Na província de Uwa havia um grande médico, reconhecido por sua perícia e estudo. Suas palavras eram tidas como verdades, assim como sua profissão era considerada sagrada.
Um dia, porém, o médico foi chamado para tratar um sábio que morava nas redondezas. Apesar da reputação e renome, o homem aparentemente estava doente. Dormia o dia todo, não sentia vontade de levantar e só fazia as coisas mais básicas. Não é preciso dizer que o médico sentiu-se envaidecido com o pedido dos vizinhos de salvar tão eminente figura. Sua visita (e a cura) poderia trazer-lhe a reputação final e perfeita para sua aura de pensador, algo só a visita calculada ao tal sábio poderia trazer.
Foi com pompa e circunstância que o tal médico se dirigiu a morada do sábio. Ao chegar lá, deparou-se com a figura do filósofo, dormindo em plena luz do dia. Os vizinhos eram todos aflição - e o médico, pura oportunidade. Despertou, então, quiçá suavemente, seu paciente mais importante. Este, como mau humor típico dos que despertam das sestas abençoadas, quis saber do que se tratava a visita estranha. O médico, então, pôs se a falar:
- Vim aqui a pedido do que te admiram e te amam. Dizem que você está com uma doença do sono, e que isso não passa. Quando isso começou a ocorrer? Como você está se sentindo? Diga-me, para que eu possa curá-lo.
O sábio, então, respondeu jocosamente:
- Você deve estar gozando da minha cara. Não chamei médico algum. Durmo porque quero, e esta é minha satisfação. Porque haveria de curar-me do que me dá prazer?
O médico, surpreso, respondeu como de hábito:
- Dormir o dia todo não é natural, nem saudável. Tanto sono assim deve ser uma fraqueza do corpo, ou um mau hábito de preguiça. Posso te ajudar a melhorar. O que você acha?
- Escute aqui, seu embusteiro – respondeu o sábio – eu durmo porque quero, não porque sofro disso. Quanto mais durmo, mais eu me afasto dos males do mundo. Para que ficaria acordado, vendo o que há de ruim acontecer?
O médico não acreditou no que ouviu, e resolveu provar ao sábio as causas de seus erros. Ficasse calado, e o médico não sairia tão mal de sua posição. Mas, vaidoso, resolveu insistir:
- Caro senhor, dormir assim não é normal. Quando isso começou? Todas as pessoas trabalhadoras acordam e dormem cedo. Porque você não faz o mesmo?
Com os olhos apertados de sono, e desejosos de encerrar a tacanha conversação, o sábio rosnou delicadamente:
- Escute aqui, medicozinho. Durante anos eu dei aulas, e via os alunos dormindo. No início, achei que a culpa era minha, e busquei os mais diversos métodos para despertar a atenção deles. No entanto, eles continuaram a vagar ou a dormir. Um dia, porém, percebi que o problema não era meu. “não adiantar ensinar para quem não quer aprender”, disse o Mestre Confúcio. Então, relaxei. Comecei a aproveitar mais meu tempo, ler quando me dava vontade e dormir o quanto podia. Quando durmo, não tenho apurrinhações; se sonhos coisas boas, está tudo bem; se tenho pesadelos, eu sei que tudo não foi real. Vivo num mundo afável e bom. Quando acordo, faço o que preciso para os querem. Em todo o tempo que fui professor, vi uns poucos que se interessavam, e o resto só ocupava seu espaço na classe. Ora, para que desperdiçar meu conhecimento com estas pessoas? Por isso, durmo o quanto quero. Não sou doente nem preguiçoso; apenas vivo minha vida como me convém, e não incomodo a ninguém com isso.
O médico, atônito, balbuciou alguma coisa, tentando ainda mostrar um certo saber:
- Aham....é, mas, como professor, você não se preocupa em mudar o mundo?
- Diga-me, doutor – replicou o sábio – você já viu algum doente saudável? Ao que eu saiba, você vive das pessoas que ignoram, deliberadamente, seus bons conselhos sobre saúde e conservação. O senhor trata gente que vai morrer um dia, com certeza. Então, porque o senhor insiste tanto nestas coisas? Porque o senhor ainda se preocupa? Tal como seus pacientes, meus alunos são, na maioria, idiotas convictos. Tiro uns poucos aos quais me dedico; o resto acha que sabe tudo. Então, porque me preocupar? Durmo, relaxo, aproveito minhas incursões no mundo dos sonhos, que me salvam desta imbecilidade que aqui vivo. Quando o senhor conseguir mudar alguém, me avise; eu ouvirei mais atentamente o seu discurso.
O médico não sabia mais o que falar. Restou-lhe apenas receitar alguns remédios que ele mesmo não usaria, bem como dar um ou outro conselho que ele mesmo não seguiria; o sábio ouviu com aquele sorriso complacente, em seu catre, de quem escutou mas não ouviu, mostrando ser apenas mais um paciente que não seguiria seus iluminados conselhos.
Retirando-se, pensativo, ele voltou ao seu consultório. Falou com sua secretária, perguntou sobre as consultas, e foi para sua casa. Lá, um sofá encantador lhe convidava para um delicioso cochilo, que ele aceitou tacitamente após desmarcar alguns pacientes.
Comentário: Há animais que caçam de dia, e há os animais que caçam de noite. Assim como a natureza deu inteligência para alguns, privou outros dela. Então, porque insistir? A verdadeira fé na humanidade consiste em lhes dar chances pela sua vontade, e não prêmios por sua incompetência. Por isso, o sábio dorme...dorme?
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