comum, a ajuda mútua e a distribuição do trabalho para que todos pudessem viver em uma harmonia digna, justa. Uma pessoa só seria lançada ao desequilíbrio e a carência se não tivesse trabalho ou, ainda, se mesmo com trabalho, não tivesse uma educação que lhe impedisse de cometer excessos ou que a fizesse desconhecer as regras de conduta e de ritual; “praticar o ren é começar por si próprio, querer para os outros o que quer para si mesmo (...) busca em ti a idéia daquilo que podes fazer pelos outros- eis o que te porá no caminho do ren” (LY, 6:28).

No período Han (III a.C. – III d.C.), quando o Confucionismo foi adotado pelo Estado como filosofia oficial, a China passou por um período de grande renovação cultural e intelectual derivada destas propostas. No entanto, a escola dos letrados sofreu, também, grandes deturpações, transformando-se inclusive numa espécie de “religião estatal”, algo que Confúcio provavelmente lastimaria. O principal desvio, no entanto, foi a transformação do comportamento ritual em um separador da cultura chinesa em relação ao resto do mundo; somada a banalização do Ren, que se transformou em um conceito de afeto disperso e superficial, dirigido em termos caritativos, o confucionismo perdeu grande parte de sua potência como proposta universal para se tornar um discurso sinocentrista de civilização.

Temos que nos impressionar, no entanto, com a atualidade e a abrangência da proposição original de Confúcio. “Amar a todos”, e “não fazer ao próximo o que não quer que façam com você” (LY, 12:22, 13:23) são, no mínimo, afirmações tiradas sobre uma razão humana que transcende as lógicas culturais. Nessa hora somos obrigados a nos perguntar se, de fato, alguns autores chineses não estão certos ao afirmar a ascendência do espírito humano sobre certos valores e conceitos similares que surgem, em diversas sociedades e contextos históricos, tendo por base pressupostos culturais completamente diferentes. Há que se pensar aí, realmente, numa universalidade do saber, patrimônio indelével da mentalidade humana que de tempos em tempos é inferida por estes grandes pensadores. E Confúcio, já no século VI a.C. foi capaz de elaborar uma proposta, em muitos aspectos invejável, para a resolução de problemas sociais que parecem atravessar a existência humana com persistência e tenacidade, sobre os quais apenas a vontade íntima é capaz de se sobrepor.



Bibliografia indicada:

LY = Lunyu (Analetos ou Diálogos, de Confúcio)

CHENG, A. Historia del pensamiento chino. Madrid: Bellaterra, 2003.

CONFUCIO. Analetos. São Paulo: Martins Fontes, 2002. trad. S. Leys

CONFUCIO. Diálogos. São Paulo: IBRASA, 1983. trad. A. Cheng

GRANET, M. O pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

JINGPAN, C. Confucius as a Teacher. Beijing: FLP, 1990.

XINZHONG, Y. El Confucianismo. Madrid: Cambridge University Press, 2002.

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