Há pessoas que não aprendem, mesmo que esteja escrito


Nos anos de 1973-1974, em uma tumba conhecida como Mawangdui, na China, foi descoberta uma coleção de textos antigos, bem preservados, datados da época da Dinastia Han. Estes escritos são variados, mas seu cunho, no geral, é marcadamente daoísta. Há, inclusive, uma versão do famoso clássico Daodejing que é apresentada no sentido inverso. Expliquemos; o texto canônico do Daodejing é apresentado em 81 versos, divididos em duas partes; uma sobre o Dao (via) e outro sobre De (virtude). O curioso desta versão, que podemos intitular Dedaojing, é estabelecer um debate sobre a ordenação do texto e suas variações (já que algumas diferenças são encontradas no texto de Mawangdui).

Mas não nos interessa agora a discussão do Daodejing. Entre os escritos descobertos, encontram-se tratados curtos, porém bastante esclarecedores, sobre a visão chinesa antiga sobre o sexo. Como sabemos, os chineses encaravam esse aspecto da vida de modo absolutamente natural, e o pudor era um mecanismo social para evitar conflitos, mas nunca foi um problema religioso (ao menos, até a chegada do budismo). Sendo assim, estes tratados abordam a questão sexual de um modo muito peculiar; em 1o lugar, sobre a sua prática como um mecanismo de saúde. No Neijing (Tratado Interno), o primeiro livro de medicina chinesa, o tema já era abordado de forma esclarecedora, embora a orientação geral nele presente seja de regulação e controle (ou seja: ele não é proibido, mas entende-se que devesse ser feito de maneira moderada). Nestes textos de Mawangdui, a atividade sexual deve ser governada, mas não regulada; mais do que uma atividade natural, o sexo é compreendido como algo que o ser humano desenvolveu, tal como todos os outros aspectos da sua vida (alimentação, força, moradia, cultura, etc.). No entanto, ele continua, em essência, a ser um ato natural, e em função disso, o seu aprimoramento potencializa as forças internas do ser. Daí, o seu exercício, se realizado adequadamente, pode promover o bem estar e a saúde, estimular a geração de energia e desenvolver a relação entre os parceiros.

Este é o 2o aspecto destes textos que os tornam bastante singulares. A atividade sexual, mesmo tratada de forma técnica, é entendida como uma maneira natural e benéfica de aprimorar a vida de um "casal" - porque aqui se compreende que os companheiros podem estar juntos, mas não necessariamente unidos por matrimônio. Esta visão daoísta é realmente interessante e revolucionária; admite-se que o sexo é bom, que pode ser feito para melhorar uma relação e mesmo, que essas uniões podem não ser duráveis ou obrigatórias! Disso se conclui que os daoístas não entendiam o sexo como sinônimo de amor, mas sim, de uma atividade que pode enobrecer e melhorar o amor - como um ato natural, ele também é praticado por animais que, no entanto, não estabelecem vínculos uns com os outros senão durante um certo tempo. Logo, as conclusões daoístas podem parecer machistas (se as interpretarmos segundo nossa cultura), mas na verdade, estendem-se a ambos os sexos.

Os daoístas defendiam, ainda, a veneração ao feminino como forma de estímulo energético, que se subentende no texto. A relação de troca entre yang (masculino e rápido) com yin (feminino e lento) deveria engendrar um efeito recíproco, abastecendo um ao outro com as energias contrárias. Eis porque um homem, ao ejacular, perde suas energias e fica yin rápido demais, enquanto a mulher demora a "esquentar", um atributo de yang. Na visão daoísta, quanto mais um homem promover o lado yang da companheira (através de um ato duradouro), mais ele absorverá yin para si mesmo, acalmando-se e desfrutando de um prazer prolongado e pacífico. Do mesmo modo, a mulher deveria estimular-se e procurar o ato de modo ativo (e não somente passivo) para estimular ao máximo seu yang, alcançando a plenitude do êxtase.

Todos estes apontamentos fazem parte da mentalidade daoístas chinesa sobre a atividade sexual. É bem possível que ela tenha colaborado prazeirosamente para o aumento da população chinesa, embora isso não possa ser afirmado estatisticamente. Esta visão milenar foi, por diversas ocasiões, o contraponto da ideologia masculinizante que se apropriou do confucionismo e o transformou, em épocas recentes, no apanágio do machismo cruel e perverso que se apoderou da sociedade chinesa.

Mas a razão pela qual venho a dar a tradução de um destes textos é de constatar, pelas inúmeras publicações existentes, que homens e mulheres parecem ainda não ter aprendido a lidar de forma consciente e sem preconceitos com este tema. Desde crianças, os ocidentais são moldados a pensar na atividade sexual como um problema, algo a ser escondido, um escândalo ou uma imoralidade quando posto as claras. A discussão sobre educação sexual nas escolas já foi aprovada e referendada muitas vezes, mas só foi posta em práticas em alguns países europeus, nos EUA ou em iniciativas isoladas. Por mais que vejamos o sexo nas TVs ou revistas, o cotidiano e o senso comum impõem um limite arbitrário do gênero "isso não deve ser feito" ou "que coisa feia de ser dita". Frases de falsa tolerância tais como "não tenho nada contra isso, mas eu não faria" apenas demonstram que as pessoas, usualmente, preferem não experimentar nada, e tentam controlar seus instintos numa atitude que, geralmente, redunda em fracasso ou depressão. O miasma da hipocrisia, que tanto afeta a moral social, é decorrente em grande parte do conjunto de relações não esclarecidas que se estabelecem em função da inconformação e da insatisfação, unidas a um sentimento de posse absolutamente irracional e não natural.

Este texto que apresento, pois, é um panfleto milenar sobre a questão sexual e do ser humano. Alguns podem argumentar que estes escritos representam uma concepção antiga, inaplicável aos dias de hoje. Se assim for, creio que o leitor deve lê-lo novamente e refletir se o sexo é, hoje, muito diferente do que era feito na antiguidade - pois as sociedades mudam, e sua visão sobre o assunto também - mas até onde se saiba, ele continua sendo feito da mesma forma, e empregando os mesmos instrumentos. Quanto a sua validade como manual, isso cabe aos que decidirem experimentá-lo, e nada pode ser dito sobre sua valia senão no campo pessoal e individual. Os chineses têm como um ponto fundamental em todas as escolas filosóficas o conceito de eficácia, que se aplica aos métodos e teorias defendidas por um autor. Ou seja, qualquer coisa que se afirme tem que poder ser vivenciada e aplicada por outra pessoa, caso contrário, trata-se de um conhecimento inútil. Este critério, que tanto ajudou na medicina e na farmacopéia chinesa, se entende igualmente presente neste texto.

Por fim, ele serve de ponto de apoio para uma reflexão histórica sobre o papel do sexo nas sociedades. Obscurecidos por visões culturais, só recentemente temos trazido a tona uma discussão da importância dessa atividade na constituição da sociedade e da psicologia humana. Entre o texto a seguir e Freud, entre Mawangdui e o relatório Hite, passaram-se séculos. Como tanta coisa ficou, assim, perdida no tempo? Porque há pessoas que não aprendem, mesmo que esteja escrito. Mas há sempre oportunidades para mudar. Este é o ciclo da mutação.


Unindo o Yin e o Yang

1a parte

Em termos gerais, o modo de iniciar o ato sexual é o seguinte: colha suas mãos e comece acariciando seus pulsos, braços e as axilas, e depois, seus ombros e o pescoço. Acaricie ao redor do pescoço, e logo deslize as mãos para o rosto, o queixo, os seios, a barriga e as costelas. Ao chegar à vulva (portão de jade), massageie o clitóris (Jóia de jade). Sorva a energia [o licor emanado da vulva] para vitalizar o espírito, e poderás ver eternamente e viver tanto quanto o universo.

O clitóris é o recipiente do coito no interior da vulva; acaricia-o para cima e para baixo, fazendo com que todo o corpo da mulher se excite prazerosamente e desfrute das gozosas sensações que as carícias produzem. Ainda que deseje, não realize o ato sexual ainda; abrace-a e beije-a, para relaxar e se divertir.

O modo de atuar é o seguinte; primeiro, quando a energia subir e o rosto ficar vermelho, respire lentamente. Segundo, quando seus seios ficarem eretos e seu nariz começar a gotejar, abrace-a suave e firmemente. Terceiro, quando as línguas estiverem doces e úmidas, beije-a lentamente com a língua. Quarto, quando seu corpo se umedecer de suor, mova-se com languidez. Quinto, quando sua garganta secar e começar a engolir saliva, mexa-a lentamente. Estes são denominados os cinco signos do desejo.

Quando os cinco signos do desejo estão presentes, sobe sobre a mulher e penetra-a, mas não entre por completo, para que sua energia se manifeste. Quando a sentir chegar, penetre-a profundamente e empurre para cima e para baixo, para dispersar o calor. Mova-se para cima e para baixo sem desejar que a energia cesse e a mulher alcançará um inacreditável clímax.

Depois, realiza as dez séries de movimentos, siga com os dez estilos de coito e combina as dez classes de penetração. Quando o coito está chegando ao fim, concentra a energia nos genitais, contempla os oito movimentos, escuta os cinco sons e observa os dez signos da consumação.

2o parte

As dez séries de movimentos significam realizar dez etapas de penetração; a primeira, mova-se dez vezes; na segunda, vinte; na terceira, trinta; na quarta, quarenta; na quinta, cinqüenta; na sexta, sessenta; na sétima, setenta; na oitava, oitenta; na nona, noventa; e na décima, por último, cem vezes. Retire o pênis e penetre sua parceira sem ejacular. Se efetuar uma série sem ejacular, sua vista e seus ouvidos ficarão claros. Se fizer duas séries, sua voz ficará clara. Três, sua pele brilhará. Quatro, seus tórax se fortalecerá. Cinco, seus músculos adquirirão uma bela forma. Seis, o trato urinário se limpará. Sete, sua ereção será firme e forte. Oito, sua pele brilhará. Nove, você adquirirá um brilho espiritual. Com dez séries, seu corpo se tornará longevo.

Os dez estilos de coito são os seguintes: o primeiro se chama tigre rugindo. O segundo, a cigarra arpoando. O terceiro, minhoca. O quarto, o cervo empurrando suavemente com seus chifres. O quinto, o fênix estende suas asas. O sexto, o macaco trepa. Sétimo, o sapo; oitavo, o coelho correndo; nono, a libélula e décimo, alimentando o peixe.

3a parte

As dez classes de penetração são as seguintes; a primeira, estimulando a parte superior da vagina. A segunda, estimulando a parte inferior. A terceira, estimulando a parte esquerda. A quarta, a direita. A quinta, movendo-se rapidamente. A sexta, movendo-se com lentidão. A sétima, com movimentos lentos e distanciados. A oitava, com movimentos rápidos e próximos entre si. A nona, com penetração superficial. A décima, com penetração profunda.

Os oito movimentos são os seguintes: o primeiro é abraçar; segundo, esticar os braços; terceiro, esticar as pernas; quarto, abraçar os rins do parceiro com as pernas; quinto, envolver os ombros do parceiro com as pernas; sexto, entrelaçar os músculos; sétimo, quicar com suavidade e oitavo, fazer vibrar o corpo.

O abraço é utilizado quando se quer que os estômagos se toquem. Os braços se esticam para estimular a parte superior da vagina da mulher e poder seguir durante algum tempo. As pernas se esticam quando a penetração não é suficientemente profunda. A mulher abraça os rins do parceiro com as pernas quando deseja que este estimule as partes laterais da vagina. A mulher envolve os ombros do parceiro com as pernas quando deseja uma estimulação profunda. Entrelaçar os músculos é feito quando se tem uma penetração bastante profunda. Rebotar suavemente, quando se deseja uma penetração superficial. Fazer vibrar o corpo, quando a mulher deseja que o homem continue durante mais tempo.

Uma respiração rápida indica um grande desejo de ser penetrada. Respirar com força indica ter chegado ao clímax. Os suspiros indicam que a mulher começa a sentir prazer pela inserção do pênis (haste de jade). Respirar pesadamente reflete o êxtase. Morder e fazer vibrar o corpo indica que uma mulher deseja que o homem continue por mais tempo.

4a parte

À noite, a vitalidade masculina é forte; de manhã, a vitalidade feminina se acumulou. Quando um homem nutre a vitalidade da mulher com sua própria vitalidade, os vasos sanguíneos se dilatam e se excitam, aumenta a energia e o sangue na pele; por essa razão é possível abrir o que está fechado e limpar o que está obstruído, para que os órgãos internos recebam um fluxo renovador de vitalidade e se reabasteçam.

5a parte

Os dez signos da consumação são os seguintes; na primeira consumação surge uma sensação de frescor. Na segunda, aparece um odor similar ao de ossos queimados. Na terceira, uma sensação de calor. Na quarta, surge uma secreção oleosa. Na quinta, surge uma fragrância de cereais. Na sexta, o corpo está tão suado que fica escorregadio. Na sétima há um prolongamento. Na oitava, a secreção da mulher fica consistente. Na nona, sua secreção fica pegajosa. Na décima, o corpo se debilita, volta a ficar relaxado e depois aparece uma renovadora sensação de frescor. Este se denomina o final definitivo.

Os signos do final definitivo são: o nariz da mulher começa a gotejar e seus lábios empalidecem, as mãos e os pés tremem, levanta as nádegas da cama. O homem deve deter-se agora, já que é prejudicial esperar até que a ereção desapareça. Neste momento a vulva se dilata com a energia e o espírito vital entra nos órgãos internos, produzindo um brilho assombroso.

Conclusão

Como vimos, o objetivo do texto é de sistematizar um método para a execução do ato sexual, de modo tanto saudável como prazeroso. Para tal, tanto homem quanto mulher devem ter um conhecimento do texto, como pudemos constatar em sua leitura. Um conceito fundamental do pensamento chinês está aqui presente, ritmo. Tudo na natureza de um ritmo ideal - correr, tocar, mastigar, andar, crescer, viver, etc. Aqui, o ritmo dos parceiros deve ser harmonioso, como é a relação yin-yang, e compassado, medido por uma observação intensa e atenta no decurso do ato. Tal como uma música, a relação dos parceiros precisa ser bem executada. O ato em si também se transforma numa troca generosa, em que a satisfação é gerada para ambos. E... isso foi escrito há mais de 2000 anos.

Leituras:
Quem quiser saber mais sobre o tema do erotismo chinês, veja o meu artigo Notas sobre o Erotismo chinês. Os textos de Mawangdui podem ser encontrados no livro "Five lost classics", de Yates, ou na tradução de Thomas Cleary, “Taoist classics”, vol. 1., ambos em inglês.

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