Imortalidade, Energia e Poder: a Transformação do Daoísmo - 2001.

Atualmente o mundo conhece o Taoísmo como uma religião, e o processo que o levou à ser como tal não é novo[1]. No entanto, a construção desta prática religiosa e da alquimia taoísta possuem características bem diferenciadas do que é considerado, historiograficamente e filosoficamente como Taoísmo original. Primeiramente, vamos analisar esta idéia de Taoísmo original e depois observar como ele se transformou numa prática bem distante da inicial, ganhando contornos próprios e diferenciados.

Uma gama variada de autores modernos tendem a concordar que, no inicio, o taoísmo era uma forma de interpretação da natureza cujas conclusões sobre a práxis de vida e de relação com o meio podiam ser diferentes e até concorrentes do confucionismo, mas de forma alguma conflitantes ou mesmo antagônicas.[2] O primeiro dos supostos autores taoístas, Lao Zi, teria deixado no seu livro Dao De Jing uma série de instruções para se reconhecer a realidade metafísica do cosmos pelo caminho da não ação (wu wei) e pela compreensão do mecanismo celeste através da interação de suas forças componentes.[3] Não nos cabe aqui analisar detalhadamente estes conceitos, mas sim como eles se desdobram dentro do taoísmo, dando origem às interpretações errôneas que são o mote de nosso trabalho.

O Fato é que o discurso misterioso de Lao Zi deu margem, desde o início, à que os seguidores do taoísmo acreditassem que, no transcurso da análise da natureza, seria necessário alguma espécie de método para se compreender esta realidade última. A conclusão mais óbvia apontaria para dois tipos de prática: a meditação reclusa (associada ao conceito de não ação), que marcaria o surgimento de ascetas e monges taoístas, ou o emprego de práticas alquímicas e xamânicas, que sobre a guarda do sistema de interpretação taoísta, indicariam os caminhos corretos para sublimação do ser.[4] Esta confusão não partia de todo da ignorância popular em relação ao conceito de Dao que Lao Zi defendia - na verdade, um olhar mais atento sobre seus escritos mostram também, por diversos momentos, uma preocupação do mesmo com a realidade material das coisas, com a política e com o conhecimento[5] – mas também, o fato deste mesmo conceito estar associado à práticas xamânicas antigas[6] da China deu base à que essa linha se desenvolvesse acreditando que estava seguindo os preceitos da escola do Dao e simplificando seu acesso e descoberta para todos aqueles que desejassem.

Mesmo os grandes autores taoístas que se seguiram à Lao Zi, como Lie Zi e Zhuang Zi[7] costumavam fazer parábolas como o uso de xamãs, crenças folclóricas e magias de cunho popular (o que não quer dizer que os mesmos acreditassem nisso: afinal, Zhuang Zi nunca fez um milagre sequer na vida, tal como Lao Zi e Lie Zi)[8]. Mas não foi bem isso que o povo, em geral, entendeu quando começou a absorver o taoísmo como um caminho de salvação.

Em primeiro lugar, a idéia de que retornar a natureza proporcionaria a iluminação terminou por ser associada à outro mito popular da imortalidade. Ou seja, de que se recompondo e se harmonizando com o cosmos, um homem poderia atingir a longevidade (ou mesmo a imortalidade) por meio tanto de rituais mágicos ou alquímicos quanto pela meditação ascética.[9] Fica clara aí a relação que estes novos cultores do taoísmo – em geral feiticeiros, monges, anacoretas ou mesmo nobres entediados – faziam entre as proposições da escola filosófica (que não havia se pronunciado à respeito) com os cultos e métodos do antigo politeísmo chinês.

Assim sendo, as associações que decorreriam daí seriam inúmeras: o primeiro soberano mítico, por exemplo, Huang Di (Imperador Amarelo) acaba deixando de ser uma figura mitológica para ser o Patrono das magias alquímicas taoístas.[10] O próprio Taoísmo, que antes falava da natureza, passou à ser composto por uma plêiade de deuses com um céu e um inferno![11] E a prática do mesmo começou a desenvolver seu caráter metodológico, tornando-se enfim, um caminho religioso.

Mas como, então, relacionamos aí a presença da alquimia e das práticas de poder?

Aparentemente, os antigos xamãs, feiticeiros, médicos esotéricos, alquimistas e mágicos andavam lado – a – lado com os taoístas no tempo em que ambos começam a se destacar na corte Han[12] como consultores espirituais e religiosos da elite (ainda que a mesma dinastia Han tenha adotado o confucionismo como doutrina oficial). Anteriormente, o campo de ação destes elementos estava mais próximo do povo (motivo pelo qual seus preceitos vão aos poucos se confundindo), e o fato é que a documentação oficial da época[13] tende a generaliza-los. Os estamentos superiores do poder tinham seus próprios rituais e magias[14], mas durante o período citado, a moda em torno da busca da imortalidade e da transmutação do ouro (outro fator que geraria longevidade), bem como do domínio de práticas sexuais de reprodução de energia[15] havia se tornado comum entre membros de todas as classes sociais, o que facilitava sua difusão e estudo.[16]Os taoístas parecem surgir aí como sistematizadores dos aspectos esotéricos que envolvem a prática da magia e da alquimia, e justamente por isso inserem em seus credos as práticas de meditação e da pesquisa química que dariam ao taoísmo, como religião, as características anteriormente apontadas.

Desta forma, podemos observar que a estruturação das crenças taoístas passou por três níveis: primeiro, em que o taoísmo filosófico foi interpretado à luz da religiosidade popular e por ela associado aos antigos cultos nativos; segundo, que os conceitos que envolvem a harmonia com a natureza e a não ação acabaram por ser vinculados à alquimia e a meditação, como formas técnicas de domínio dos mesmos; e por fim, que a construção dos conteúdos que marcam a organização do taoísmo como religião passaram pela absorção de todos estes elementos e pela sua estruturação enquanto sistema, associado em torno de propriedades metafísicas distantemente ligadas ao corpo original dos três principais autores taoístas. Por conseguinte, as práticas de domínio do corpo e da natureza terminaram por se tornarem práticas de poder, um fim em si sobre o qual os taoístas propunham a sublimação do ser como realidade final da existência.

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Este texto bastante resumido não tem a possibilidade de apresentar todos os nuances sobre o qual se deu o processo de transformação do taoísmo em uma religião alquímica e esotérica. Mas fique registrado aqui uma breve exposição sobre esta importante escola de pensamento chinesa tão incrivelmente desconhecida aqui no Ocidente e tão importante para o Pensamento Oriental. As condições em que se dão a elaboração deste texto tem por objetivo sincero demonstrar o quanto é importante compreender a estruturação do conhecimento oriental, sem o que não teríamos a maravilhosa oportunidade de vislumbrar as semelhanças e diferenças entre as nossas concepções e a concepção do outro.[17] E o taoísmo é, por si próprio, uma das mais interessantes dessas vertentes.

Bibliografia:

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WILHELM, R. I Ching. SP: Pensamento, 1988

WILHELM, R. Tao Te King. SP: Pensamento, 2000

WOLPIN, S. La Filosofia China segun Confucio e Lao tse. Buenos Aires: Kier, 1997 .


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[1] O taoísmo teria surgido no século VI a.C., mas acredita-se que já no século III-II a.C. ele havia ganho os contornos que o classificariam como uma religião. GRANET, 1997 e JOPERT, 1979.

[2] CHAN, W.T. 1978 P.40 e KALTENMARK, 1982 P.17-57

[3] WILHELM, R., 2000 Outras análises sobre o mesmo assunto (Yin – Yang) podem ser vistas em COOPER, 1984, JOHNSON, 1990, WATTS, 1997; BLOFELD, 1986, WALEY, 1979

[4] ELIADE, 1998 Cap.11 e ELIADE, 1992 P.13-37

[5] Ver, por exemplo, os poemas 30 e 45. WILHELM, 2000

[6] O conceito de Dao já existia, por exemplo, no I Jing, ou Livro das Mutações, que seria resgatado justamente por Confúcio.

[7] Ou Lie Tzu e Chuang Tzu.

[8] Sobre Zhuang Zi, ver WATSON, B. 1992

[9] Sobre esta formulação ver PALMER, 1993

[10] Ibdem N.9

[11] Acredita-se que estas modificações tenham ocorrido após a entrada do Budismo na China, nos fazendo supor que a construção (ou resgate) deste imaginário popular em relação ao taoísmo datem, provavelmente, do século I d.C.

[12] Dinastia Han : III a.C – III d.C.

[13] Shi ji e Han Shu, cit. In biblio.

[14] É o que vemos desde a época Shang, por exemplo, com os oráculos de carapaça de tartaruga.

[15] Ver o Fan Chung Shu, cit in biblio.

[16] ELIADE, 1998 P.89

[17] Um interessante texto sobre este assunto é o prefácio de JUNG, C.G. in O Segredo da Flor de ouro. Cit. In biblio.




Imortalidade, Energia e Poder; o Daoísmo como Religião - Anais da SBEC: Ouro Preto, 2001

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