Todas as coisas têm um princípio (Li), e uma forma física (Qi). A forma física é mutável; o princípio define a continuidade da identidade em uma forma. Assim, a identidade de um princípio é o que chamamos de espírito (Shen). Neste Tratado, analisaremos o princípio que define o sentido da história; das razões pelas quais ela existe; e de como deve ser feita.
Como o princípio (理 Li) está contido na matéria da qual faz parte, a História não pode ser dita, então, como arte; pois que as artes, como a pintura e a escultura, extraem da matéria bruta a peça que está nela contida. A história também é diferente da música ou do restauro, que buscam construir, ou reconstruir, as coisas a partir de partes separadas, dando-lhes um novo sentido. A história é, pois, uma literatura de sentido específico; ela junta as partes perdidas, mas busca extrair delas o princípio que as unia; a partir disso, ela tenta compreender a manifestação dos princípios que regem a vida, e como revelação, ela mostra coisas inéditas sobre o passado.
Por isso foi dito: o ideograma história (史 shi) significa: anotar, escrever, redigir; mas também significa reter a centralidade, salvar um sentido, para compreender a continuidade e a descontinuidade. Por isso Confúcio disse: “mestre é aquele que, por meio do antigo, revela o novo”, o que significa: a história tanto reconstrói quanto reinventa. O que temos sempre é uma impressão do passado, mas esta é a base para a construção de coisas novas. O espírito da história tem, pois, por função primordial, a manifestação dos sentidos ocultos que são encobertos pela mutação da matéria.
Esta é a primeira conclusão deste Tratado.
A história evolui junto com a matéria. No mundo da matéria, o somatório dos princípios (li) gera novos princípios, que ao se manifestarem, caracterizam a evolução da técnica e da moral. O espírito da história acompanha esta evolução. Eis a razão pela qual ela produz verdade, dentro das possibilidades. O texto histórico é uma metáfora do que foi, tentando apreender, pelos restos das evidências, o princípio que lhe subjaz.
A observação da história segue, igualmente, o princípio do yin e do yang. Ao vivermos numa época boa, olhamos para o passado como algo ruim e atrasado; quando vivemos uma época de desordem, enxergamos o passado como uma época boa. O sábio enxerga as épocas como elas são, por meio de seus princípios. Por esta razão Confúcio sabia que vivia numa época de desordem, e seu discurso se dirige a reconstrução da ordem e da harmonia. Ele não invoca o passado par dar exemplos; ele clama pelos exemplos do passado, que são manifestações dos princípios, para ilustrar as atitudes corretas e a compreensão correta das coisas. Já os tolos se guiam pelas aparências, acreditando no que um tempo lhe diz, e criam suas impressões sobre o passado sem qualquer fundamento.
A diferença entre guiar-se por impressões superficiais e por análises sábias reside em construir e recorrer à memória. A memória é a coleção de fragmentos que dá algum sentido a investigação de um princípio. Tais fragmentos são impressões da matéria; por isso desaparecem espontaneamente ou por acidente, ou se preservam tanto quanto são bem guardados. A memória é o oposto do esquecimento, tal como acontece com yang e yin. A memória é feita de escolhas e rejeições conscientes das coisas; o esquecimento ocorre de forma acidental, sem ordem, coerência ou estudo, e por isso nunca é secundada pela razão. Assim, a memória tem como pilar a razão, e serve de base para a realização do espírito da história. O esquecimento, para o contrário. O indivíduo é construído por sua memória, assim sabemos quem ele é; o tolo se apega a suas lembranças desordenadas, o sábio, ao que adquiriu e preservou.
O sábio se vale da memória para executar, devidamente, o espírito da história. Ao resgatá-la, ele constrói o modelo do exemplo, que serve de referência para definição das atitudes humanas. Assim, a história mostra as causas e os princípios, e de como os modelos de exemplo resolveram os problemas que surgiram. O objetivo da história não é guiar as pessoas por meio de respostas antigas aos problemas presentes. O que os modelos de exemplo mostram, sempre, é como se compreendem as causas e razões de uma questão; e como, de acordo com as possibilidades de uma época, eles podem ser solucionados. Por isso que o sábio analisa o passado para estabelecer se há semelhanças ou não com a situação presente. Ele pondera sobre isso, e decide o que é mais acertado.
Hanfeizi disse que qualquer decisão deveria basear-se somente no presente. Este foi seu erro. Ao esquecermos o passado, olvidamos as causas dos problemas. Sem isso, só tratamos a superfície das coisas, mas não os princípios, o que só nos leva as avaliações e ações paliativas. Sem a sabedoria, portanto, é impossível realizar coisas profundas. A força e as leis, defendidas por Hanfeizi, apenas criaram o temor, mas não o entendimento; somente aceitação, mas não compreensão. Esta concepção de história é fadada, pois, a desaparecer – justamente por ser imediatista. Por isso o sábio se atém ao que permanece – os princípios – e busca manifesta-los por meio da educação e da história.
Eis a razão pela qual se diz muitas vezes, igualmente, que o sábio tem visões do futuro. Na verdade, ele acompanha o fluxo dos acontecimentos, e infere seus possíveis desfechos. Esta é a lógica contida no Tratado das Mutações.
Ao decidir sobre os modelos de exemplo, o sábio oferece possibilidades de se interpretar o passado. Esta é a lógica contida nas Primaveras e Outonos.
Por estas razões, a história é moral, pois ela serve para ordenar a sociedade, recuperar os laços perdidos restabelecer ou criar meios e condutas corretas.
Esta é a segunda conclusão deste Tratado.
A história é um dos quatro ramos preciosos da literatura, junto com os clássicos, a poesia e as miscelâneas. Tal importância se dá porque a história é responsável pela preservação do mundo, é o sustentáculo da moral, o fundamento dos ritos e a argamassa da cultura. Foi assim que Confúcio iniciou os trabalhos históricos, resgatando o que havia do passado em sua época; Zuoming interpretou a obra de Confúcio, fazendo comentários nas Primaveras e Outonos; Sima Qian aperfeiçoou os meios de pesquisa, datação e organização dos textos históricos; Liuzhiji analisou os elementos os elementos da história na matéria; Sima Guang mostrou as impressões do tempo e as descontinuidades; Zhuxi resgatou o aspecto moral da história, em detrimento da contextualização; Kang Yuwei antecipou, em um século, a possível união do mundo global, escrevendo numa época de crise em que lhe pareceu apropriado utilizar os princípios de Confúcio para modificar o presente e entrever o futuro.
Estes foram alguns autores de renome que fizeram o estudo da história continuar, preservando-lhe o espírito. Suas discordâncias são resultantes das possibilidades do contexto; seus méritos estão na interpretação inédita dos princípios. Nisso reside, assim, a dinâmica da construção da escrita histórica, e a revivência contínua de seu espírito.
Somente uma civilização que conhece e compreende os elementos básicos de sua história pode fazer frente aos desafios externos e internos. Aquelas, porém, que não incluem na sua formação o amparo da história, serão sempre suscetíveis às influências de todo tipo.
Eis porque grupos coesos e diminutos, porém cientes de sua história e cultura, podem ser mais fortes e ativos do que uma grande maioria que vive sem um sentido ou identidade. As idéias que articulam a sociedade estão em sua própria cultura. Por isso o sábio as estuda, e a história lhe dá os exemplos adequados para por em ordem o mundo.
Esta é a razão pela qual a história é um dos ramos fundamentais da literatura.
Esta á terceira conclusão deste Tratado.
Sobre o que deve mostrara história, isso já foi dito, mas devemos esclarecer estes pontos. A primeira coisa que deve mostrar a história são os testemunhos de uma época. A história deve buscar reconstruí-los, na medida do possível, posto que muito pode ter se perdido.
Confúcio disse: "Posso falar sobre o ritual Xia? Seu herdeiro, o país de Qi, não preservou suficientes evidências. Posso falar sobre o ritual Yin? Seu herdeiro, o país de Song, não preservou suficientes evidências. Não existem registros suficientes e tampouco homens sábios suficientes; caso contrário, eu poderia obter evidências a partir deles", que significa: se já naquela época tanto se perdeu, quanto mais distante um tempo, mais difícil reconstruir os testemunhos. O paradoxo yin-yang opera, novamente, sobre a mutação. Quanto mais distantes estamos do passado, as técnicas para investigá-lo se aprimoram. Ou seja, hoje temos técnicas e teorias para analisar o passado, mas estamos distantes dele; os antigos tinham o testemunho vivo de sua época, mas muito se perdeu. Por isso é que se busca traduzir o espírito da história. Assim, o sábio pondera sobre as fontes do passado, as técnicas e hoje, e decide como utilizá-las do modo que julga mais adequado.
Quanto aos testemunhos de uma época, ele se devem ser interrogados, e não aceitos tacitamente. Já se escreveram verdades e mentiras; muitos já defenderam um erro, enquanto poucos acreditavam no apropriado. Existem ainda os autores que, maliciosamente, manipulam as fontes antigas para referendar abusos atuais. Tais condutas devem ser afastadas, e estas teorias, abandonadas, pois, ainda que a história seja uma literatura, ela surgiu para nos dar os modelos de exemplo.
Por esta razão que Liuzhiji disse: “existem poucos bons historiadores, mesmo que haja livros”, o que significa: muitos não têm a capacidade crítica, e utilizam os livros apenas de modo superficial. Foi o que ele chamou de “armários de livros”: formam uma bela estante, mas que nunca são abertos e nem lidos.
Em tempos de opressão, temos o exemplo daqueles que mudaram a compreensão do mundo; nas épocas ruins, temos a denúncia dos crimes perpetrados pelos maus; por fim, não são raras as ocasiões em que a história nos mostra as eras de redenção, e a opção pelas coisas apropriadas. A narração da história é, portanto, a escolha das fontes possíveis; a análise crítica, que elucida seu espírito; e assim, a construção do modelo no qual nos espelhamos.
Zhuxi disse sobre os textos: “leiamos de um tal modo que possamos captar o fio central: depois, toda a trama se revela”, o que significa: ao analisarmos as fontes, portanto, estamos tentando descobrir o que o autor queria testemunhar com tais afirmações. Quanto maior a distância no tempo mutável, mais a interpretação do sentido caberá a nós, e residirá em nós.
Sobre as técnicas, qualquer uma é apropriada, tanto quanto for usada por um sábio. Nas mãos de um tolo, qualquer técnica será usada para propósitos particulares e obtusos. Por isso o sábio não se atém aos modismos, reflete sobre os desafios das técnicas do presente, e pondera sobre o que é mais acertado. Mesmo hoje, os fanáticos e ignorantes fazem uso das técnicas, mas não buscam sentido em nada; o espírito que anima sua compreensão é superficial, e por isso eles se atêm à mutação. Quem não compreende a contradição, não pode compreender porque age, fala e pensa de modo contraditório. Quem percebe isso, está a um passo de iniciar-se no caminho da sabedoria; quem o realizou, é o sábio, que não se contradiz. Por isso, no uso das técnicas, a busca do sentido é fundamental.
Quanto aos temas da história; políticas, cultura, economia, moral, filosofia, religião, literatura, imaginação, ciências da natureza, são todas facetas do mundo da mutação. O sábio busca sentido em todas elas, quaisquer que sejam; disso extrai os modelos, capta a continuidade e a descontinuidade, e por vezes propõe soluções, quando convocado. Esta é a razão pela qual os ensaios de história se dividem em três partes, tal como o “um gera o dois, o dois gera o três e o três gera as dez mil coisas”, o que significa: estas três partes do ensaio histórico o compõe de maneira correta e completa, que são:
- O Ciclo: na história, a composição de uma fase é um ciclo; os ciclos se engendram e se destroem. Compreender um ciclo é saber definir o momento na mutação em que ocorrem os eventos, e o espaço em que eles se desenrolam.
- A Coletânea: a coleção de informações e testemunhos, sobre os quais iremos construir e resgatar o espírito da história.
- A Imaginação: ao criticar as fontes e o ciclo, ao confrontar os testemunhos, vamos imaginar e construir o modelo. Este é o momento fundamental do ensaio, em que o bem frutifica, o mal é revelado, o passado e o presente são Tratados com justiça.
Esta é a quarta conclusão deste Tratado.
Por isso Liuzhiji disse: “na narrativa, a síntese é o mais difícil e, no entanto, é o ideal”, o que significa: muito se escreve, e pouco se diz. Sábio é aquele que usa as palavras de modo apropriado; diz o necessário, capta o espírito e o traduz para o leitor. Os que falam demais não são sábios; os que falam de menos, tampouco; o sábio propõe o que pode e o que deve sobre aquilo que investiga.
Ao traduzir o mundo, ele o transforma em coisas simples; e mostra como o simples pode fazer parte do complexo. O espírito da história é o princípio da ação humana no mundo da mutação. Compreendê-lo é descobrir a natureza do ser humano; pô-lo em ordem, por meio dos modelos de exemplo, é o exercício da sabedoria e da harmonia.
Esta é a conclusão deste Tratado.
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