Da impossibilidade da sapiência



Dois filósofos conversavam, quando um pergunta: para você, qual é o maior mal da humanidade, a ignorância ou a indiferença? O outro respondeu: não sei, não me interessa...

Esta seria apenas uma divertida anedota, se não escondesse um terrível problema humano: a reincidência da ignorância. Uma desculpa usual - a "qualidade do ensino" tem sido o apanágio dos ignorantes que justificam suas fraquezas diluindo-as em culpas de outros. Mas o fato e que grande parte daqueles que podem ser qualificados como "ignorantes" - e os entenderemos aqui como alienados - são propositadamente engajados na sua ignorância.

Poderíamos exemplificar facilmente a questão utilizando o antológico exemplo platônico do mito da caverna, mas creio que ha nele um problema de definição não resolvido - podem todos, também, atingir a sabedoria e livra-se de sua ignorância?

Este tema incomodou-me profundamente desde o dia em que tomei consciência de um velho provérbio brasileiro: "não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe". Isso foi recente. Até então, eu a tinha como uma dessas declarações que aprendemos quando criança e que depois são esquecidas, mas quem dera isso fosse verdadeiro. Na verdade, a mentalidade brasileira tem sido condicionada por ele, e mesmo sendo uma nação e um povo jovem, já nos comportamos da pior forma em relação ao saber, tendo uma atitude provinciana e reacionária. Não nos preocupamos em saber, e odiamos aqueles que sabem. Entendemos que devemo ser guiados, e abandonamos toda nossa força na mão de alguns, que apenas prometem cuidar de nós porque supõem "saber".

Isso nos faz pensar se esta seria apenas uma questão cultural ou, se ela envolve a real possibilidade do ser humano, como uma categoria geral, atingir algum tipo de sapiência. Neste caso, mito da caverna platônico poderia nos salvar, exceto por não explicar porque nos trancafiamos na caverna - e ainda, porque criamos mecanismos para não sair dela.

Como sempre tento fazer, o pensamento chinês é o meu contraponto. Não desejo de forma alguma alentar a expectativa daqueles que dizem que os asiáticos têm algum tipo de cultura superior - já avisei, esta balela exotérica não procede - mas indubitavelmente, são mais antigos e tem alguns modelos testados. É com eles, pois, que quero estabelecer este dialogo.

Em primeiro lugar, temos que resolver o problema da universalidade x naturalidade do saber. Se admitirmos que a sabedoria pode ser universal, então nós, brasileiros, podemos conseguir filosofar, e nossas barreiras são culturais. Por outro lado, seremos obrigados a pensar em quem criou o mal fadado provérbio e ainda, por quais razoes tantos compartilham dele;

Disse o Mestre Confúcio: “O homem superior é universal e não parcial. O homem inferior é parcial e não universal” (Lunyu), já que “Desde o Filho do Céu até a massa do povo, todos devem considerar o cultivo da pessoa como a raiz de todas as outras coisas. [...] Quando a raiz é descuidada, não pode o que dela nasce ser bem ordenado. Nunca se deu o caso daquilo que tem grande importância ter sido cuidado levianamente, e, ao mesmo tempo, tenha sido objeto de grandes cuidados aquilo que tem pouca importância. [...] Quando a inteligência não se torna presente, olhamos e não vemos, ouvimos e não escutamos, comemos e não sabemos o gosto do que comemos” (Daxue).

Se o filosofar for algo natural apenas em alguns, então não cabe a própria filosofia preocupar-se em se apresentar aos outros, senão como forma de manipular o alheio. A tentação dos daoistas, alemães (com exceção de Kant e Marx) e brasileiros é grande por esta tendência. Primeiro, que alguns poucos "escolhidos" foram abençoados e designados para a tarefa de pensar; em segundo lugar, é bem comum que o defensor desta idéia se sinta como um dos escolhidos.


O Conceito de propensão (shi) existente no pensamento chinês poderia dar a falsa impressão disso ser verdadeiro, mas apenas se sua leitura for superficial e incompleta. A própria concepção de propensão pressupõe que, para ser real, ela deve atingir a todos - logo, cada ser vivente tem que ter algum tipo de habilidade potencial, caso contrário o conceito se esvaziaria.

Os grandes homens têm seus negócios próprios e os homens pequenos têm seus negócios próprios. Além disso, no caso de um só indivíduo, quaisquer que sejam os artigos de que possa necessitar, estão ao seu alcance, produzidos pelos diversos artesãos. Se tivesse de fazê-los ele mesmo, todo mundo andaria de um lado para outro, pelos caminhos a fora. Por isso se disse: “Uns trabalham com sua inteligência e outros com sua força. Os que trabalham com sua inteligência governam e os outros, que trabalham com sua força, são governados. Os que são governados ajudam os que governam. Os que governam são ajudados pelos governados”. Este é um princípio universalmente reconhecido (Mêncio).

Por outro lado, como vamos provar que a sapiência poder ser universal? Se adotarmos o ponto de vista chinês da oposição complementar, poderemos supor então que mesmo a epígrafe da ignorância consumada tão fartamente distribuída em nossas plagas é a antítese consciente da possibilidade de pensar. Ou seja, não seria necessário negar o ato de pensar se ele não existisse. Se ele existe, logo, tem algum propósito (posto que o nada não existe, senão para gerar o seu contrário, que é o existente).

O ato de pensar pode ser entendido de dois modos diferentes, no entanto; o reativo e o reflexivo. Pensar, afinal, todos pensam. Nisso não haveria então perigo algum, se não existisse a possibilidade decorrente de o pensamento poder desafiar a ele mesmo!

Sim, o incômodo é o fundamento da reflexão; a reflexão leva a mudança de opinião; a mudança gera o drama ou o êxtase da revelação. Assim sendo, a defesa infatigável de uma atitude negativa do pensar é, no fundo, a tentativa de manter um modo de mundo fragmentário, decorrente justamente da ignorância – modo reativo de pensar. O ser humano apega-se a sua existência como única, e não como o resultado de uma longa trajetória de ciência, saberes, debates e conflitos de seus antecessores. O imediatismo tem por função conservar o adquirido, mas não promover a investigação. Condicionar é a base do domínio daqueles que descobriram no pensar uma fonte de poder infindável.

Mas, depreende-se disso que haja em alguns um incômodo maior em refletir do que em agir. O universo de frases-feitas brasileiro completa o primeiro adágio com esta peça; "cabeça parada, lavoura do diabo". Pare de pensar, senão você pode imaginar "besteiras". Ocupe seu tempo com trabalho braçal. Mas, o que são estas besteiras, no entanto? O desejo de liberdade? A reflexão profunda? Ou apenas uma perturbação decorrente da inatividade? Qualquer uma dessas respostas não desqualifica a necessidade de refletir para fazer o próprio conhecimento avançar. Agir de modo contrário seria negar a própria racionalidade que separa os seres humanos dos outros animais.

Mêncio disse: “Com os que violentam a si mesmos é impossível falar. Com os que se desperdiçam a si mesmos, é impossível fazer alguma coisa. Renunciar à correção e à retidão na conversação é o que entendemos por violentar-se a mesmo. Dizer: “Não sou capaz de viver benevolamente ou seguir o caminho da virtude”, é o que entendemos por desperdiçar-se a si mesmo” (Mêncio).

A construção de uma ideologia "irracionalizante" como a nossa tem por objetivo, na verdade, construir um falso equilíbrio através, justamente, de uma impossibilidade da sapiência. Não é possível evitar que as pessoas pensem, mas pode-se fazer com que elas ajam de modo irrefletido, através de uma homogeneização superficial das práticas de ser e agir. A integração numa sociedade como a nossa se daria pela aceitação passiva de seus valores condicionantes, negando então - e principalmente - o potencial individual. Isso também significa, conseqüentemente, que aqueles que fundamentaram esta ideologia souberam, desde cedo, que havia a possibilidade de todos pensarem - mas seria melhor, tal como aconteceu, que só alguns o fizessem, e que os outros acreditassem que isso era seu privilégio.

Os daoistas, que gostavam de acreditar numa natureza original imaculada, achavam que era culpa dos sábios a difusão destes enganos. Os confucionistas, sabiamente talvez, entendiam que esta antiga natureza não podia mais ser recuperada, e defendiam o valor do estudo como via principal para construir o processo de reflexão. A arquitetura mental só vem com as fundações, mas seria necessário construí-las.

Atentai bem na educação das escolas, especialmente inculcando nelas os deveres filiais e fraternos e os homens de cabelos brancos não serão vistos a levar pelas estradas cargas na cabeça ou nas costas (Mêncio).

Isso coloca os problemas do Brasil, por conseguinte, na origem do mundo e dos povos. Os portugueses trazem pra cá esta contradição, que não podemos supor inexistente entre os índios. A construção de nossa história tem sido a negação de toda sua potencialidade, e por isso fomos ultrapassados no campo das ciências pelos americanos, tão recentes quanto nós na historia do planeta. Os chineses aprenderam a importância de crer no futuro como um imenso conjunto social e orgânico formado por individualidades, que se sentem responsáveis por saber e cumprir o seu papel produtivo adequadamente.

A ignorância é a prova cabal da existência da sabedoria. Se ela vem pelo estudo letrado, isso pode ate ser discutido (embora eu creia que a melhor via seja sempre abrir possibilidades, e não negá-las), mas a negação do saber é a essência da supressão do Eu.

Ate hoje, o Brasil tem sido um país de conquistas individuais, muito mais em função destas circunstâncias do que propriamente por incapacidade - afinal, não existe a impossibilidade de aprender, mas existe a negação dela. Logo, a conquista individual passa por uma falsa afirmação do Eu, quando devia ser considerada uma superação dos limites auto-impostos pela sociedade. Quem devia ser exemplo e regra vira exceção e mito. Numa terra assim, bandidos podem ser confundidos com heróis românticos, e pessoas bem intencionadas podem passar por fracas ou tolas.

Pang Kang disse “O objetivo do carpinteiro e do cons­trutor de carruagens é ganhar a vida com seu trabalho. Será também propósito do homem superior ganhar a vida com a prática de seus princípios?” “Que tens a ver com seu propósito?”, perguntou Mêncio. “Ele é útil a ti. Merece ser apoiado e será apoiado. Deixe que pergunte, disse Mêncio: Remuneras a intenção de um homem ou remuneras seu serviço?” Ao que Kang replicou: “Remunero sua intenção”. Disse Mêncio: “Há aqui um homem que quebra o teu telhado e desenha figuras repugnantes em tuas paredes. Seu propósito pode ser o de ganhar a vida com isso; mas tu irás remunerá-lo?” “Não”, disse Kang. Mêncio então concluiu: “Nesse caso não é a intenção que remuneras, e sim a obra realizada”. Disse Mêncio: “Ao estudar extensamente e ao discutir minuciosamente o que estuda, o objeto do homem superior é capacitar-se para resumir e explicar com brevidade o essencial” (Mêncio).

O perigo da irreflexão é a impossibilidade da sabedoria - a única, realmente, a poder algo diante da ignorância - e um perigo para a sobrevivência de qualquer sociedade ou povo incapaz de adaptar-se, mudar-se e se aperfeiçoar. Disso já sabiam os antigos, mas apenas os sábios. Os outros? Pereceram em função de sua ignorância. Afinal, somente os sábios e os ignorantes nunca mudam em suas opiniões - mas felizmente, mesmo os ignorantes podem pretender fazê-lo.

Zi kung disse: “Suponha o caso de um homem que beneficia extensamente o povo e que é capaz de ajudar a todos. Que dirás dele? Pode-se dizer que seja perfeitamente virtuoso?” Disse o Mestre: “Por que falar da virtude unicamente em relação com ele? Não pode ter as qualidades de um sábio? Até Yao e Shun se mostravam solícitos a esse respeito”. Pois bem, o homem de virtude perfeita, desejando consoli­dar-se a si mesmo, trata de consolidar os outros: desejando engrandecer-se a si mesmo trata de engrandecer os demais (Lunyu).

Quero crer, pois, que esta nossa ideologia nefasta há de mudar, se formos interessados o suficiente em nos mexermos de nossa acomodação e sacudirmos a poeira de nossa iniqüidade.

Somente, se.....!

Disse Confúcio: “Há oito coisas que o homem superior submete a uma meditada consideração: com respeito ao uso de seus olhos, anseia por ver claramente. Com respeito ao uso de seus ouvidos, anseia por ouvir distintamente. Com respeito a seu comportamento, anseia por ser benigno. Com respeito à sua conduta, anseia por que seja sincera. Com respeito ao cumprimento do seu dever, anseia por ser reverentemente cuidadoso. Com respeito ao de que ele duvida, anseia por perguntar aos demais. Quando está aborrecido, pensa nas dificuldades (em que pode envolvê-lo seu aborrecimento). Quando vê que pode obter algum lucro, pensa na retidão” (Lunyu).

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