Recentemente tenho buscado analisar o que é esta sabedoria chinesa, e porque acredito ser ela tão importante para qualquer ser humano. Devo admitir, antes de tudo, que este conceito é importante para mim mesmo. Mas, se não acreditasse que ele possui algo de universal, desnecessário seria então escrever um artigo sobre o tema.
Com isso não afirmo também ter alcançado alguma sabedoria, mas tenho procurado rastrear os meios pelos quais se pode obtê-la. Estas fórmulas ou métodos são aquilo que os chineses chamam de dao (caminho, via). Cada autor ou escola de pensar – seja na China, seja no resto do mundo – que se preocupou com o problema da sabedoria, tentou elaborar um meio de alcançá-la ou vivencia-la. E cada ser humano, especificamente, simpatiza mais ou menos com uma dessas vias. Minha preocupação, portanto, é comentar sobre a proposta dos pensadores confucionistas - que ao meu ver buscaram construir um dao eminentemente social – cujas perspectivas abrem-se a todo o tipo de pessoa graças as suas posturas flexíveis e adaptativas. Estas pressupõem a anuência da vida cotidiana como uma das condições no qual se insere aquele que deseja praticar a o dao; ou seja, não precisamos abandonar o mundo para tentar atingí-la. “Um homem sem humanidade não poderia viver por muito tempo na adversidade nem poderia conhecer a alegria por muito tempo. Um homem bom apóia-se em sua humanidade, um homem sábio beneficia-se de sua humanidade” (Lunyu, 4). Estamos no dao; não podemos escapar dele nem por um minuto sequer, senão não seria o dao (Zhongyong, 1). Nele encontraremos a sabedoria. Mas o que ela é, a sabedoria? Investiguemos o que Confúcio tinha a dizer à respeito.
Sabedoria e Conhecimento
Antes de tudo, temos que tomar cuidado com o que a sabedoria não é. Ela não é um objeto vulgar, um elemento de adágios e clichês constantemente repetidos. Ela não é um objeto transcendente ou religioso. Não depende de crença no espírito ou não. A sabedoria dos Confucionistas é prática, pragmática, e no entanto profunda; aceita que todos os seres humanos a possuem em potencial, e ela pode estar desperta ou não. O dao dos letrados consiste em construir um caminho pelo qual se pode alcançá-la; e esta possibilidade pode ser adquirida pela educação – mas lembremos, ela é antes de tudo uma possibilidade, e não uma fórmula perfeita e fechada.
Isso porque Confúcio fazia a distinção entre o conhecimento e a sabedoria. Algumas vezes confundimos pessoas inteligentes com pessoas sábias, mas isso não é correto; é errado também acreditar que pessoas religiosamente devotadas possuem sabedoria. A educação ou a religião podem ajudar a despertar a sabedoria, mas são acessórios, instrumentos; do mesmo modo, aparentemente existem pessoas que já nascem e crescem com alguma porção de sabedoria, sem que precisem de algum destes recursos.
Em chinês, existe uma palavra específica para designar esta sabedoria completa; Sheng, a sabedoria que une as experiências internas e externas. Xue designa o verbo estudar – adquirir conteúdo, internalizar conhecimento; Zhi significa experiência prática, sabedoria em lidar com a realidade das coisas – conhecer, conjugar o estudo com a experimentação; Dong é compreender; Jiao, instruir-se; Huei é saber um conhecimento prático, como um idioma... Nenhuma dessas palavras, no entanto, representa o que Sheng busca significar; unir o Ren (o humanismo, o princípio que nos torna seres humanos) com o conhecimento do real. A sabedoria seria, pois, a prática do próprio humanismo.
Esta distinção é fundamental na visão confucionista, e podemos constatá-la de modo prático; afinal, já não conhecemos muitas pessoas que “estudaram”, mas parecem estar longe de ser sábias? Quantas pessoas com diplomas envolvem-se em todo o tipo de escândalo moral (e neste caso, refiro-me a causar o mal a outrem, ou seja, quebrar o princípio fundamental do “não faça aos outros aquilo que não quer que lhe seja feito”, Lunyu, 13)? Por este aspecto, poderíamos pensar que a educação não é um recurso efetivo para ajudar alguém a buscar a sabedoria; mas antes de tudo, devemos nos perguntar se, agora, nossa educação pode propiciar de fato algo mais do que um superficial conhecimento técnico da realidade (e tenhamos em mente que desde o século VI a.C. Confúcio já apontava para as falhas existentes nos procedimentos educativos).
Do mesmo modo, a contraprova deste problema vêm daquelas pessoas que parecem manifestar sinais de sensibilidade, inteligência apurada, algum conhecimento de sabedoria prática que denota sinais de uma latente sabedoria completa. Encontramos estes exemplos em toda a sociedade, mas destacam-se aqueles entre os grupos menos favorecidos da população. Pobres, sem recursos, com uma educação básica muitas vezes falha, estas pessoas no entanto buscam ater-se a um procedimento moral respeitável. Possuem algumas vezes aptidões que, desenvolvidas, permitem-nas destacar-se em seus campos de trabalho e estudo. Alguns podem ser ditos “intelectuais orgânicos”, como Gramsci bem apontou. Não afirmo com isso que estas pessoas tem a sabedoria, mas seus exemplos demonstram que o potencial da mesma está em todas as pessoas, independente de sua classe social, etnia ou educação. Confúcio disse: "existem aqueles que são sábios inatos; após estes, vêm os que necessitam estudar para atingir a sabedoria; depois, os que só adquirem algo a custa de muito esforço. Quanto aos que não tem nem inteligência nem vontade de aprender, são esses os últimos"(Lunyu, 16).
Estudar e obter conhecimento podem ser, portanto, meios pelos quais desenvolvemos nossas aptidões e abrimos nossos olhos para realidade das coisas (no caso social, as diferenças e relações entre os seres, os problemas culturais, a questão da adaptação, etc). Mas, como dissemos (e Confúcio sabia disso), são meio, instrumentos, mas não significam o caminho completo. Para atingir este caminho completo, depende-se do único elemento que é governado apenas por quem a possui; a individualidade, a consciência íntima do ser. Para se atingir Sheng, aquele que pratica a via tem que estar disposto a visualizá-la, tem que tê-la como meta. Se não o fizer, de nada lhe adiantará. Daí porque a importância, para Confúcio, de uma educação que privilegiasse principalmente o despertar do ser humano. Instigar a profundidade e admiração dos seres pelas artes, fazer-lhes conhecer as razões pelo qual seria vantajoso buscar a sabedoria, apresentar a faceta humana daquilo que constitui a própria sociedade (a cultura e a moral)....são indicativos que permitiriam a alguém vislumbrar como é e de que modo podemos chegar a sabedoria. Mas, lembremos; se este é um caminho aberto à todos, cabe a cada um buscá-lo. “Praticar o ren é começar por si próprio, querer para os outros o que quer para si mesmo (...) busca em ti a idéia daquilo que podes fazer pelos outros- eis o que te porá no caminho do ren” (Lunyu, 6). O caminho se faz por si só. Somos nós que precisamos estar nele, de forma consciente. A educação aponta para isso, mas não nos traz a sabedoria automaticamente. Neste momento, o conhecimento prático pouco nos valerá se não partir de dentro de nós o desejo de ir além.
Sabedoria e Ser
Por isso, não devemos confundir sabedoria com inteligência ou ilustração. Não devemos confundir também com devoção religiosa. Cada um pode ser sábio dentro da sua própria crença, ou mesmo não tendo crença alguma. A sabedoria se atém ao ser como humano, como elemento pensante. Funda-se no Li, o princípio ordenador de todas as coisas. Li determina que nós nascemos humanos porque somos gerados por outros seres humanos, dentro de uma padrão cósmico que não muda; temos braços, pernas, cérebro, a capacidade de sonhar, amar, distinguir-se de outros animais, desejar, transcender nossas limitações físicas. No entanto, somos regulados por Yi, a mutação, que faz cada um de nós ser, do mesmo modo, diferentes entre si. Não há um ser humano como o outro, como não há nada no universo que se repita em forma; no entanto, somos essencialmente semelhantes, pois todos temos em maior ou menor quantidade os mesmos atributos e capacidades. Quando perdemos uma habilidade devido a qualquer tipo de acidente, desenvolvemos alternativas que nos re-potencializam. Em tudo está presente o poder de aprender e transformar. Mas o seu uso é condicionado, ao fim, por uma imanente sabedoria que a todos permeia.
Assim, nos cabe saber que a sabedoria existe porque está presentes nos seres – em alguns desperta, em outros (muitos) não. A sabedoria completa têm sido desde muito menosprezada por razões de ordem pragmática. Os seres tem privilegiado o aspecto material e racional da realidade, em detrimento de suas capacidades e possibilidades intuitivas e multifacetadas. Preferem fixar os elementos, ao invés de adequar-se a flexibilidade de uma natureza em constante mutação. Brigamos com o cosmo, e tentamos submetê-lo; de modo inexorável, porém, nos destruímos. Nosso tempo acaba sendo apenas o tempo presente, pois em nome do futuro destruímos o próprio futuro. Não há saber, portanto, que possa existir e conter sabedoria se for usado contra a natureza dos seres e das coisas.
Disso decorre que a sabedoria contém algo de construtivo, benévolo e preservador. A sabedoria pode ir além das noções de bem e de mal presentes numa moral social, mas não vai contra a natureza (Mêncio, 6:1). Adeqüa-se, é flexível, maleável e conservadora (Zhongyong, 14). É ecológica, funda-se nos fluxos do cosmo. Está contida no ser, pois lhe é inerente. Mas o mesmo ser que pode potencializá-la pode podá-la, submetendo-a a um racionalismo escravizador da subjetividade. Invertendo o jogo, o ser atrela-se a realidade material como se adequar-se a ela fosse condicioná-la. Assim sendo, ele perde a si próprio. Perde o ren (humanismo), a base sobre a qual a sabedoria se assenta.
Eis então um materialismo desprovido de sentido, que muitas vezes confundimos com uma “ausência de espiritualidade”. Ambas as coisas não tem uma relação direta. Podemos não acreditar em Deus e, no entanto, sabermos valorar a consciência íntima do ser e seu papel intelectual e social. Do mesmo modo, alguns pretendem fundar uma noção de sabedoria pautada em crenças teológicas, cujo único objetivo final é alcançar o bem-estar da matéria. Tais são as armadilhas das quais devemos a todo tempo buscar nos evadir (Zhongyong, 7). Ora, o sábio adapta-se as circunstâncias, e fazendo-o, isenta-se de exigências. Devemos acreditar, por fim, que o ser pode somente despertar-se por estes meios, mas a sabedoria completa só se alcança na inferência da amplidão (Zhongyong, 13), do cosmo, e da sua manifestação particular – o ren, a consistência da própria humanidade. O sábio independe da cultura ou da religião - estas é que dependem dele.
O Sábio atua no vazio
Por isso Confúcio afirmou: “O sábio é sem idéia, sem necessidade, sem posição e sem eu” (Lunyu, 9). Um sábio não possui idéias sem fundamento, nem privilegia concepções; não necessita de posição, seu ponto de partida é si próprio, não predetermina coisas, nem faz afirmações categóricas, sendo sem preconceito; não se posiciona, não se obstina, tem o que é correto para si mas está aberto ao estudo; e, por fim, não é egoísta, egocêntrico, pedante, não visa o particular no universal, mas o universal no particular.
Para que possa, pois, desempenhar o seu papel de sábio, ele trafega por entre as pessoas sem se fazer perceber. Ele atua no vazio que existe na realidade e que distancia os seres um dos outros. Cumpre todos os procedimentos sociais, trabalha, realiza seu papel, e conserva-se na sua posição até que seja necessário manifestar-se. Adapta-se às situações, sem no entanto perder seu caráter. Não busca convencer ninguém, mas debate aquilo que lhe inquirem, e deixa seus argumentos ao vento como uma fragrância de perfume ou como uma isca no anzol. Disse Mêncio: “Ao estudar extensamente e ao discutir minuciosamente o que estuda, o objetivo do homem superior é capacitar-se para resumir e explicar com brevidade o essencial”.
Como se pode ser sábio, então? Estudar, analisar e experienciar – este é o dao de Confúcio. O mestre abriu uma trilha para todos, mas como saber se atingimos ou não a sabedoria? Novamente, indícios; nossos sonhos nos atormentam? Nossa satisfação é puramente pessoal, e não encontra eco naqueles que nos cercam? Mesmo Tang, antigo soberano da dinastia Shang, possuía gravado em sua banheira; “renova-te, renova-te e renova-te”(Daxue, 2). A sabedoria é, também, um exercício diário.
Com tantas incertezas (embora devamos crer que elas sejam muito mais aparentes do que possamos imaginar), há um guia. O guia consiste neste agir correto que se estabelece em nossos limites. Nosso agir moderado não deve e nem pode ser determinado por imposições puramente racionalistas ou culturalmente condicionantes. Funda-se na busca interna que caracteriza a articulação entre experimentar a realidade e buscar atingir o discernimento. Isentado-nos, fazemo-nos plenamente reais, alcançamos nossa potência. É necessário conhecermos primeiramente o fim para onde devemos tender, ou nosso destino definitivo, e tomarmos, em seguida, uma determinação; tomada essa determinação, podemos ter, depois, o espírito calmo e tranqüilo; estando o nosso espírito calmo e tranqüilo, podemos, conseqüentemente, gozar desse repouso inalterável que nada pode perturbar; atingido este repouso inalterável que nada pode perturbar, podemos, depois, meditar e formar juízo sobre a essência das coisas; meditado e formado esse juízo sobre a essência das coisas, podemos alcançar, em seguida, o estado de aperfeiçoamento desejado (Daxue, introdução).
Não somos sábios, ainda; mas podemos ser, se quisermos. Observando o método, cabe-nos praticá-lo e internalizá-lo. Não há promessas de poder, senão o de dominar-se a si mesmo; não há recompensa visível, apenas aquela se obtém intimamente. E no entanto, quantos até hoje alcançaram a condição de sábio? Nem os sábios sabem. Mas se conhecemos poucos, é justamente porque não buscamos procurá-los, nem mesmo tentamos sê-los.
Só os mais sábios e os mais estúpidos nunca mudam.
Sugestões de Leitura
Para ler Confúcio, sugiro as edições de Cheng, A. Diálogos de Confúcio (Ibrasa, 1997) e Guerra, J. Quadrivolume de Confúcio. (Macau: Jesuítas de Macau, 1980) e Livro de Mâncio. (Macau: Jesuítas de Macau, 1980). Ver também Jullien, F. O Sábio não tem idéia. (São Paulo: Martins Fontes, 2000). Sobre a importância do estudo, veja o meu outro artigo Para ser um sábio. E, leia o mais que puder e interessar. O caminho que pretendo pode não servi-lo...
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