A civilização chinesa é permeada por uma concepção única de universo, que exerce seu domínio sobre a intelectualidade desde tempos imemoriais e se espalha por todos os campos do conhecimento. Sábio e camponês compartilham, em seu imaginário, uma visão semelhante sobre o mundo, embora seus conhecimentos sejam bastante diferentes. Portanto, para entendermos como um artista chinês produz sua obra de arte precisamos saber, antes de tudo, a forma pelo qual ele se relaciona com o objeto de seu trabalho: a matéria.
Como sabemos, houve um grande trabalho filosófico no final da Dinastia Zhou e durante a época Han (um período extenso, que vai do século VI a.C. ao III d.C.) para resgatar e traduzir as concepções cosmológicas dos antigos chineses, que seriam a base pelo qual o artista compreenderia seu trabalho – o de um ordenador da matéria, um agente transformador da essência que está contida em toda substância bruta.
Essa cosmologia afirmava que tudo no universo possuía um Li, ou princípio. Li também pode ser traduzido como forma ou estrutura. Logo, podemos entender Li como princípio gerador ou ordenador. O ideograma Li é formado pela palavra Jade (Yu) aglutinado à palavra Campo, Lugar (Li), que é representada por um campo arado, uma lavra. A junção dos dois indica que o princípio pode ser percebido pela imagem gerada pelos veios (a lavra) da pedra de jade (Wilder & Ingram, 1974: 114). Assim, os antigos chineses acreditavam que o princípio de algo já estava contido na matéria, esperando ser libertado. Como o diamante, o jade só pode ser lapidado de acordo com os veios da pedra, senão será perdido. “Se o pensamento grego é dominado pelo espírito do oleiro, que trabalha a massa amorfa da argila, primeiro moldada e logo formada inteiramente segundo a idéia do artesão, temos visto que o pensamento chinês esteve marcado pelo espírito do lapidário, que experimenta a resistência do jade e emprega toda sua arte tão somente em tirar partido dos veios destas partes de matéria bruta, para extrair o que nela preexistia e da qual nada podia se ter idéia antes de ser descoberta” (Vandermeersch, 1980: 285, t. II).
Os veios mostram o princípio: ele está contido na pedra, é necessário manifestá-lo. Mas o que são os veios? Os veios são espaços vazios (Kung) na pedra. É o nada que dá origem à forma. É o vazio que gera a matéria, é o nada que ordena o que existe. Como disse Laozi: “trinta raios unem um eixo, mas a utilidade da roda vem do vazio; queima-se barro para fazer um pote, mas a utilidade do pote vem do vazio; fazem-se janelas e portas num quarto, mas a utilidade de um quarto vem do vazio” (DDJ, 11). Este vazio aparecerá, depois, em muitas pinturas chinesas; ele será o gerador da imagem presente no rolo de papel ou de seda (Cheng, 2001).
A analogia da pedra de jade foi utilizada pelos chineses para demonstrar que o vazio é o criador do princípio na matéria. “Houve a mutação suprema, houve a partida suprema, houve a gênese suprema, houve a suprema simplicidade; no momento da mutação suprema não se via a energia, o impulso supremo é a gênese da energia; esta gênese suprema foi o início da forma corporal, a simplicidade suprema foi a gênese da matéria” (LZ, 1). Assim, vazio e matéria (Qi, também chamado de energia, vapor) são oposições básicas e complementares, geradoras da dualidade universal que se estrutura pelo binômio taiji ([), composto por yang e yin. “O Grande Começo produziu o vazio, o cosmo, o Qi , o Yin e o Yang, e, finalmente, a forma material” (HNZ, 3). Estes dois termos representam idéias de oposição, sendo respectivamente: luminoso e obscuro, macho e fêmea, alto e baixo, fogo e água, etc. Tudo no universo tem seu oposto. Se não o tiver, não existe. Por yang e yin tudo se manifesta. Só existe matéria por causa do vazio e vice-versa. O taiji nos mostra, porém, que um recria o outro. Um possui a semente do outro, e no movimento cíclico de mutação universal, eles se alternam constantemente no poder. Somente da cópula destes dois é que pode haver a geração da natureza: da junção de macho e fêmea é que nasce o filho; “o um gera o dois, o dois gera o três e o três gera as dez mil coisas – e todas as coisas possuem yin, possuem yang e a mistura do Qi gera a harmonia.” (DDJ, 42). Ou seja, o princípio se manifesta pela dualidade e se concretiza na geração. “Houve um Começo, um começo anterior a Este Começo, e um começo anterior a ambos" (HNZ, 2).
Estas classificações foram criadas de acordo com algum critério que hoje não conhecemos bem. Para o artista chinês, porém, estas forças são fundamentais para compreender a maneira como a natureza e o universo são compostos e estão estruturados. Elas nos mostram que o cosmo tem um padrão criativo, ou seja, um ritmo; este ritmo, porém, é ditado pelo seu inverso, que é justamente a mutação. Logo, para tudo que é imutável há uma forma mutável. A obra de arte, como manifestação do processo criativo dinâmico destes dois estados essenciais não escapa (e nem poderia) a esta regra; seu Li, ou princípio, determina que ele nasça tal como um vaso, ou seja, feita de barro, redonda ou quadrada, etc. No entanto, nenhum vaso é igual ao outro; isso só acontece porque o Li imutável é regido por um Li mutável. Assim, desde cedo, os chineses começaram a considerar que, perante a natureza, todas as coisas são iguais e, ao mesmo tempo, diferentes. No momento em que as forças da natureza criam um ser ou um objeto, elas o fazem segundo o padrão imutável-mutável, ou seja, seguindo o ritmo, o padrão criativo, mas ao mesmo tempo, nunca gerando um ser igual a outro. Assim, mesmo que o artista use moldes para fazer vasos ou talhe uma pedra única de jade, ele nada mais faz do que manifestar o princípio contido na matéria. Ele é o artesão do espírito que subjaz (preexiste) na substância bruta.
Por este motivo, o pensamento chinês dirá que a matéria (Qi) é o meio pelo qual o princípio se torna concreto. A concepção do Qi é representada em seu ideograma pela idéia do vapor d’água saindo de uma panela de arroz em cozimento. Este vapor pode se condensar e virar novamente água, ou, no frio, se congelar e virar uma pedrinha de gelo; ou ainda, o vapor simplesmente escapa, continuando em seu estado gasoso. Extraindo desta analogia uma concepção profunda acerca de estrutura da matéria, os chineses preocuparam-se em entender como o Qi funcionava em suas manifestações. A primeira delas foi admitir que o Qi manifesta Li, ou seja, Qi pode adquirir várias conformações, mas o ser, de fato, é um Li. Para explicar como o Qi sofre estas variações, surgiu então a teoria das cinco estágios (wuxing, também chamados de “cinco elementos”), que explicam como o Qi se apresenta em uma determinada circunstância, suas propriedades, e a incidência de cada um destes agentes na constituição de uma forma da natureza.
Logo, cada objeto ou ser nesse mundo é composto de uma forma única, possuindo assim uma propensão (shi) específica para se manifestar – e a beleza de uma obra de arte resulta da habilidade do artesão em torná-la o mais visível possível para o público. Uma divertida história ilustra bem esta concepção: Chan Dai Cheng (1899-1983), um dos últimos grandes pintores tradicionais da China, foi amigo de Picasso, que um dia resolveu fazer uma brincadeira desafiando-o a identificar, entre várias pinturas, uma falsificação tão bem feita que teria embaraçado o próprio artista espanhol. Rapidamente, Cheng apontou para o quadro falso e disse: “não sinto sua energia nele!” – um exemplo desconcertante de como a visão chinesa sabe privilegiar o artista, dando ênfase ao seu papel de agente transformador da matéria (Leite, 1999: 199).
Foi para compreender a propensão de cada Li que as Artes chinesas terminaram por definir um conjunto de regras de expressão que foram codificadas, de forma explícita, pelo pintor Xie He (479 – 502 d.C.) no seu livro Guhua Pinlu (Biografias de pintores antigos). Embora se referissem com maior ênfase à pintura, podemos afirmar que estas normas servem como um guia perfeito para entendermos como se faz uma obra de arte chinesa, e como podemos identificá-la.
São elas:
- Ritmo e vitalidade: assim como o universo, que tem suas leis imutáveis, a obra de arte tem um ritmo de criação próprio. Ela tem tempo certo para se realizar, não pode ser atrasada ou adiantada. A pincelada, o torno do oleiro, a fundição do bronze, todos exigem uma quantidade específica de energia para manifestarem uma peça, um modo pelo qual se molda a matéria. Não seguir o ritmo significa perder matérias-primas e idéias, manifestando apenas aspectos do Li de forma feia e distante. Sobre isso, disse Hanzhuo (XI –XII A.D.); “numa pintura, preste atenção primeiro ao ritmo, depois preocupe-se com a realidade das formas. Pare, então, e reflita; se você não tiver idéia de como a obra irá se desenvolver, ou se sua preocupação for com detalhes trabalhosos, você já terá perdido o ritmo”.
- Padrão de execução: para se pintar, é preciso conhecer o pincel, as tintas e o verniz; para fundir o bronze, é preciso conhecer os metais, o forno e as ligas. A construção de uma obra de arte exige o domínio da técnica e sua aplicação constante. Dois métodos diferentes não podem ser utilizados para fazer um mesmo vaso ou quadro, pois a técnica se ajusta a propensão do Li presente na matéria-prima que se trabalha.
- Semelhança: retratar uma paisagem exige saber como é essa paisagem. No entanto, a reprodução nunca será idêntica ao original. É o artista que precisa dominar, portanto, a capacidade de aproximar-se ou afastar-se da realidade, utilizando este recurso para imprimir mais energia na realização de uma idéia. Su Dongpo (1036-1101) comentou o assunto, afirmando categoricamente: “quem julga uma pintura apenas pela fidelidade aos objetos fala como um ignorante imaturo”.
- Cor e Detalhamento: “observe um lado da montanha e você a compreenderá”, dizia uma antiga frase chinesa. Compreendendo os detalhes, aprendendo a dominar as cores, o artista percebe que uma montanha é, na verdade, um conjunto de ângulos, cores, tons, brilhos, reflexos e sombras que estão muito além do que as primeiras impressões mentais registram. Cores e detalhes representam as manifestações específicas da energia Qi, e seu uso aproxima (ou distancia) o artista do Li que ele deseja manifestar.
- Composição: compor é criar o ambiente propício à imagem, à transformação da matéria. Uma pintura deve ser harmônica: como transmitir, por exemplo, uma idéia de calma e paz retratando uma batalha? Como fundir e montar um vaso de bronze se os moldes não encaixarem, ou se a liga estiver errada? Compor é, antes de tudo, harmonizar todos os elementos – ritmo, padrão, semelhança, detalhes e cores - para se obter o máximo efeito possível, atingindo o Li da obra de arte. Se bem sucedido, o artista conseguirá extrair da peça a beleza imortal, o Li verdadeiro, fazendo-a ser admirada por qualquer ser humano que possa vislumbrá-la.
- Modelos e variações: esta última regra refere-se ao trabalho de aprimoramento do artista. Um discípulo deve adquirir experiência com os mestres, imitar suas obras, aprender tentando realizar cópias e dominando suas técnicas. Os Mestres já trilharam o caminho que o aprendiz está iniciando. São um manancial de experiência na transformação do vazio em beleza, verdadeiros modelos do que é ser artista – alguém que aprendeu a dominar a natureza, a captar e desvendar o que está escondido, ou como disse o mestre Confúcio “um sábio que, sacudindo a poeira do antigo, revelou o novo”.
Compreendendo estas leis, podemos finalmente começar a traduzir a arte chinesa para além de sua aparência externa. Tendências, modas, estilos, todos esses movimentos são apenas representações superficiais daquilo que os artistas chineses buscam manifestar, o Li, o princípio subjacente à matéria. Uma obra de arte que atinge esse nível de perfeição não adquire apenas a “imortalidade” da sua beleza: ela servirá como guia de toda uma época, congregando artistas que utilizarão um conjunto de técnicas específicas, cores e materiais para imitá-la e reproduzir o caminho por ela aberto.
Bibliografia
Abreviaturas utilizadas:
DDJ – Daodejing (Tratado do caminho e da Virtude, de Laozi)
HGZ – Heguanzi (O Sábio Heguan)
HNZ – Huainanzi (O Sábio Huainan, de Liuan)
LY – Lunyu (Diálogos, de Confúcio)
LZ – Liezi (Livro de Liezi, também chamado Tratado do Vazio Perfeito)
YJDX – Yijing Daxue (Grande Estudo sobre o Tratado das Mutações)
ZY – Zhong Yong (O Justo Meio, de Confúcio e Zisi)
CHAN, W.T. Sourcebook in Chinese Philosophy. Princeton: PUP, 1963.
CHENG, A. Historia del pensamiento chino. Madrid: Bellaterra, 2003.
CHENG, F. Vide et plein. Paris: Le Seuil, 2001.
JOPERT, R. Oposição complementar. Rio de Janeiro: Museu Castro Maya, 1998.
LEDDEROSE, L. Ten Thousands Things. Princeton: Princeton University press, 1999.
LEITE, J. A China no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2000.
VANDERMEERSCH, L. Wang Dao ou la voie royale. Paris: EFEO, 1977 –1980, 2 vols.
VANDIER-NICOLAS, N. Art et sagesse en Chine. Paris: PUF, 2000.
SULLIVAN, M. The three perfection’s. New York: Braziller, 1999.
WANG Z.S. Han civilization. Yale: Yale University Press, 1982.
WATSON, W. Arts in China. Yale: Yale University press, 2003. 2 vls.
WILDER, G. & INGRAM, J. Analysis of Chinese characters. New York: Dover, 1974
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.