Analogia e Inversão são dois meios pelos quais nos aproximamos do objeto histórico pretendido, tendo em vista que ele já ocorreu; desse modo, o exame das evidências, com o fito de contextualizar e ponderar o evento, nos leva a compará-lo com algo já ocorrido e conhecido (analogia), defini-lo como uma situação cujo conjunto aponta para conclusões sutis e não declaradas (inversão) – e ainda, quando há uma fusão de ambas pela percepção de uma situação inovadora.
No entanto, esses dois procedimentos não apontam, necessariamente, para uma conservação do material histórico: ao contrário, a inovação na análise (a originalidade) é entendida como um recurso necessário e derivado da capacidade investigar o objeto histórico por outros ângulos possíveis. Analogias sem princípios comuns são tão inválidas para isso como as inversões sem fundamentos críticos, e disso os chineses estavam absolutamente conscientes. As histórias dinásticas, por exemplo, tinham a tendência a se engessarem com o relato descritivo e as analogias com os tempos antigos, sem uma proposição relativamente inédita; as histórias alternativas (como o Zizhi Tongjian ou ‘Espelho do bom governo’, de Sima Guang), por outro lado, empregaram a inversão, mas por vezes não estabelecem conclusões factíveis, indispensáveis ao juízo moral a que a história se pretende apresentar.
Investigaremos aqui o uso desses dois métodos, levando à construção de uma originalidade histórica que pressupõe a invenção do entendimento histórico, baseado nas possibilidades documentais e metodológicas que se apresentam.
A história na mutação
A história acompanha a mutação, interpretando a manifestação dos princípios:
A história evolui junto com a matéria. No mundo da matéria, o somatório dos princípios (li理) gera novos princípios, que ao se manifestarem, caracterizam a evolução da técnica e da moral. O espírito da história acompanha esta evolução. Eis a razão pela qual ela produz verdades, dentro das possibilidades. O texto histórico é uma metáfora do que foi, tentando apreender, pelos restos das evidências, o princípio que lhe subjaz.
Deste modo, a reconstrução histórica é uma re-significação de um pretendido evento, posto que sua reconstituição, interpretação e parecer decorrem das possibilidades associativas que podem ser feitas entre ele e seus vestígios documentais.
Essa é a razão pela qual Zhuangzi (-369 -286), por exemplo, desqualifica as teorias inobserváveis, por meio da analogia da cosmologia:
Suponhamos que haja uma afirmativa. Não sabemos se pertence a uma categoria ou a outra. Mas se reunirmos as diferentes categorias numa única, então, as diferenças de categorias deixam de existir. Devo explicar, entretanto. Se houver um começo, então houve uma época antes desse começo, e uma época antes da época que ficava antes da do começo. Se há uma existência, deve ter havido uma não-existência. E se houve um tempo em que nada existia, então deve ter havido uma época em que nem mesmo o nada existiu. O nada veio a existir repentinamente. Alguém pode dizer realmente se pertence à categoria da existência ou da não-existência? Até mesmo as palavras que acabo de proferir - não posso dizer se significam, ou não, alguma coisa.
Embora a preocupação de Zhuangzi não fosse com a história, sua observação foi amplamente útil para os historiadores, que conceberam, a partir disso, que a investigação só poderia ser feita a partir de elementos disponíveis (não se pode explicar um evento histórico sem qualquer fonte sobre ele – e por isso, ele ‘não existiu’ enquanto não surgirem indícios de sua ocorrência), cuja categorização seguia a lógica de oposição complementar:
Não há nada que não seja "isto"; não há nada que não seja "aquilo". O que não pode ser visto por "aquilo", (a outra pessoa) pode ser compreendido por mim. Daí eu digo, "isto" emana "daquilo"; "aquilo" também deriva "disto". Esta é a teoria da interdependência "disto" e "daquilo" (relatividade dos padrões).
Mas enquanto Zhuangzi acreditava que o ‘Dao’ para harmonizar essas duas categorizações passava pela a anulação de suas identidades, os historiadores – em sua maioria, confucionistas – defendiam que a relação entre os objetos históricos se dava, justamente, pela sua oposição reveladora, que os tornavam vestígios investigáveis. Os ‘aquilo’ e ‘isto’ a que Zhuang se referia seriam aspectos externalizados de objetos aos quais se buscava dar sentido – contexto histórico, mensagem, idéia – o que permitira capturar, então, o entendimento do princípio que se manifesta no caso em questão.
Enquanto ‘isto’ seria o que afirmo por analogia, ‘aquilo’ é o que não seria ‘isto’ por inversão. ‘Aquilo’ torna-se ‘isto’, porém, se por analogia de princípios ele mantém uma afinidade de categoria, se aproximando mais do que se excluindo. Do mesmo modo, quando a analogia não se verifica válida, inverte-se o procedimento, identificando nas diferenças ou ausências o ponto de aprofundamento.
Analogias
Portanto, para a analogia ser eficaz, é necessário que se conheça os materiais e os propósitos de quem a fez – ou, do que se pretende fazer. Há uma raiz na interpretação do princípio que é dada pelo autor e por quem a interpreta. É o que Confúcio fez, por exemplo, nas Primaveras e Outonos; mas suas indicações cronológicas e eventuais (que eram base de reflexão) tiveram que ser reinterpretadas, como no caso do Zuozhuan, que acabou se cristalizando como a ‘mais adequada’ análise. Mesmo assim, comentários como o Guliang e Gongyang se consolidaram; e depois disso, foram feitos ainda comentários sobre os comentários... indicando uma ampla gama de possibilidades determinadas pela descoberta gradual de documentos ou, pela inversão das análises. Um trecho interessante do intelectual Wang Chong, da dinastia Han, evidencia a importância da analogia no processo do conhecimento histórico:
Para as pessoas comuns, os sábios sabem prever a boa ou má sorte porque sabem deduzir partindo de sintomas insignificantes, e prever o resultado final a partir dos começos, iniciando pelas trivialidades das pessoas na rua para chegar a comentar, por analogia, os assuntos importantes da corte e alcançar, pelo que é mais facilmente visível, o que está oculto e invisível. [...] o sábios não devem sua capacidade de entendimento a dotes excepcionais, mas ao seu raciocínio baseado na classificação das coisas. (Wang Chong, 27 +97)
Zhuxi (1130 +1200), em seu Tongjian Gangmu (algo como ‘Comentários e detalhes do Espelho do Bom governo’, baseado na obra de Sima Guang) se apropria das inversões de Sima para estabelecer suas analogias, entendendo que muitas das críticas desse autor eram falhas. Ele reelabora o texto, aplicando-lhes a conceituação moral que julgava necessária, aproximando-se de um comentário das Primaveras e Outonos. De fato, Zhuxi concordava com a idéia de que os princípios estavam contidos nos eventos (motivo pelo qual eles haviam sido registrados), e entendia que a busca do sentido se fazia pela reflexão letrada – que, ao mesmo tempo em que pautava-se nas tradições, buscava nelas a originalidade do entendimento (a razão esclarecedora):
Dar com a fonte de um enunciado significa identificar a base que o sustenta. É exatamente como construir um edifício; temos que construir bases sólidas, e só depois podemos erguê-lo. Se os alicerces não forem sólidos, toda a madeira empregada na construção será inútil, e somente servirá para edificar um prédio tão frágil quanto suas bases.
Ou seja; utilizando de uma analogia, Zhuxi explicava que a análise do texto consistia em depurar seus excessos, detalhes e disfarces para decodificá-lo, e concluir a mensagem (ou idéia fundadora) nele contido (princípio) por comparação a tradições morais cuja essência, em sua maioria, se remetiam ao cânone confucionista.
Inversões
Por outro lado, os ‘não ditos’, ausências, ou visões restritas da história nos levam a uma indispensável inversão do discurso. Vejamos a própria obra de Confúcio: ela é feita numa época em que as mesmas tradições que o mestre pregava estavam em desuso. Confúcio na verdade nos informava que tais tradições estavam em decadência: contudo, tal afirmação é tanto mais válida quando observamos, realmente, o quanto elas demoraram para serem resgatadas como uma doutrina oficial do império (na época Han, praticamente três séculos depois). Aqui inversão e analogia se combinam; mas a regra está presente: quanto mais se afirma algo, há um forte indício de que esse algo esteja em franco desaparecimento ou perda de força. O mesmo se dá com os manuais femininos: quanto mais legislam sobre a mulher, mais isso representa um desejo de certos grupos misóginos em imporem um controle de que não dispõem. Liu Zhiji (661 +721), historiador da época Tang, deixa isso bem claro no seu manual da história, o Shitong:
Nos tempos antigos os historiadores tornaram públicas as suas palavras sem receio de desagradar os poderosos. Contudo, nos tempos de hoje, os historiadores escrevem suas histórias em segredo, dentro do palácio, tentando não importunar pessoas poderosas ou interessadas; no entanto, dado o grande número de envolvidos nessas histórias, tornou-se impossível escrever qualquer coisa sem ter que atender as objeções desses poderosos [...] com isso, a escrita histórica é vítima de intromissões arbitrárias e contraditórias, que deturpam severamente seus sentidos, e precisa necessariamente ser re-interpretada pelas histórias privadas (não oficiais).
Sima Guang (1019 +1086), foi neste mesmo sentido, dizendo que:
Primeiro, observe as versões rejeitadas [...], e verifique as indicações de que ‘tal livro prova tal coisa’, se não há provas de fato ou se elas estão ou não de acordo com as circunstâncias do caso. [...] às vezes, quando não temos como decidir entre uma versão e outra, mantém-se as duas. Histórias oficiais não são absolutamente verdadeiras, bem como anedotas e histórias diversas não são sem fundamento. Faça uma escolha a partir do seu próprio entendimento.
As inversões servem, portanto, a desconstrução do próprio senso-comum que se forma nas versões historiográficas consolidadas. Mesmo no caso da filosofia grega, por exemplo, a vasta produção intelectual engana o leitor, fazendo-nos crer que o mundo grego era um mundo de filósofos. Com uma ampla parcela da população analfabeta, e restrita a umas poucas cidades (e depois de um certo período, praticamente Atenas), a filosofia era um exercício de alguns seletos, com pouco apelo popular. A Grécia da época era na verdade religioziada, vivendo plenamente seus mitos; mesmo a população de Atenas condenou Sócrates, gostava de sofismas e muitos admiravam Esparta (sua antítese intelectual). Mas quem escrevia sobre isso? A ausência de escritos, motivada pelo desinteresse da maioria em narrar a si mesma, dá a falsa impressão de que os textos filosóficos sobreviventes representariam uma sociedade culta e esclarecida que nunca existiu. A filosofia grega era de uma elite, que teve a possibilidade de se perpetuar como imagem e conteúdo, mas não como realidade.
Por essa razão, Yuan Mei (1716 +1798) afirmou que o passado é uma fonte inspiradora, mas para fazer uma análise consciente é indispensável um exame crítico cuja busca das falhas ou brechas denota as possibilidades de inversão:
No estudo cotidiano, a presença imaginária das figuras da antiguidade é imprescindível, porque somente assim alguém pode contar com uma base sólida. No entanto, quando alguém se põe a escrever, é conveniente que estas gentes antigas se afastem, pois só assim é possível a plena manifestação da personalidade original.
Na modernidade, um caso claro de analogia e inversão se deu com a formação da historiografia comunista a partir de Maozedong. Mao gostava de fazer uso de analogias com o passado para provar que suas propostas eram válidas, empregando amplamente os raciocínios legistas de Shang Yang e Hanfeizi. O exame dos erros da política maoísta só pode ser feito após sua morte, por meio de inversões de seus procedimentos e da revelação de fontes que quebravam as afirmações oficiais. Contudo, a imagem final do líder ainda está em construção, havendo uma tensão entre uma ‘tradição comunista’ oficial e as propostas originais independentes.
A Originalidade
Pois ambos os procedimentos, analogia e inversão, buscam reinventar os acontecimentos, como afirmamos antes. A consciência disso é a verdadeira consciência histórica, na visão chinesa. A originalidade não é puramente uma invenção fictícia, mas a reinvenção de um evento por meio dos elementos disponíveis. Com eles, podemos re-interpretar os dados por ângulos diferenciados, criando o novo sobre o passado (esse ‘imaginar histórico’ que abordamos no texto da ‘História imaginária da China’). O historiador Zhang Xuecheng (1738 +1801) apontou devidamente que:
No estudo acadêmico, nada é mais valioso do que a originalidade. (...) Nos últimos tempos temos visto se generalizar o hábito dos estudiosos se fixarem em detalhes, descuidando de desenvolver novas propostas, o que recorda um bicho da seda que se limita a comer folhas de amoreira, mas não produz seda.
Na época em que escrevia isso, Zhang vivia sob o domínio manchu, responsável por uma dogmatização do confucionismo que o perverteu e o caquetizou, tornando a prática da história uma farsa de repetições inúteis, cujas analogias eram desprovidas de objetividade, bom senso e criticidade. O fim em si da história, nessa época, era a aprovação em exames oficiais do funcionalismo público, e seu conteúdo se fossilizou em versões acríticas, em que nem mesmo as inversões eram possíveis (ou desejadas, na verdade).
Luxun (1881 +1936), o escritor revolucionário da China Moderna, afirmava, com razão, que:
A autoridade dos mestres antigos foi excessiva, e me parece absurda e repugnante. Me parece, ainda, que o que mantém esta autoridade [a tradição] é absurdo, e não vejo inconveniente em rebelar-se contra isso.
Luxun simplesmente realiza aí uma inversão, indicando que a tradição - que se afirmava necessária para a manutenção do regime – era justamente a principal causa de falência do mesmo. Disso resulta que, inevitavelmente, a boa história é inventada, re-imaginada, e necessariamente crítica – e o mais incrível de tudo, isso seria...um cânone! Os piores momentos da história chinesa foram feitos, por conseguinte, por autores preocupados em dizer o que se queria ouvir (pois eram pagos pelo sistema), mas não o que se DEVIA dizer. Se pudermos nos remeter ao passado (por analogia), o hexagrama 47 do Tratado das Mutações (Opressão, Exaustão) deixa isso bem claro:
O grande homem promove a boa fortuna.
Nenhuma culpa.
Quando ele fala, não lhe dão crédito.
....
Não há água no lago:
a imagem da EXAUSTÃO.
Assim o homem superior arrisca sua vida para seguir sua vontade.
A construção da crítica sobe o passado – que embasa o presente, e o decifra em seus problemas – é um ato, portanto, de originalidade, capacidade e coragem. Para isso, pode-se utilizar a analogia com as experiências vividas, ou invertendo os paradigmas da acomodação, e percebendo as falhas do discurso. Quando alguém se abstém, propositalmente, de raciocinar criticamente a história e a cultura, estabelece aí a semente da degradação e do esgotamento. Esse é um grande perigo para a sociedade, cuja história é o alicerce de sua ideologia moral. Como afirmou Luxun, novamente:
Alguém que lê de forma acrítica prejudica, antes de tudo, a si mesmo. Mas quando ele abre a boca, espalha suas besteiras pelo ar, e prejudica todos ao redor. No entanto, ninguém pode estar bem se não lê.
E com esses aparentes paradoxos, a história chinesa nos dá os indícios de como opera uma interpretação do passado que, longe de estar escangalhada, se mostra ainda original, necessária, inventiva e estimulante – para quem puder entendê-la como tal.
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