O Governo das Coisas


Daxue (大學, ou o ‘Grande Estudo’) é o terceiro Tratado da escola confucionista, junto com o Lunyu (Conversas), Zhong Yong (Justa Medida) e o Mengzi shu (Livro de Mêncio). Ele é atribuído a um dos discípulos de Confúcio, Zengzi, que teria redigido também o Xiaojing (‘Tratado da Fratenidade’, que publicaremos no próximo mês). O tema central do Grande Estudo é: como se governa uma sociedade? A resposta, apresentada pelo texto, é a articulação de uma estrutura macrocósmica de governo com a realidade microcósmica do indíviduo, calcada no cultivo pessoal. Segundo o Grande Estudo, o governo das coisas depende de que cada indivíduo aprimore a si mesmo, desde o mais humilde cidadão até o imperador. As políticas públicas devem ser baseadas, antes de tudo, nesse respeito mútuo e no estímulo ao desenvolvimento pessoal, propiciando a realização humana de maneira autônoma. Novamente, o fundamento de tudo é a busca do equilíbrio social, perdido pela falta de estudo e indispensável para a obtenção da harmonia, o pilar fundamental da existência e da continuidade. No mais, o texto segue sem a ordenação tradicional dos capítulos (alguns são somente parágrafos), que julguei não serem necessários, deixando a leitura mais fluida.



O TEXTO

O Grande Estudo é o caminho que ensina como alcançar a virtude, amar o povo e atingir a perfeição.

Quando sabemos, sossegamos.
Sossegados, ficamos serenos.
Serenos, tudo fica mais calmo.
Calmos, podemos ponderar.
Ponderando, chegamos à solução desejada.

As coisas têm raízes e galhos. Os problemas têm começo e fim. Saber o que vem primeiro e o que vem por último, esse é o caminho.

Os antigos, para manifestar a virtude no reino, começavam por arrumar o governo. Para arrumar o governo, ordenavam suas famílias. Para ordenar suas famílias, cuidavam das pessoas. Para cuidar das pessoas, corrigiam antes seus corações (mentes). Para corrigir seus corações, buscavam pensar de modo esclarecido. E para pensarem de forma sincera e esclarecida, buscavam ampliar ao máximo o seu conhecimento. A busca do conhecimento é a investigação das coisas.

Quando as coisas foram investigadas, o conhecimento tornou-se completo. O conhecimento completo leva ao pensamento esclarecido. O pensamento esclarecido corrige os corações. Corações corrigidos tornam as pessoas bem cuidadas. Bem cuidadas, as pessoas cultivam suas famílias. Cultivadas as famílias, o governo fica organizado. Quando o governo está organizado, todo o reino está feliz e tranqüilo.

Do Filho-do-Céu (imperador) até o povo, o cultivo pessoal é a raiz de tudo.

Quando se descuida da raiz, todo o restante desanda. Não há nada importante que tenha sido mal cuidado; e não há nada que, sendo bem cuidado, não se torne importante. Não se pode ser superficial com o principal, nem dar importância ao secundário.
Isso é ‘conhecer as raízes’ e ‘conhecer profundamente’.

‘Torne sinceros seus pensamentos’ significa: não engane a si mesmo. Quando não gostamos de um mau cheiro, ou quando gostamos de algo bonito, isso é sinceridade íntima. Por isso, o Educado vela por si, mesmo quando está só. Os ignorantes erram mesmo quando estão sós. Quando vêem alguém Educado, eles se irritam, disfarçam seus erros e se fingem de bons. Mas o Educado sabe olhar pra dentro de si, e por isso saber olhar dentro dos outros. Não adianta disfarçar. O que há dentro sempre aparece por fora.

Por isso, o Educado sempre cuida de si, mesmo quando está só.

Zengzi disse: ‘respeite aquilo que dez olhos vêem, e dez mãos apontam’.

A riqueza adorna a casa; a virtude embeleza a pessoa. A mente sã faz o corpo são. Portanto, o Educado é sempre sincero.

O Tratado das Poesias diz: ‘veja as curvas do rio Qi, e seus bambuzais verdejantes; é como um príncipe distinto e perfeito. Ele é bem talhado e polido, com cinzel e lima. Como é profundo e digno. Como é majestoso e nobre. Um príncipe assim não pode ser esquecido’.
‘Talhado e polido’ significa: estudou duramente.
‘Com cinzel e lima’ significa: trabalhou a si mesmo.
‘Profundo e digno’ significa: domina a si mesmo.
‘Majestoso e nobre’ significa: é respeitável.
‘Não pode ser esquecido’ significa: ele é um modelo de virtude perfeita, o povo não deve esquecê-lo.

O Tratado das Poesias diz: ‘não se esquece os velhos reis’. Os sábios gostavam deles pelo que eram. Esses reis gostavam do que o povo gostava, e odiavam o que o povo odiava; por essa razão, o povo também gosta deles. Por isso ninguém esquece deles.

O discurso de Kang diz: ‘sua virtude era envolvente’.

O Taijia diz: ‘contemplou e estudou os mandatos do céu’.

Nos discursos de Yao, diz-se: ‘ele manifesta sua incrível virtude’

Todos eles cultivavam a si mesmos.

Na banheira de Tang estava escrito: ‘renove-se, renove-se e renove-se’.

O discurso de Kang diz: ‘renove as pessoas’.

No Tratado das Poesias está escrito: ‘Zhou é um império antigo, mas seu mandato é novo’.

Por isso, o Educado se aprofunda em tudo.

O Tratado das Poesias diz: ‘num reino de mil li’s é que o povo vive’.

O Tratado das Poesias diz: ‘o Canário descansa num canto da colina’.
Disse o mestre: ‘quando ele descansa, sabe onde descansar. Como o homem não sabe o mesmo que o pássaro?’.

O Tratado das Poesias diz: ‘o rei Wen era profundo. Ele sabia ser reverente e firme. Como rei, era humanista; como ministro, era dedicado; como filho, era amável; como pai, era bom; com as pessoas, era leal.

Disse o mestre: ‘sou tão bom como qualquer um em resolver querelas. O que precisamos mesmo é não ter querelas. Assim, aqueles que não sabem não devem sair falando, e devem ter receio do que o povo acha deles. A isso se chama ‘conhecer a raiz’.

‘Quem quer melhorar, deve começar controlando o seu interior’ significa: quem está com raiva, não se controla. É o mesmo com quem tem medo, aflição, angústia ou paixões.

Quando o espírito se perde, ele olha, mas não vê, ouve, mas não escuta, come, mas não sente o gosto.

Por isso, quem quer melhorar, deve começar controlando o seu interior.

‘A ordem na família depende do cultivo de si mesmo’ significa: as pessoas são parciais quando amam, e também são parciais com o que odeiam. São parciais com o temor, a fé, a compaixão, o orgulho e a arrogância.

Por isso, poucos são aqueles que amam sabendo os defeitos de seus amados; e que odeiam sabendo das qualidades de seus desafetos. Daí o ditado: ‘não se repara os defeitos de um filho, nem a riqueza da colheita’.

Assim, se uma pessoa não cultiva a si mesmo, não pode dar ordem à sua família.

‘Para governar um país, é preciso por ordem na família’ significa: quem não educa sua própria família, não pode educar os outros.

Um bom governante pode governar sem sair de casa. Ele cuida da soberania com a piedade filial; dos mais velhos, com devoção; das pessoas, com bondade.

No discurso de Kang se diz: ‘cuide do povo como uma criança’. Quem faz isso com carinho e atenção pode até errar às vezes, mas age corretamente. Ninguém aprende a criar seus filhos antes de tê-los.

O exemplo de uma família virtuosa é exemplo para o país; o exemplo de uma família cortês promove a cortesia no país; mas um pai mau e ambicioso também é um mau governante, e coloca todo o país em desordem. Diz o ditado: ‘uma só palavra pode arruinar tudo; mas uma só pessoa pode arrumar o país todo’.

Yao e Shun governaram com humanismo, e o povo os seguia. Chieh e Chau governaram com violência, e o povo reagiu com raiva. Quando a prática é diferente do discurso, o povo não obedece. Um governante deve agir corretamente, para poder exigir isso do povo; caso contrário, o povo o desobedecerá. Quem quer governar bem, tem que dar o exemplo. Assim vemos como o governo do país depende do governo da família.

O Tratado das Poesias diz: ‘que pessegueiro delicado e frondoso; a moça que vai casar ordena sua casa’ significa: quem põe ordem na casa pode pôr ordem no povo.

O Tratado das Poesias diz: ‘é leal com seus irmãos’, o que significa: quem sabe ser leal, pode ensinar lealdade ao povo.

O Tratado das Poesias diz: ‘seus modos são apropriados, ele é um modelo’, o que significa: quando o governante dá o exemplo em casa, o povo o imita.

Por isso se diz: o governo de um país depende da ordem familiar.

‘A paz do império depende do seu governo’ significa: se o soberano respeita os ancestrais, há piedade filial; se respeita os mais velhos e cuida dos desvalidos, o povo faz o mesmo; se cuida dos órfãos, o povo o segue. Essa regra é o esquadro do governante.
O que se detesta nos superiores, não faça com os inferiores; o que repudia nos inferiores, não faça com os superiores. Se o mal vai à frente, não o siga; se vai atrás, deixe-o; se o errado vai pela direita, não o leve pra esquerda; se ele está de um lado, fique do outro. Essa é a regra da régua.

Tais são as regras do compasso e da régua.

O Tratado das Poesias diz: ‘os bons governantes são como pais do povo’, o que significa: se eles gostam do que o povo gosta, e se aborrecem com o que aborrece o povo, eles são como pais do povo.

O Tratado das Poesias diz: ‘a colina do sul é alta, e suas rochas são escarpadas. Grande é o mestre Yin, mirem-se nele’, o que significa: um governante deve ser prudente. Se ele erra, joga o reino na desgraça.

O Tratado das Poesias diz: ‘com o povo ao seu lado, os Yin tinham o mandato do céu. Esse é o espelho de Yin; não é fácil cuidar de um país’, o que significa: tenha o povo e você terá a nação; perca o povo e você perderá a nação.

A virtude é o fundamento. Um governo virtuoso tem o povo; quem tem o povo, tem a terra. A terra gera a riqueza, e a riqueza traz segurança.

A virtude é o fundamento; a riqueza é conseqüência.

Quando se deixa de lado o principal e se cuida apenas do secundário, se descuida do povo e o incita a roubalheira.

Acumular riquezas afasta o povo; repartir as riquezas o une.

O governante de palavras injustas desperta a rebeldia; se enriquece ilicitamente, atrai a revolta.

Diz o discurso de Kang: ‘o mandato não é pra sempre’, o que significa: os bons o têm, os maus o perdem.

O livro de Chu diz: ‘Chu não se interessa por essas coisas; eles prezam as pessoas boas’.


Fan, tio do Marquês de Wen disse: ‘o qie incomoda os exilados é a saudade dos pais’.

Nos discursos de Qin se diz: se houver apenas um ministro que seja simples, sincero, humilde, claro e objetivo, generoso, conciliador, altruísta e capaz de agregar pessoas talentosas a ele, pode-se deixar nas mãos dele os filhos e os netos da Terra do Meio, e ele será um administrador confiável. Mas se ele for do tipo que detesta o talento dos outros, sente inveja e despeito pelos sábios, atrapalha tudo que eles fazem de bom, e trabalha para que eles não tenham êxito; esse não pode ser aceito, não pode ser mestre nem dos filhos, dos netos ou do povo. Na verdade, ele é perigoso.

Somente aquele que é humanista pode expulsá-lo para as terras bárbaras, e não na Terra do Meio. É o que significa: ‘somente o virtuoso sabe verdadeiramente amar e odiar os outros’.

Ver alguém de valor e não promovê-lo, ou demorar para fazê-lo, isso é incompetência; ver alguém mau e não querer, ou não poder removê-lo, isso é fraqueza.

Amar o que as pessoas odeiam, e odiar o que as pessoas amam, isso é uma ofensa a natureza humana. Quem age assim chama a desgraça pra si.

Aquele que é Educado segue um grande caminho, e se dedica a ele com lealdade e dedicação; ele não pode se perder em excessos ou no orgulho.

Também existe um sistema para a produção de riquezas: produza muito e consuma pouco. Produza bem e controle os gastos. Assim a riqueza dura.

Os virtuosos usam a riqueza para crescer e ajudar; os desmedidos perdem sua vida por causa da riqueza.

Não existe caso de um soberano que promovesse o humanismo e o povo não fosse correto. Nunca se viu povo correto com um governo fracassado, nem de governo bem sucedido que perde suas riquezas.

Meng Xianzi disse: ‘quem tem cavalo e carruagem não se preocupa com galinhas e porcos. Uma família que tem um frigorífico* não cria vacas nem ovelhas. A família que tem cem quadrigas não devia explorar os impostos do povo. Quem tem um ministro pra isso merece ser roubado. Por isso se diz: ‘ um país próspero não é o que tem lucros, mas justiça’.
*[na época, lojas que vendiam o gelo guardado no inverno]

Quando aquele que dirige o governo só pensa em ganhar dinheiro, com certeza tem junto de si um ministro voraz e ambicioso. Alguns podem até achar que ele é bom: mas em breve, ele vai atrair um monte de desgraças sobre o país. Mesmo que haja pessoas boas por perto, elas não serão capazes de consertar o estrago feito.

Por isso se diz: ‘um Estado não é próspero quando é rico, mas quando é justo’.


ISBN 978-85-65996-13-6

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