A Moralidade e o uso das Palavras

No Canto do Mundo, contava-se a história de um suposto sábio - suposto porque, apesar de possuir títulos de conhecimento e aprovações meritórias nos exames imperiais, ele era conhecido por suas práticas absolutamente imorais - entre as quais estavam a proximidade leviana com seus discípulos, e o uso de uma linguagem absolutamente inadequada.

Decidi analisar o caso, pois o sábio examina as partes, pondera sobre elas e decide o que é mais acertado. Visitei a Daxue onde lecionava, e percebi logo que muitos dos Mestres ali presentes portavam-se adequadamente, segundo os costumes, chegando a uma certa afetação. Isso, porém, só reforçava a idéia de que o tal Mestre seria uma pessoa deslocada deste âmbito, e sua saída não seria, por conseguinte, custosa.

Adentrei sua sala, e percebi rapidamente seu envolvimento perigoso com os alunos, além de seus trajos ofensivos e desalinhados. Esperei que sua lição começasse logo, já que meus receios pareciam se confirmar de todo. Um docente assim é uma ameaça, e que precisaria ser expurgada.

Sua aula começou, mas o que ouvi foi bem diferente do que imaginava. De início, ele foi receptivo para com todos, inclusive com minha visita estranha; não se acanhou, porém, em distribuir reprimendas, algumas bem duras; usou inúmeras vezes de palavras feias e odiosas, mas sempre com sentimento ou propósito; citou casos nada ortodoxos para ilustrar suas idéias, e buscou a todo tempo relacionar o que propunha com a vida de seus alunos. ele era debochado, algumas vezes fazia rir, outras quase chorar, e por momentos, refletir. Num dado momento, tornou-se tão humano que não o distinguia dos outros alunos, ou mesmo da parede no qual se escorava. E, ao contrário do que eu imaginava, pediu a todos que lessem, e muito; "leiam os clássicos!", com um tal ímpeto que se poderia acreditar que ele era realmente um devotado a doutrina de Confúcio.

Meu senso crítico ficou profundamente incomodado com este Mestre, já que ele parecia capaz de envolver, mas não utilizava os métodos usuais para tal. Resolvi interpelá-lo, e quiçá dar-lhe alguns bons conselhos sobre a profissão. Fiz as mesuras usuais, me aproximei e comentei sobre sua aula, bastante instrutiva, mas pouco adequada. Sua resposta foi a seguinte:

- Pouco adequada para quem? Os que estão aqui não são mestres ainda, preciso falar a língua deles. Você critica meus exemplos, mas algum deles é falso, ou não acontece na vida comum? Você critica minhas palavras feias e audaciosas, mas você gostaria que elas fossem usadas onde? Na rua, com desconhecidos, para ofender de fato? A diferença entre a tragédia e a comédia é o tom musical. A mesma história é tão boa quanto ruim, dependendo apenas de como se conta. Para que usar palavras difíceis que não serão compreendidas? Fico com meu vocabulário rude, que me dá problemas, mas me faz ser entendido. Do contrário, como eu poderia querer ser um bom professor?

Fiquei estupefato. De fato, não havia pensado a questão por esse lado. Compreendi que havia um propósito nobre ali. Precisava, no entanto, recomendar o uso de roupas mais adequadas, e uma suavização de seus modos. Ele novamente me respondeu:

- Gasto com livros, não com roupas. E acaso fico mais burro se não uso roupas belas? Joga-se pimenta para disfarçar o gosto de comida estragada; mas isso realmente serve para a educação? Se ensinamos as pessoas a buscar o sentido das coisas, para além das aparências, precisamos antes de tudo dar o exemplo. Não era isso que Confúcio pregava? Toda moralidade do vestuário do Manual dos Rituais destina-se aos que podem fazê-lo. O próprio Confúcio disse, porém: "ensino a qualquer um, em troca de um pedaço de carne", o que significa: venha a mim o mais pobre e apenas demonstre respeito e vontade, e você poderá ser um bom aluno. O que há de errado nisso, então? Será o objetivo de um educador, mais do que educar, se vestir ou ter posses que o tornam "alguém adequado ao ensino"?

Percebi que este homem poderia ser tudo, menos tolo. Ainda assim, restava-me a admoestação sobre o comportamento inapropriado com os alunos. Isso não extrapolaria os limites morais de sua profissão?

- Amaldiçoada seja a profissão que não nos permite ter amigos. Como posso conhecer a vida de meus alunos, se deles me afasto? Como posso saber a realidade de onde eles vêm, se fecho meus ouvidos para isso? Sei que me exponho ao risco: sou acusado de favorecer alguns, de ser libidinoso com outros, e todo o ano me deparo com aqueles que, sem saber o que fazem em uma escola, buscam meus favores em troca de uma aprovação fácil. Ainda assim, se não fazemos o que fazemos por amor a humanidade, então fazemos pelo que? Não pode ser pelo prestígio, posto que até agora só recebi, em troca, a desconfiança de muitos, como você está a fazer aqui, agora; nem pelo dinheiro, porque nunca ganhamos muito nisso; menos ainda pelo reconhecimento, pois tudo que faço para ajudar recebe de troco a inveja e a maledicência. No entanto, como disse Confúcio: disse: "Aprender algo e colocar em prática no momento certo não é uma alegria? Receber amigos que vêm de longe não é um prazer? Não ficar transtornado quando os próprios méritos são ignorados: não é isso a marca de um sábio?". Será, então, que estou tão equivocado assim? Por fim, meu caro colega, eu sempre temo as pessoas que entendem tanto de prevaricação. Se distribuir afagos sem maldade é um erro, eu não sei; se dar atenção especial aos que se dedicam é favorecimento, eu discordo - já que esses buscam saber mais do que os outros, como se pode impedir isso? E não ajudar os que buscam ajuda não seria um crime vindo de um professor? Por estas razões eu não me furto de agir do meu modo particular; viverei cercado de problemas, maledicência e intrigas, mas trago comigo a verdade. Mas se você tiver um tempo, investigue aqueles que enchem a boca de moralidade e palavras belas, e você descobrirá que muitos não passam da casca dura de um ovo podre. Lembre-se do que Confúcio disse: "eu antes ouvia os que as pessoas me diziam; agora, eu vejo o que elas fazem".

Desde então, tornamo-nos amigos - ele tem muito poucos, mas fiéis - de um círculo que, bem sei, nunca será muito grande. Isso não importa, porém. No verão, durante o calor, arregaço sem vergonha as mangas de meus roupões, e observo, sem surpresa, que só os hipócritas percebem isso. De fato, nunca mais consegui adentrar outros recintos públicos sem notar a manifesta leviandade e insatisfação por não ter dado uma reprimenda severa naquele homem. Mesmo que minhas atribuições de Magistrado o permitam, eu me nego a usar mão deste poder para reprimir um sábio; doravante, compreendo claramente suas colocações, baseadas num olhar sobre a realidade que se isenta de pretensões maiores, senão a de ajudar alguns.

A única dúvida que o corrói, ainda, é a de saber se está realmente no caminho da sabedoria ou não. Poderíamos rir disso, ou dizer que suas dúvidas mostram suas incertezas. Pensemos, contudo, nessa colocação: apenas tem certeza do que faz aquele que só faz o que é conveniente para si, de acordo com a hipocrisia da sociedade. O parvo usa as leis morais segundo seu interesse, e não o seu sentido; por esta razão ele se atém as aprências, mas nunca busca o princípio das coisas. Um buscador do caminho estará, então, remexendo com o que está escrito, e chafurdando na incerteza; o que ele conquista de sabedoria é proporcional ao que ele descobre desconhecer sobre o mundo, e por isso seu destino é o estudo contínuo, até a noite dos olhos chegar.

Quem poderá dizer, assim, que ele está errado?

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