Janela da Alma: Uma Chamada para a Reflexão Filosófica

A mente vê, a mente ouve: as outras faculdades são surdas e cegas.
Epicarmo

O Filme “Janela de Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho (Copacabana Filmes, 2001) é, em si, uma chamada para a reflexão filosófica que começa de forma paradoxal: a película trata de pessoas – comuns ou famosas – cada qual com algum tipo de deficiência visual, condição esta que nos leva, já de pronto, a constatar que estes mesmos atores não verão o filme do mesmo modo que nós, que enxergamos “normalmente”, o veremos. Disso podemos concluir que o que assistimos seria a versão “real” da realidade (aquilo que seria observável de modo comum por todos que não teriam deficiências visuais) ou, que os únicos que podem realmente entender o filme são aqueles, justamente, que portam estas limitações? E, se estes que possuem deficiências têm uma experiência única com suas capacidades e sentidos, até onde podemos compreender, de fato, o que nos está sendo dito?

A idéia de analisar a concepção de visão por meio de depoimentos variados já demonstra a própria possibilidade de “olhar”, o mesmo problema, de modo múltiplo. A visão não se limita apenas a capacidade ocular – ela vem acompanhada de toda uma carga de interpretação, de uma relação profunda com os sentimentos e idéias que se transformam numa “lente” de interpretação da “realidade”. Será, pois, que vemos “de fato”, ou vemos aquilo que queremos ver? Como bem indicou José Saramago, somos criados dentro de nossa cultura a crer que enxergamos exatamente – nem mais, nem menos – aquilo que nossa vista permite. Mas o que enxergamos realmente? Se Romeu tivesse olhos de Falcão, que lhe permitissem ver mais longe, e do alto, não teria ele percebido o quadro macabro que se assentava a sua volta, e não teria assim desistido de Julieta? A colocação do escritor é perfeita: nossa visão, ligada ao sentimento, pode ser incapaz de ver o óbvio.

Permitam-me fazer uma colocação sobre isso: já dizia o mestre Confúcio, em torno de 6 ou 5 séculos a.C. que “sábio é aquele que torna o óbvio acessível a todos”. Ora, podemos disso extrair uma lição importante: Enxergar não é Ver, tal como Escutar não é Ouvir ou Mexer não é Tocar. Há uma diferença sutil nestes verbos: a capacidade de ir, profundamente, de encontro ao objeto. Podemos enxergar uma cena que se desenrola a nossa frente e, no entanto, “não acreditar no que vemos”. A constatação de algo não torna o objeto Real para a nossa percepção senão através da reflexão. Logo, como podemos categoricamente afirmar o efeito imediato da visão?

Devemos, igualmente, colocar em questão a própria noção de capacidade ocular. A Oftalmologia tem uma certa noção do que ela considera, em termos de acuidade visual, uma vista considerada como “normal”. Se aceitarmos este referencial, podemos constatar, por conseguinte, que grande parte da humanidade não possui a capacidade ocular regular para visualizar o mundo a sua volta. Posto isso, qual indicativo torna-se realmente válido para definir a noção de “visão normal”? E ainda, qual nível de acuidade visual que nos permitiria – teoricamente – enxergar a realidade tal como ela é?

Creio que um outro exemplo torna-se aqui necessário. Bertrand Russel, em seu texto Aparência e Realidade, dá-nos uma idéia bastante interessante para uma reflexão sobre as possibilidades da visão:

“Para tornar óbvias estas dificuldades, concentremos a nossa atenção na mesa. Para a vista a mesa é oval, castanha e brilhante, enquanto para o tacto é lisa, fria e dura e, quando se lhe bate, emite um som a madeira. Qualquer pessoa que a veja, sinta e ouça estará de acordo com esta descrição e, por conseguinte, poderá parecer que não existe aqui a mais pequena dificuldade; no entanto, assim que tentemos ser mais precisos, os nossos problemas começarão. Embora eu acredite que toda a mesa é “realmente” da mesma cor, as partes que refletem a luz parecem mais brilhantes que as outras e algumas, devido à luz refletida, chegam a parecer brancas. Sei que se me mover, as partes que refletirão a luz não serão as mesmas e que a distribuição aparente das cores na mesa mudará. Por conseguinte, se várias pessoas estiverem a olhar para a mesma mesa no mesmo momento, nenhuma delas verá exatamente a mesma distribuição de cores, porque nenhuma delas a poderá ver exatamente do mesmo ponto de vista e, qualquer mudança de ponto de vista, provoca mudanças na forma como a luz é refletida. Para a maior parte das nossas finalidades práticas estas diferenças não são importantes, embora o sejam para o pintor. O pintor tem de perder o hábito de pensar que as coisas parecem ter a cor que o senso comum diz que “realmente” têm e aprender a ver as coisas como aparecem. Eis aqui a origem duma das distinções que mais dificuldades causa em filosofia: a distinção entre “aparência” e “realidade”, entre o que as coisas parecem ser e o que são. O pintor quer saber o que as coisas parecem ser, enquanto o homem prático e o filósofo desejam saber o que são. Contudo, o desejo do filósofo por este saber é mais forte que o do homem prático e igualmente mais afetado pelo conhecimento das dificuldades em responder à questão. Voltemos à mesa. O que vimos torna claro que não existe nenhuma cor que apareça distintamente como sendo a cor da mesa, ou mesmo de uma qualquer parte da mesa. De pontos de vista diferentes a mesa parece ser de cores diferentes e não há qualquer razão para que consideremos uma delas como sendo realmente a sua cor. Sabemos também que mesmo dum dado ponto de vista, sob luz artificial, para uma pessoa daltônica, ou para uma pessoa que use óculos com lentes azuis, a cor parecerá diferente, enquanto no escuro não existirá de todo cor, embora a mesa se mantenha imutável ao tacto ou à audição. A cor, portanto, não é inerente à mesa, mas depende dela, do observador e da forma como a luz nela incide. Na vida quotidiana, quando falamos da cor da mesa, aludimos apenas à cor que parecerá ter a um observador normal, dum ponto de vista habitual e em condições de luz vulgares. No entanto, as cores que aparecem sob outras condições têm idêntico direito a serem consideradas reais e, por conseguinte, para evitar qualquer favoritismo, somos levados a negar que, em si mesma, a mesa tenha uma qualquer cor em particular. O mesmo se passa com a textura da mesa. Podemos ver a olho nu os veios da madeira, mas com exceção disso, a mesa parece lisa e uniforme. Contudo, se a observássemos por intermédio de um microscópio veríamos rugosidades, altos e baixos, e todo o gênero de irregularidades imperceptíveis a olho nu. Qual destas é a mesa “real”? Temos, como é natural, a tentação de dizer que o que vemos através do microscópio é mais real, mas isso, por sua vez, seria alterado por um microscópio ainda mais poderoso. Se, portanto, não podemos confiar no que vemos a olho nu, porque deveremos confiar no que vemos por intermédio de um microscópio? Deste modo, uma vez mais abandona-nos a confiança que tínhamos nos sentidos ao começar”.

O que isso nos permite imaginar sobre a questão da visão, portanto? Que o próprio ato de Ver não é qualificável, como um sentido, de forma tão simples. Do mesmo modo, ele é indissociável das concepções de sentimento, reflexão ou condicionamento cultural que nos acompanham. O psiquiatra americano Oliver Sacks, entrevistado no filme, mostra que quando há uma ruptura entre o olhar socialmente condicionado e o individuo, temos o surgimento de algo que podemos qualificar como um “problema mental”. Os limites entre a normalidade e a patologia tornam-se aí frágeis. Um portador da Síndrome de Capgras, por exemplo, consegue enxergar um familiar ou parente, mas não o reconhece como tal, pois não consegue efetuar a ligação entre o sentimento que traz por esta pessoa e aquilo a quem visualiza. Tal contradição torna-se insuportável, criando uma condição de doença. O mesmo Sacks analisou outros problemas relacionados a visão em seus livros O Homem que confundiu sua mulher com um chapéu e O Antropólogo em Marte. No primeiro, ele identifica um outro tipo de síndrome onde o paciente consegue igualmente observar os objetos, mas não os entende tal como eles parecem. Não há uma ruptura de sentimento, mas na identificação da função objetivo de um determinado elemento. Neste caso, portanto, a acuidade visual pode ser até classificada como normal, mas a sua utilização não.

Igualmente, no livro O Antropólogo em Marte, Sacks analisa um outro caso ainda mais intrigante: um paciente, cego desde criança, volta a ter a possibilidade de enxergar novamente na fase adulta. No entanto, como é aprender a enxergar para alguém que não sabe como se faz isso? Definições de cor, forma, espaço e distância absolutamente não fazem sentido para alguém que viveu grande parte da sua vida baseado em suas capacidades táteis e sonoras. O desenrolar da história se conduziu, inevitavelmente, de forma dramática.

Talvez uma síntese adequada sobre os problemas propostos no filme possa ser encontrada num texto introdutório, de Marilena Chauí, sobre a questão da sensação e da percepção:

“O conhecimento sensível também é chamado de conhecimento empírico ou experiência sensível e suas formas principais são a sensação e a percepção. A sensação é o que nos dá as qualidades exteriores e interiores, isto é, as qualidades dos objetos e os efeitos internos dessas qualidades sobre nós. Na sensação vemos, tocamos, sentimos, ouvimos qualidades puras e diretas: cores, odores, sabores, texturas. Sentimos o quente e o frio, o doce e o amargo, o liso e o rugoso, o vermelho e o verde, etc. Sentir é algo ambíguo, pois o sensível é, ao mesmo tempo, a qualidade que está no objeto e o sentimento interno que nosso corpo possui das qualidades sentidas. Por isso, a tradição costuma dizer que a sensação é uma reação corporal imediata a um estímulo ou excitação externa, sem que seja possível distinguir, no ato da sensação, o estímulo exterior e o sentimento interior. Essa distinção só poderia ser feita num laboratório, com análise de nossa anatomia, fisiologia e sistema nervoso. Quando examinamos a sensação, notamos que ninguém diz que sente o quente, vê o azul e engole o amargo. Pelo contrário, dizemos que a água está quente, que o céu é azul e que o alimento está amargo. Isto é, sentimos as qualidades como integrantes de seres mais amplos e complexos do que a sensação isolada de cada qualidade. Por isso, se diz que, na realidade, só temos sensações sob a forma de percepções, isto é, de sínteses de sensações”.

De forma alguma, porém, o problema não está esgotado, e o texto de Chauí pode apenas nos fornecer um ponto de partida adequado para relativizá-lo. O documentário Janela da Alma presta-se a uma extensa e instigante discussão sobre a nossa capacidade de perceber e entender o mundo através dos sentidos. Mas, se faltam-nos referenciais para fazê-lo, creio que a menção de uma simples passagem da música Se fiquei esperando o meu amor passar, do Conjunto Legião Urbana, pode nos ajudar a começar:

Começo a ficar Livre
Espero, acho que sim
De olhos fechados não me vejo
E você sorriu para mim....

Referências
CHAUI, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2003.
RUSSELL, B. Problemas da Filosofia. Florianópolis: UFSC, 2005.

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