Como quase todas as economias da Antigüidade, a China Antiga também se valeu da escravidão na sua estrutura produtiva. E, como em muitos dos estudos históricos feitos no Ocidente, essa relação foi, durante um bom tempo, ignorada. Na obra de referência A Civilização Chinesa de Marcel Granet (1979), lançada em 1928, este grande estudioso, que se antecipava em muito nos campos culturais que tornariam famosos os Annales franceses, não faz quase nenhuma menção da escravidão; e quando a faz, parece ser mais por acidente do que para explicar esta relação. É interessante como desde essa época muito pouco se fez para explicar o papel da escravidão na economia da antiga China. As referências existem, provindo tanto da arqueologia como da documentação textual, mas parece que ao longo deste tempo os pesquisadores preferiram, tanto no Ocidente quanto no Oriente, investir em outros campos (Finley, 1991). Isto não desmerece a obra de muitos dos sinólogos consultados, já que a escravidão ocorreu na China em condições singulares e diferenciadas daquelas que conhecemos no Mundo Clássico Greco - Romano. Mas ela merecia uma atenção maior, e neste breve artigo tentaremos destacar os autores que trabalharam e se aprofundaram nesta área de estudo. Destacamos o contexto da Dinastia Han por motivos específicos: 1o, por ser o primeiro período imperial antigo mais bem documentado e estudado, e 2o, por que se considera que esta época teria sido a do auge do escravismo na China (Kuo, s/d). Analisaremos, por conseguinte, os aspectos básicos e históricos dessa relação na Civilização Chinesa.
Escravidão antes da Dinastia Han.
A cronologia histórica da China comprovada pela arqueologia está dividida nos seguintes períodos: Shang (XV-X a.C.), Zhou (X-III a.C.), Qin (III a.C.) e Han (III a.C. – III d.C.). Variações nessas datas são aceitas sem grandes problemas, e em linhas gerais elas definem razoavelmente os contextos históricos, sendo que a partir do ano de 842 a.C. as datações realizadas por Sima Qian são tidas como precisas e corretas.
O período Shang (tido como a época das cidades – estado chinesas) já apresenta sinais precisos da existência da escravidão. Quando um nobre morria, por exemplo, sua gleba de serviçais era sacrificada junto e posta na mesma tumba (Wtson, 1969). Mas as funções destes escravos são imprecisas: a documentação histórica referente à este período só seria recuperada no século VI a.C. por Confúcio. Provavelmente sua utilidade era doméstica, já que nessa época uma característica fundamental da estrutura produtiva chinesa - o trabalho com mão-de-obra livre - já estava praticamente estabelecida.
No campo, a atividade agrícola era realizada por comunidades pequenas organizadas em núcleos familiares, que praticavam o aproveitamento intensivo de pequenos espaços do terreno. Este sistema continuou a existir sem grandes transformações na cultura chinesa, provavelmente por sua eficácia, mas se concentrando sempre em mãos familiares, talvez por receio de se ter que dividir com escravos uma produção fundamental para a sobrevivência em tempos de escassez e que atendia a uma população sempre crescente (como até hoje).
Não é impossível que escravos fossem utilizados pelos grupos intermediários da sociedade (artesãos, funcionários, comerciantes, etc), mas provavelmente era difícil sustentá-los, o que os tornava praticamente um privilégio de nobres, que recebiam parte da colheita como imposto e, por conseguinte, tinham rendas independentes do seu trabalho para se sustentar.
Mesmo assim, essas são conjecturas: os melhores estudos sobre a cultura material chinesa do tempo Shang (Chang, 1968) nos informam muito sobre seu modo de vida, mas não sobre as relações que deviam reger esta sociedade.
O período Zhou, porém, escapa um pouco desta problemática, em função da razoável documentação existente à respeito das épocas mais recentes. Principalmente depois do século VI a.C., época em que surgem as “Cem escolas do Conhecimento” (Granet, 1997), muito se produziu em termos históricos e filosóficos. Mas isso não quer dizer que os historiadores recentes tenham se concentrado, por conseguinte, nos aspectos da escravidão. Ela, no entanto, aparece de forma esporádica nas fontes e nos permite identificar algumas das relações que permearam este regime escravista no âmbito social.
A época Zhou marca o que se convencionou chamar “feudalismo” chinês, embora o sistema político e econômico da época guarde apenas algumas relações com esta denominação. “Abusou-se tanto do termo feudal que este perdeu toda a significação. Melhor será que o esqueçamos e nos limitemos a caracterizar pelas suas instituições específicas o sistema político e social que, na longa história do mundo chinês, se aproximaria mais daquilo a que os historiadores do Ocidente atribuíram pela primeira vez este qualificativo.” (Gernet, 1979;60-61).O que sabemos é que a estrutura social passou a ser dominada por clãs responsáveis pela posse e guarda de parcelas extensas de terra que correspondiam aos seus reinos, e que obedeciam de forma direta apenas ao Imperador – isso em termos, claro, já que o soberano da época estava muito mais para um enfraquecido rei medieval do Ocidente do que para o poderoso Imperador de Facto que surge depois do século III a.C. na China.
Neste novo sistema de hierarquia política e social que predominava, a escravidão não perdeu espaço, porém, em seus atributos e funções. O que havia mudado, felizmente, era o hábito de se matarem serviçais no enterro dos nobres – agora substituídos por estátuas. Sabe-se um pouco mais das relações que regiam o sistema escravocrata da época, tanto em origem quanto em utilização.
Os escravos tinham tanto origem estrangeira quanto chinesa, provindo de guerras (internas ou externas) e por vezes, dívidas. Continuavam a ser utilizados em trabalhos domésticos, e não no campo. Mas parece que os grandes senhores já dispunham dos escravos para executarem trabalhos em empreendimentos particulares não – agrícolas, tais como: construção de obras públicas, junto com homens livres, soldados e prisioneiros (é caso das muralhas feitas no Norte para deter as invasões bárbaras, que posteriormente seriam agrupadas numa só, formando a grande muralha da China na época Qin – III a.C.), trabalho em minas e manufaturas (onde a presença de trabalho escravo variava segundo o tamanho da mesma: buscava-se ao máximo utilizar o trabalho familiar). Já aparecem também eunucos para auxiliar os nobres, mas a diferenciação entre os tipos de eunucos só será identificada no período Han. Existe, no entanto, a separação entre servo (vassalo) e escravo (aparentemente sem direitos), que aparece de forma clara em algumas citações. Tomemos esta como exemplo:
“(...) Se quiserdes enviar, a nós, vossos cativos, para a beira do Jiang e do Mar [banimento para fronteiras incultas], obedecermos este decreto! Se quiserdes distribuir-nos como presa aos feudatários, se quiserdes que os homens e mulheres sejam todos reduzidos ao estado de domésticos [servidão penal] obedecermos este decreto!(...) Se me transformardes, com sua virtude, a ponto de vos servir como vassalo, na mesma categoria desses bárbaros, isto será beneficência! Não é isto que ouso esperar, mas abro meu coração!” (ZZ, 1)
Este breve discurso demonstra que a situação dos vassalos devia ser bem diferente (e melhor) do que a dos escravos, tanto em honra quanto em atribuições, e nele podemos identificar dois pontos importantes: o primeiro, de que o escravo não é “coisificado”, existindo a consciência de que ele é tão humano quanto nós: e em segundo lugar, que mesmo sabendo disso, sua situação não era nada agradável e não deveriam ser muitos os que estavam dispostos a submeter-se nesta condição.
Por fim, no período Qin, quando ocorre a centralização política da China num novo tipo de sistema imperial, a condição das instituições políticas modifica o papel da escravidão. A criação de uma vasta burocracia, em lugar de uma casta nobre dominante, desarticula vários aspectos da produção centrada nas famílias e clãs, configurando de uma nova forma o sistema de trabalho e a economia. Foi este contexto, que a dinastia Han absorveu, que desenvolveria a escravidão plena - ao modo chinês - como será conhecida nos períodos posteriores.
Assim sendo, podemos considerar que nos períodos anteriores ao século III a.C. a escravidão não tinha, de fato, um papel fundamental na economia chinesa. Por não ser dependente da mão de obra escrava, essa era utilizada em funções complementares ao sistema de trabalho livre. Tal consideração não é estranha: as condições de vida difíceis do território chinês com certeza estimularam os modos de produção familiar e a construção de comunidades e corporações fortes. Assim, somente nos períodos de expansão política das instituições chinesas é que se buscou uma utilização maior do trabalho escravo, questão que analisaremos à seguir.
A escravidão na Dinastia Han
A observação de Kuomojo (Guo Mo Ro) não estava de todo errada: a dinastia Han foi a que mais promoveu o uso da escravidão na Antigüidade chinesa.(Kuo, s/d) Isso ficou comprovado pelo estudo aprofundado sobre as condições do escravismo na antiga china realizado por Wilbur (1943) e complementado pela detalhada análise social empreendida por Ch’u (1972) que utilizaremos como base deste trabalho, em conjunto com a documentação primária.
Durante o período Han, o rápido desenvolvimento da economia forçou a reformulação da estrutura produtiva, visando atender um mercado consumidor crescente, que correspondia à expansão das fronteiras imperiais em direção ao Oeste e ao Sul. Estas modificações foram induzidas pela visão cosmopolita que permeava a existência da dinastia Han, interessada em desdobrar-se política e economicamente em novas terras. Durante o governo de Wu Di (II-I a.C.), por exemplo, temos a abertura da rota da seda e a divulgação dos produtos chineses em forma de campanha com a distribuição de presentes e tributos para várias cortes fronteiriças, visando claramente o estabelecimento da paz e o fortalecimento do comércio.
Com o desenvolvimento desta estrutura, tornou-se necessário implementar a produção, angariando a mão de obra disponível para a construção pública e para o trabalho nas manufaturas. O sistema de convocação sazonal dos cidadãos livres para as obras públicas não deu conta das necessidades crescentes, e a dinastia lançou mão, por fim, da escravidão para complementar a mão de obra. Em pouco tempo, porém, a eficácia do trabalho escravo e os lucros advindos do comércio desta mão de obra tornaram-na uma atividade interessante, e sem demora ela começou a ser usada de forma intensa e abrangente em vários setores da economia.
As formas de escravização
A lei recorrente na época determinava que os escravos poderiam ser obtidos em guerra, importação ou por pena judicial (Ch’u, 1972:135). As penas judiciais eram aplicadas em certas condições: tinham em geral tempo (in)determinado, podiam ocorrer por dívidas, condenação legal por injúrias ou mesmo por ordem institucional como forma de punição, por vezes acompanhada (ou não) de castração. Homens livres também podiam vender sua liberdade e de sua família. Mas a fonte principal de escravos era a guerra, conquanto a importação estivesse mais ligada à escravidão dos “bárbaros do norte” (mongóis e hunos) e de estrangeiros exóticos e raros, tais como brancos, negros ou melanésios.
Os escravos eram distinguidos em quatro tipos de classificação, separadas em duas: eles podiam ser T’u (servos) ou Nu (escravo) (Wilbur, 1943:81-82), e ainda, eunucos ou não. Os T’u em geral se constituíam de escravos que recebiam salários, tinham alguns direitos, mas cuja liberdade individual era totalmente sujeitada ao seu “senhor”. Podiam, depois de algum tempo de economia, comprar sua liberdade. Em certos casos, um T’u podia ser rebaixado e virar um Nu (por dívida ou por uma lei). Era raro, mas um Nu também podia ser promovido a T’u por vontade de seus donos ou por decreto imperial. Esta condição demonstra que uma escravidão temporária (penal) pode se converter em eterna (Nu) em virtude das circunstâncias. Houve alguma legislação a respeito, já que, como os T’u podiam casar, se esses caíssem de classe (para Nu) suas famílias – antes livres – poderiam ser escravizadas. Quanto à sua condição masculina, era ditada pela atividade que exercia: sendo um funcionário comum, provavelmente podia até casar: mas sendo guardião do harém, era castrado. Em alguns casos, se sua condenação penal já incluísse a castração, sua função podia ser definida em torno desta condição. Já os Nu (escravos) eram totalmente submetidos, sem quaisquer direitos. As leis em torno da escravidão da família do escravo variavam: algumas vezes, elas também eram submetidas, mas isso variou segundo a vontade dos imperadores. A liberdade dos escravos, no entanto, só dependia da vontade de seu mestre: quando “apontado”, ele era alforriado na hora e ganhava o estatuto de cidadão livre, com os plenos direitos e deveres. Alguns chegam a ganhar promoções em cargos da burocracia estatal por méritos ou distinção (HS, 68). Escravos também eram doados ou confiscados pelo/ou para o Império, segundo condições legais (Ch’u, p.137).
As mulheres escapavam da segunda classificação (Eunuco – não Eunuco), mas dificilmente caíam na primeira (T’u), a não ser que fossem esposas de homens em situação semelhante.
A grande parte da população escrava da época adveio das populações chinesas que estavam fora do território Imperial - principalmente, das hordas de Xiong-Nu (Hunos) - que eram capturadas nas intermináveis batalhas na fronteira norte, ao longo da muralha. Sima Qian (II – I a.C.) e depois Ban Gu (I d.C.) foram perfeccionistas na contagem dos aprisionados: 3000 em 127 a.C., 15000 homens e mulheres em 124 a.C., e assim por diante (SJ, 110 e 111; HS, 55 e 94). E isto só em campanhas oficiais: desconhecemos o número dos escravos submetidos em expedições particulares. Há dúvidas em saber, porém, como era administrada a submissão destes escravos (T’u ou Nu). Não parece ter havido um mecanismo automático de escravização de estrangeiros, e por vezes o interesse em alianças políticas pode ter determinado a condição (incluindo a manumissão) dos prisioneiros.
Já os eunucos sofriam um preconceito bastante grande na sociedade, por serem considerados mutilados e por não poderem gerar descendentes, fator este imprescindível numa sociedade machista e patrilinear, que contava ainda com a prática do culto aos antepassados. O pobre Sima Qian, caído em desgraça por ter defendido sinceramente um general derrotado, sofreu esta indigna punição e se considerou humilhado (HS, 62). Ainda assim, ele não foi servilizado ou escravizado, podendo continuar seu trabalho. Os eunucos eram utilizados, em geral, em funções domésticas, tais como a guarda de harém, diversões, etc. Alguns, porém, conseguiram galgar postos no governo subindo no funcionalismo imperial como serviçais e auxiliares de funcionários importantes. A partir do século I d.C. sua força cresce junto à corte, se tornando um elo entre as altas estâncias do poder e aqueles que buscavam aumentar sua participação no governo. Há ainda uma consideração difícil de provar, mas levada em conta por alguns autores: de que haveria uma castração completa para servidores mais baixos e apenas a retirada dos testículos para servidos mais importantes. Apesar da idéia ser interessante, não encontramos comprovação na documentação, o que não nos dá motivos para creditá-la. Sabemos, porém, que alguns eunucos adotavam crianças, e a motivação para tal variava desde a reprodução deste grupo, até a criação de uma família com fins de continuidade do nome.
Desta forma, observamos que existem algumas regras para a administração da instituição escravista. Esta se difunde, durante o período Han, com o implemento de sua utilização e com o surgimento de uma nova área econômica que envolvia o tráfico escravista, os mercados, etc. É interessante notar, entretanto, que apesar da legislação desfavorável, os escravos não parecem ter sido “animalizados” ou considerados sub-humanos: a sociedade chinesa parecia ter bem claro em sua mentalidade que lidava com homens e mulheres, e não com mercadorias, embora os tratassem assim nos momentos de compra (mas não nos de servilização penal). Talvez haja aí um grande contributo da ética confucionista, adotada como doutrina oficial da dinastia Han e que possuía caracteres humanísticos, que defendiam o respeito à integridade do ser e da coletividade: algo difícil de ser aplicado aos escravos, mas que todavia podia influenciar o modo de agir dos senhores em relação aos mesmos, criando alguns mecanismos de generosidade ou tolerância.
Os campos de trabalho dos escravos
Aparentemente, no século I a.C. a China já havia aumentado de forma surpreendente o seu número de escravos. Em torno do reinado de Gung Yü (44 a.C.) já eram contado cem mil (tanto T’u como Nu) servindo apenas ao governo (Wilbur, 398-400). No que trabalhavam? E os “particulares”, executavam que tarefas? Analisemos os campos de produção chinesa para entendermos isso.
Obras públicas
Como foi dito, um dos grandes motivos para o aumento do uso da mão de obra escrava foi a realização de obras públicas em larga escala. Anteriormente, essas obras eram realizadas através da convocação de mão de obra livre nas comunidades locais, durante tempo (in)determinado, soldados, prisioneiros e escravos (mas em pequena quantidade). A ascensão da dinastia Qin mudou isso, no entanto: na construção da grande muralha foram usadas as três mãos de obra indistintamente, mas com um emprego maciço de escravos. A situação dos cidadãos livres convocados na época não era das melhores: conta um poema da época Han que um recém casado morreu na construção da muralha durante o período Qin, e sua mulher chorou com tanto pesar diante do grande muro que os tijolos abriram uma brecha e entregaram-lhe o corpo. Esse poema serve-nos para mostrar que, vez ou outra, os governantes não faziam distinção daqueles que empregavam.
O fato é que a mão de obra escrava parece ter complementado a mão de obra livre nas obras públicas, e em determinados momentos pode até mesmo tê-la substituída. Mas é difícil trabalhar com números neste ponto. Podemos apenas afirmar, com certeza, que a quantidade de submetidos aumentou bastante nessas obras, sendo inclusive uma massa que podia ser mais facilmente manobrada e deslocada, conquanto os camponeses também tinham o seu trabalho no campo, e os funcionários sabiam que uma parte fundamental do sustento social dependia deles.
Manufaturas
Com a organização de manufaturas e corporações produtivas, muitas vezes de caráter familiar, se convencionou que o uso de mão-de-obra escrava nas mesmas seria uma boa solução para evitar a contratação de especialistas entre as corporações concorrentes, mantendo os conhecimentos técnicos em caráter mais restrito e atendendo a demanda crescente do comércio. O desenvolvimento deste ramo da economia, porém, atraiu também massas camponesas vilipendiadas da posse de suas terras, que se dirigiram para os grandes centros urbanos em busca de trabalho. Logo, parece que nesta área houve a convivência de escravos e mão-de-obra livre (barata), que se encarregaram de desenvolver de maneira brutal a produção de seda, artigos de metal, perfumes, enfim, de toda uma gama de produtos negociáveis tanto no território quanto fora dele.
Há uma discussão importante no aspecto do comércio: se havia controle ou não do Estado sobre a economia (Kirby, 1954:79). Esta idéia se remete ao fato do Imperador Wu di (II-I a.C.) ter legislado sobre o controle de distribuição de alguns produtos, no que seria copiado por alguns imperadores seguintes. Parece-nos que não era sua intenção direta restringir o comércio, ao contrário: o fato do imperador exigir cotas de mercadorias e regular sua distribuição visaria, antes de tudo, estimular a produção e a difusão de artigos chineses em todas as partes do território, inclusive na rota da seda, através do envio de presentes consulares, que estimulavam o consumo dos mesmos. Assim sendo, acreditamos que estas medidas tinham por fim impulsionar a produção e o trânsito de mercadorias (no qual os escravos estavam incluídos...). Quanto à exploração das minas, os escravos não aparecem em grande número no serviço de extração, concentrando-se na produção de derivados. Mas aí, pode haver uma falta de evidências na documentação, e não a ausência desta força (Ch’u, 148).
Campo
No trabalho agrícola havia uma grande resistência na adoção do trabalho escravo, e este continuou a se basear na mão de obra livre camponesa. Aparentemente, o desenvolvimento do processo produtivo chinês era naturalmente avesso ao uso de escravos, dado suas dimensões e métodos de trabalho. Mesmo em um território tão grande, os chineses apreciavam o plantio em terraços pequenos, e com uso intensivo da terra e de recursos técnicos, tais como irrigação, drenagem, adubagem, etc. Mesmo nas grandes plantações, vemos o terreno dividido em pequenos pedaços trabalhados individualmente, o que nos faz supor que este sistema seja herdado do antigo plantio em hortas. No entanto, a atenção dada a terra fazia com que a produção fosse bastante alta para o tamanho do terreno, dando até duas colheitas por ano.[1] Obviamente um escravo poderia executar estas funções, mas algumas condições se impunham para isso: 1o em geral, se usava (e se preferia, por questões de economia) o uso de familiares ou de habitantes da comunidade local; 2o, os chineses tinham uma preocupação perene com a fome, e isso os intimidava a criarem mais bocas para alimentar; 3o muitas dessas vilas eram pobres, e seus cidadãos não tinham condições de manter escravos; e 4o, parte da colheita era recolhida pelos funcionários como imposto, o que diminuía ainda mais sua renda. Logo, os camponeses não tinham motivos nenhuns para se interessarem por escravos. E mesmo os grandes senhores de terra, que agrupavam em seus latifúndios várias dessas comunidades, não se preocuparam em interferir na vida dos mesmos, desde que pagassem seus tributos. Vez ou outra um escravo aparece na documentação acompanhando senhores de terra: mas como disse Wilbur, eles seriam pouco importantes para a agricultura (p.215-216).
Eis aí uma consideração interessante: enquanto no mundo clássico Ocidental a escravidão é um pilar na vida agrária romana, por exemplo, isso não acontecia na China: motivo pelo qual podemos pensar que, apesar dos mecanismos semelhantes de funcionamento, a Instituição da escravidão adaptou-se aos contextos sociais no qual esteve presente.
Há que se pensar se os camponeses não passaram, no entanto, por um processo de servilização aviltante: as convocações para trabalhos públicos muitas vezes arruinavam diversas famílias, que se viam desprovidas de mão-de-obra para o trabalho no campo. Não era raro alguns desses convocados fugirem e voltarem para suas casa. Até o século XVIII, os ingleses continuaram a atestar este processo de forma cômica.[2] É importante apontar que essas convocações se tornaram ainda mais constantes durante o período Han, em função do grande número de obras, permitindo, assim, o processo de falência de vários camponeses que iriam posteriormente para a cidade.
Escravos domésticos
Se existia algum campo de atuação onde os escravos estavam realmente presentes era o do serviço doméstico. Era costume emprega-los nas casas, junto com as esposas dos filhos, em toda sorte de serviços: lavar roupas, cozinhar, limpar, cuidar de animais, da casa, das crianças, entreter (quando sabiam) com danças, poesias, músicas, etc. Os mestres tinham ainda direitos sexuais sobre os escravos e escravas (Nu), e algumas podiam virar suas concubinas (HS, 99). Como foi dito, eles tinham direitos plenos sobre a vida deste tipo de escravos, mas bastasse seu desejo e eles poderiam ser libertos, com todos os direitos dos cidadãos. Os escravos caseiros, como foi dito, podiam ser ou não eunucos: em geral, só se utilizava um eunuco em funções específicas, e não era comum mestres e senhores imporem castrações generalizadas, até porque esta não era uma atribuição sua, mas da lei. No entanto, podiam puni-los segundo sua vontade. Um senhor poderia ter predileção por eunucos, e adquiri-los junto a um mercador, segundo sua conveniência. Quando os eunucos começam a crescer em importância na corte e no funcionalismo público (principalmente no período Han posterior), algumas famílias começam a castrar seus filhos para aumentar suas chances de serem bem sucedidos em carreiras políticas, prática que se tornaria comum posteriormente em toda a China.
Havia um grupo de escravos bem interessante, que eram os militares e guarda-costas. Podiam ser dos dois gêneros existentes, eunucos ou não, mas que se distinguiam, em geral, por serem símbolos de prestígio social. Eram bem vestidos, paramentados e tidos como os mais fiéis, além de bem tratados. Possuíam regalias, mas deviam dar sua vida pelo senhor, caso fosse necessário; e parece, também, que muitos o faziam, tanto quanto roubavam ou matavam pelo seu mestre (HS, 47). A originalidade deste grupo está no fato dos chineses apreciarem utilizar estrangeiros exóticos para tal. Para os serviços domésticos, escravos de outras etnias só eram empregados quando um senhor era muito rico, e podia tê-los em grande número na sua casa. Usualmente, no entanto, grande parte dos donos limitavam-se à ter estrangeiros na guarda, na cozinha ou na cama.
A origem desses escravos parece variar: alguns são traficados, outros são estrangeiros que vendem sua liberdade para serem servos T’u. Em geral, os chineses costumavam apreciar os brancos e os negros, apesar da maioria dos escravos ser composta, como foi dito, de bárbaros do Norte. Existe uma citação sobre um general Huno apoiado pelos chineses chamado Chi Chi (I a.C.) que possuía uma guarda toda formada por homens brancos e que lutavam com táticas especiais, inclusive formando uma carapaça de tartaruga com os escudos (Bussagli, 1970 e Cui, 1998). Uma estátua do tempo Han também apresenta um homem negro vestido com uma armadura militar, mas variadas são as referências a concubinas estrangeiras. Mas porque achamos citações tão esparsas de um processo que parece ser difundido? As hipóteses que podemos levantar são: 1o, de que talvez esta fosse uma prática realmente restrita para quem tivesse recursos financeiros; 2o, de que talvez não interessasse aos escritores falar sobre; 3o, de que os escritores não se interessavam justamente por ser uma prática difundida e normal – em contraposição direta à primeira hipótese. Poderíamos pensar em mais algumas, mas acho que estas três bastam para comprovar o pouco que percebemos na documentação: de que existiam, sim, escravos estrangeiros, e em número razoável (mas passíveis aí de serem confundidos em suas origens étnicas e geográficas). Estes escravos atuavam, de fato, nas funções para eles destacadas, mas para tanto era necessário que o seu senhor possuísse recursos para compra-lo ou contrata-lo, o que restringia o número de pessoas capazes de tê-los. Temos que diferenciar também o tipo de estrangeiro utilizado: afinal, a massa de escravos empregada pelo governo nos trabalhos mais vis era formada por hunos (estrangeiros bárbaros), comuns nas fronteiras e não por brancos ou negros – coisa um tanto diferente na época. Vale lembrar que esses negros são essencialmente indianos; acreditamos ser improvável, dada a conformação das rotas comerciais da época e a distância existente, que muitos negros africanos estivessem por lá presentes. Assim sendo, estes escravos só eram apontados em ocasiões especiais, motivo pelo qual os escritores talvez só lhes davam atenção para chegar à outra pessoa, o magistrado que os possuía.
Vemos, portanto, que o campo do trabalho doméstico é realizado em grande parcela por escravos, e nesse ele predomina. Nos perímetros urbanos, parece ter sido comum que até famílias de renda média tivessem seus serviçais, para ajudar no trabalho doméstico. Só no campo , como dito antes, havia a resistência ao trabalho escravo.
Considerações finais
O governo Imperial por vezes interviu nas formas de submissão e de administração da população escrava, para conter o aprisionamento de cidadãos livres em áreas fronteiriças ou sobre fraca influência do poder central. As legislações sobre o estatuto do escravo também variavam segundo os decretos de cada imperador, mas sempre a questão poder direto sobre vida do escravo Nu foi reafirmada. As discussões que existiam costumeiramente envolviam a propriedade dos filhos dos escravos, ou de sua família, critério que parecia variar (em alguns momentos, toda a família do prisioneiro era escravizada – em outros, apenas o prisioneiro). Houve também observância em relação ao comércio de escravos e sua utilização social e econômica. Durante o tempo do Imperador Wu di, um dos principais estimuladores indiretos do escravismo, houve um debate forte em torno da questão, e o aumento do número de escravizados aumentou tanto que um de seus conselheiros, Tung Shu, sugeriu a abolição da escravatura, opinião essa não aceita, mas que estimulou a promulgação de leis regulatórias sobre o sistema, incluindo regras sobre a compra da liberdade (HS, 24).
O que podemos observar, por fim, é que não devemos considerar a escravidão como a principal força de trabalho na China Antiga, mas desconhece-la seria também um grande erro. Observamos que as condições peculiares do campo chinês desestimularam seu uso agrícola, mas quando necessário, ela surgiu como uma satisfatória opção de trabalho nas manufaturas, e como meio de prestígio para as classes mais altas.
O número de escravos, que aumentou muito durante o período Han, não parece ter sido, porém, grande em proporção ao do Ocidente, embora essas considerações sejam difíceis de serem feitas. Nas revoltas camponesas que existiram na dinastia Han, é provável que escravos lutassem dos dois lados: alguns, libertados, do lado dos camponeses e outros, ainda, dos seus senhores. Mas o fato é que na China não se conheceu nenhuma revolta típica de escravos como as ocorridas na península itálica.
Assim sendo, podemos concluir este trabalho observando que as práticas legais que envolveram a escravidão na antiguidade Chinesa parecem partir de pressupostos semelhantes, tais como a necessidade de mão-de-obra, expansão do comércio, etc., mas os mecanismos pelo qual esta instituição se construiu dependeram essencialmente das condições culturais que permearam a absorção deste sistema, o que cria singularidades na análise dos métodos escravocratas, e de sua manifestação em cada uma das sociedades antigas, tal como é o caso da China. Este não foi, talvez, um Império com uma economia Escravista na ampla acepção da palavra: mas é impossível negligenciar a existência dos mesmos em sua sociedade.
Bibliografia
ZZ= Zuo Zhuan; SJ= Shiji, HS= Hanshu
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[1] No livro de PEYREFITTE, A. O Império Imóvel. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 1997, que descreve a embaixada inglesa realizada na China no final do século XVIII, os visitantes ficam surpresos com a produtividade do campo e seu uso intensivo, com o sistema de rotação de colheitas e sem descanso da terra.Mal eles sabiam, como cita o autor, que este sistema remontava a antiguidade, tais como outras práticas que veremos a seguir.
[2] Ibidem Peyrefiite, 1997. Era divertido aos ingleses verem durante os trabalhos de sirgagem (arrasto de barcos pelo rio através de cordas puxadas por pessoas na margem) que os camponeses locais, convocados para o trabalho, mesmo debaixo de bambuadas, por vezes fugiam correndo no meio do trabalho, e como ocorriam fugas de várias pessoas ao mesmo tempo e em várias direções, os guardas não sabiam o que fazer e ficavam constrangidos. Ainda assim, o trabalho era feito, provavelmente para se evitar punições contra as vilas e a repetição do trabalho. Estas revoltas contra o serviço forçado já ocorriam desde antiguidade, sendo um dos motivos de protesto da seita de inspiração taoísta dos 5 alqueires de arroz, que congregava camponeses contra o sistema imperial Han (período Han posterior, I-III d.C.).
Aspectos da Escravidão na Antiga China Han in Revista Helade, 3 (2), 2002
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