Uma breve apreciação sobre a história do Estudo na China



Para quem lê o título acima deste brevíssimo texto, deve parecer que há um engano: não seria uma “história da educação chinesa”, ou algo do gênero? Não. De fato, o que pretendo apresentar aqui é um sumário das visões chinesas sobre o que seria “estudar”. Este ponto foi fundamental na construção da história chinesa, se tratando de uma das questões centrais do pensamento intelectual confucionista, e de seus conseqüentes desdobramentos na ideologia social. Por conta disso, as omissões sobre as opiniões daoístas ou moístas (nitidamente refratárias ao estudo letrado) são propositais – e nem é minha preocupação, neste momento, discuti-las.

Do que se tratava, então, o “estudo” na China Imperial, e o que desta concepção sobreviveu até os dias de hoje? Desde Confúcio, no séc. -6, estudar transformou-se num dos pilares principais da sabedoria, e o caminho mais eficiente e legítimo para a melhoria das condições de vida do ser humano. Estudar é o sinônimo de aprender, e no chinês clássico não há distinção entre os dois - até os dias de hoje, na verdade, os chineses compreendem estudar e aprender como duas coisas iguais. Já comentei em textos anteriores que as famosas frases em português “estudei mas não aprendi” ou “aprendi sem estudar” não fazem o mínimo sentido em chinês. Se há algum conhecimento, há algum tipo de apreensão mental – logo, houve estudo, e conseqüentemente, aprendizado. Pode ocorrer algo do tipo “estudei, mas não compreendi”, mas nunca “compreendi sem estudar” – os verbos estão copulados inextricavelmente. Por isso mesmo Confúcio gostava, inclusive, de utilizar um verbo (jiao) que possuía uma dubiedade interessante – ele podia significar tanto aprender como ensinar. A tradução mais aproximada deste verbo seja, talvez, “educar” (neste caso para denotar um sentido), do que decorre que alguém pode estar “se educando” ou “educando aos outros”. Poder-se-ia usar também "ensinar" (mas ficaria pouco sonoro dizer 'ensinado-se'). A palavra clássica para “estudo”, porém, é Xue, que aparece várias vezes nesta literatura confucionista, como sinônimo de transmissão de conhecimento; o próprio ideograma representa, em síntese, uma mão que conduz uma criança.

O tema do estudo e da educação é famoso, portanto, na proposta de Confúcio; ele lhe dedica um capítulo inteiro nas Liji (Recordações Rituais), inúmeras frases do Lunyu (Diálogos), seções inteiras do Zhong Yong (O Justo meio, no qual o primeiro parágrafo já deixa claro que estudar é a via do céu) e ainda, o Daxue (Grande Estudo), do qual retiro um trecho (para evitar as repetições usuais dos ditos mais famosos de Confúcio):

O “cultivo da pessoa depende da correção de seu coração” significa: Se um homem se acha sob a influência da paixão, será incorreto em sua conduta. Será o mesmo se ele se encontrar sob a influência do terror, ou sob a influência de um olhar carinhoso, ou sob a desgraça e a angústia. Quando a inteligência não se torna presente, olhamos e não vemos, ouvimos e não escutamos, comemos e não sabemos o gosto do que comemos. Eis o que explica porque o cultivo da pessoa depende da correção da inteligência.

Confúcio deixa bem claro aqui o que pretendia com sua concepção de “estudar”: ela revela a sabedoria, liberta o coração e a mente do ser humano de sua ignorância, para além, claro, de fazer evoluir sua vida nos níveis mais simples. O “não estudo” leva as pessoas, na verdade, a famosa “armadilha da vida” proposta no Zhong Yong:

Todos os homens dizem: “Somos sábios”, mas se são empurrados e aprisionados numa rede, armadilha ou laço, não sabem como livrar-se. Todos os homens dizem: “Somos sábios”, mas se lhes acontece escolherem a justa medida, não são capazes de aí permanecer nem por um mês.

O mal humorado – mas fiel – seguidor do Confucionismo, Xunzi (-355 – 288), apesar de pessimista incurável, percebeu que o estudo era a base da existência humana, e sem ele a civilização não poderia existir. No entanto, isso não significava que todos os seres humanos compreendessem a importância do estudo – na verdade, a tendência geral era de que as pessoas não o buscassem como uma forma de aprendizado e educação, mas sim, de maquiagem para sua ignorância. Isso poderia ser percebido nitidamente pela inteligência das pessoas, no momento em que elas se pronunciassem:

Existe a inteligência dos homens sábios, existe a dos excelsos, existe a dos mesquinhos e existe a dos lacaios e escravos. A dos homens santos é aquela dos que falam muito, do modo elegante e metódico, elucidam sempre os dilemas, argumentam de forma coerente e congruente em meio a mil e uma variações de suas formas de expressão. A dos homens excelsos é aquela de pouca fala, porém de forma direta, concisa e sistemática, em estrita conformidade com um limite predeterminado, tal como se limitado pela régua de um carpinteiro. A dos homens mesquinhos é aquela que profere absurdos, se conduz em sentido contrário ao do justo, e se dirigem quase sempre a si mesmos sobre aquilo que afirmam. Por fim, a inteligência dos escravos e lacaios é aquela dos que falam com grande eloqüência, atuam com diligência e presteza, e sem medir conseqüências, dão mostra de talento para uma grande variedade de temas e conhecem de tudo entre as coisas do céu e da terra, mas não são capazes de dar qualquer aplicação prática ao que dizem saber. Fazem malabarismos de palavras com grande maestria, mas suas frases nunca se dirigem a algo de útil, senão a necessidade do momento, sem refletir sobre o justo ou injusto, e nem estudam a verdade intrincada das coisas, propondo-se apenas a levar vantagem sobre os outros.

Infelizmente, isso ainda me parece bastante atual.

Dada a proposta deste texto, creio que não preciso me estender mais para fazer compreender o que os confucionistas queriam dizer com a questão do estudo: ele é vital, tanto quanto poderia ser sagrado, mas ainda assim não pode tocar a intimidade humana tanto quanto este não o quiser. Por estas razões, o historiador da época Tang, Liu Zhiji (+661+721), apontava a necessidade de um estudo “verdadeiro”, tanto quanto dedicado, único capaz de alterar a existência da sociedade. Sem ele, ler, ter livros ou escrever superficialmente nada mais significam que o gasto de papel e a distribuição gratuita de uma burrice recalcitrante e confortável:

Suponhamos que haja um homem que reúna os conhecimentos acumulados durante mil anos e tenha lido cinco carros de livros, mas, ao entrar em contato com algo bom, não sabe que é bom e, diante das opiniões encontradas, não sabe qual é a errada. É, como disse Ge Hong (284-364) um simples “armário de livros”, um mero “dono de clássicos”. Era o tipo de gente a que aludia Confúcio: que utilidade tinham eles, por mais que houvessem estudado?

Mesmo naquela época, Liu Zhiji atentava para os supostos “intelectuais” que se vangloriavam de suas produções “inéditas, definitivas, carregadas de sensibilidade, etc.”, mas que pouco diziam de profundo ou realmente relevante. O exercício de escrever é fácil quando carregado de estilo ou de supostos “sentimentos da alma”, mas quais autores têm a coragem de denunciar, de fato, as misérias humanas? A percepção real da profundidade humana seria o que o habilitaria, inclusive, o investigador do passado – o historiador se transforma, assim, num sondador da alma humana, num pioneiro dos sentidos ocultos, o que exige uma força de caráter raramente encontrada nos ignorantes:

Zheng Weizhong, ministro dos ritos, perguntou para mim uma vez: 'porque desde os tempos antigos até hoje temos tantos especialistas em literatura e tão poucos em história?' Eu o respondi: 'o especialista em história deve reunir três pontos fortes, que raramente aparecem em alguém no mundo de hoje, que o tornam qualificado para ser um especialista nesta matéria. Os três pontos fortes são capacidade, saber e discernimento. Os que são de grande erudição, mas não tem capacidade, se assemelham aqueles idiotas que tem uma terra fértil gigantesca e ouro em demasia, mas não sabem administrar seus negócios e não podem, no fim, obter qualquer ganho com eles. Os que tem capacidade, mas carecem de erudição, se parecem com um carpinteiro que é capaz de manejar o machado como o grande carpinteiro de Lu, Gongshu Ban, mas não tem nem madeira nem machados, razão pela qual ele não está em condições de construir casas. Saber estas duas coisas, por fim, é ter o discernimento'.

Se ao longo da história chinesa esta cantilena se repetiu, é porque na própria China a grande quantidade de pessoas que não compreendeu o valor do estudo continuou a defender seus direitos à ignorância e a sua livre manifestação. Séculos depois, o grande reconstrutor do confucionismo, Zhuxi (+1130+1200), afirmava categoricamente que:

Em minha avaliação pessoal, quando os homens santos e sábios dos tempos antigos ensinavam seus estudantes, não perseguiam outro objetivo que dar-lhes a conhecer os princípios fundamentais da justiça para que se dedicassem a auto-cultivo de sua personalidade e logo fizeram uso extensivo de seu exemplo aos demais; não queriam que os estudantes pusessem por escrito em artigos de linguagem culta o que haviam ditado somente para conseguir fama ou proveito pessoal [...] estudamos com o objetivo pessoal de conhecer as idéias dos homens santos e sábios e, através destas, chegarmos a conhecer as leis da natureza.

Obviamente, a tarefa de estudar não é fácil, tanto quanto um complicado acesso à educação apenas complica as coisas. No entanto, mesmo aqueles que dispõem de meios para fazê-lo preferem, muitas vezes, trilhar o caminho aparentemente mais fácil:

Não é difícil distinguir entre como estuda um imbecil e como estudam os sábios. Estes sempre estudam com sinceridade e tentam praticar o que falam. Ao falar da necessidade de se espiritualizar, se põem a se espiritualizar; ao falar da necessidade de alcançar de modo sincero a consciência, o fazem de modo que sua mesma consciência seja sincera; suas palavras não são ocas, principalmente quando falam de cultivar a sua personalidade e harmonizar as famílias. No entanto, a gente de hoje, ao falar de espiritualidade, nada mais faz do que usar a palavra para compor uns versos ou fazer frases bonitas; ao falar da sinceridade da consciência, somente o faz para ilustrar um tema a mais de suas composições. Ao falar de cultivar a personalidade, se limita ficar repetindo os ditos dos sábios, para parecer mais ilustrado e mostrar seu talento em recitar. O que eles fazem é apenas unir as palavras de um sábio e outro para fazer um ensaio da moda. Mas que proveito oferece semelhante maneira de estudar para o cultivo da virtude e da sabedoria?

Por fim, a tarefa do estudo, como meio de auto-aperfeiçoamento, não exclui a ninguém, nem mesmo os sábios: Ainda que tenhamos nossas propensões naturais, necessitamos fazer duros esforços no estudo e na prática para nos realizarmos. (idem)

Vindo de uma das vozes mais influentes da civilização chinesa, qualquer pessoa um pouco mais cautelosa se precaverá de achar que sabe muito, e com certeza tomará sua timidez diante das incertezas como um desafio a pesquisa e a dedicação nos estudos.

Contudo, mesmos os pensadores chineses estavam atentos ao problema do estudo e da reflexão. Como vimos, Liu Zhiji já havia detectado que ter ou ler livros não basta para tornar alguém capacitado; há um espaço de conexão de sentidos entre o que se estuda e a apreensão do sentido contido no texto:

Há duas maneiras de adquirir conhecimento: estudar e refletir. Ao estudar, não se conta com a própria inteligência, senão que assimilamos o que há de correto nos legados do passado. Em compensação, ao refletirmos, não nos questionamos se seguimos os passos dos antepassados, mas fazemos valer apenas a faculdade do entendimento. O estudo não estorva a reflexão, ao contrário, quanto maior o estudo, maior a capacidade de reflexão, maior o alcance do pensamento, e a reflexão se torna mais proveitosa para o estudo. As dúvidas com que tropeçamos ao refletirmos nos obrigam a estudar com aplicação maior ainda. (Wang Fuzhi, 1619-1692)

Portanto, não basta fazer faculdade para saber, tanto quanto não basta aprender na “escola da vida”. O processo real de aprendizado, que envolve estudo e reflexão, supera as dicotomias desta banalização da realidade, que torna o estudo um mero decorar de textos, palavras chaves e nomes de autores. Zhang Xuecheng (1738 -1801) afirmou, igualmente, que:

Os que têm capacidade devem estudar sempre. O mais valioso que há no estudo é incrementar a capacidade de discernimento. Se uma pessoa tem capacidades mais não estuda, sua inteligência será restrita; se alguém tem a inteligência restrita e carece de discernimento, não é uma, enfim, uma pessoa capaz.

Do mesmo modo, a percepção do processo de estudo conduz, inevitavelmente, à busca individual. O estudo, tal como a arte, depende de uma paixão pelo saber e não pode ser ensinado, mas apenas desperto:

Ao meu modo de ver, um bom professor não ensina livros, nem fica dando longas aulas aos alunos, ele os ensina é a aprender. Ante um problema, um professor não deve dar aos estudantes a solução de pronto, nem deixar programada uma sucessão de procedimentos que conduzam ao descobrimento de uma única solução pré-concebida, mas sim, fazer com que eles se orientem por si mesmos, com a maior rapidez possível, proporcionando-lhes experiências similares que os levem a resultados possivelmente semelhantes aos ideais. Só assim os estudantes estarão em condições de indagar sobre a origem de seus conhecimentos, buscar seu resultado final e, finalmente, encontrar um manancial inesgotável para investigar todas as verdades de nosso mundo. Temos aqui o que se referia Mêncio, quando falava de “obter as coisas por sua própria conta”, que exaltam hoje em dia muitos professores. (Tao Xingzhi, +1891+1946)

Esta explanação sucinta poderia se prolongar, mas creio que o sentido já ficou posto: o estudo é único meio certo de dirimir as incertezas. Para os que afirmam que quanto mais estudos realizam, mais dúvidas tem, isso apenas significa um problema de acordo com a postura das pessoas: os que não gostam de estudar se incomodam com estas dúvidas e param de fazê-lo; os que gostam, simplesmente aceitam os desafios e sentem-se estimulados a prosseguir. Por isso, somente o tolo e o sábio não mudam de opinião: o primeiro, porque acha que já sabe o que precisa, e nega qualquer coisa nova; quanto ao sábio, ele sabe o que sabe e o que não sabe. O sábio está sempre preparado a mudar de opinião se se convencer disso, e o único meio para tal é o estudo.

Com o estudo, os sábios aprendem a duvidar corretamente, e não “desconfiar”, como fazem os tolos. Disse ainda Zhuxi, para que possamos encerrar nosso texto:

No estudo, é fundamental se dar conta de que temos razão hoje porque tínhamos dúvidas ontem; e ir mudando a cada dia, a cada mês, é o que significa o verdadeiro progresso, e a verdadeira razão.


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