A Filosofia é um Romance


No texto anterior, propus que a história seria uma forma de ficção científica. Minha proposta original era comparar a história e a filosofia em um mesmo texto, mas refleti sobre a questão e achei melhor separá-las. Afinal, além da distinção natural das duas áreas, isso implica em como, ao analisá-las, também realizamos essa diferenciação.

Entre várias definições possíveis, a ‘filosofia’ (num conjunto idealizado) se pretende uma arte de pensar, uma “ciência” que analisa criticamente as outras ciências, uma ferramenta para o aprimoramento da consciência e do raciocínio lógico, um modo de compreender o mundo. Enfim, ela se propõe a tentar entender de tudo, o que a torna um saco de questionamentos sem forma definida. Eu retiraria daí (talvez) algumas teorias da lógica, cuja objetividade é fundamental nas ciências, mas estou inclinado a acreditar que há um sério problema nos propósitos das outras áreas que compõem a filosofia. Veja-se o caso da ética, fundamental para a compreensão dos dilemas que as sociedades enfrentam, e que tem sido tão banalizada que se chega a propor teorias éticas baseadas em autores que apoiaram genocídios. Ou ainda, veja-se o caso da metafísica, cujo sentido concorre apenas com o da teologia nos dias de hoje.

A filosofia não foi sempre assim, e até o século 18, quando os filósofos eram também cientistas, a observação do mundo andava junto com algum tipo de razão. Contudo, a separação de ambas – a filosofia da ciência – deslocou a razão filosófica para o campo especulativo do conceito, espaço em que a ‘razão’ propriamente dita não opera por categorias ou modalidades que precisam realmente ser expressas de modo visível, palpável, sensível ou ‘real’. Ou seja, enquanto outros campos do saber buscam cientificizar-se e manter uma conexão com o mundo, a Filosofia, quase como um todo, trancou-se na admiração e na investigação de si mesma, tornando ela própria seu objeto de estudo. Claro, há exceções: os poucos filósofos que tem preocupações sociais e reais nítidas são minimizados, em detrimento daqueles que fazem ‘profundas descobertas teóricas’ (???).

O descaminho da filosofia tem transformado seu campo numa sabedoria hermética, desprovida de sentido, que não raro descamba numa fé quase religiosa em certos autores, numa sistemática de auto-ajuda ou mesmo, numa seita de iniciados. No entanto, se isso ocorre, é porque os filósofos guardam ainda alguma esperança de poder influenciar o mundo, e de que suas idéias encontrem o ‘rei-sábio’, o ‘estado-sábio’, o ‘povo-sábio’, etc. Dito isso, o tal trabalho de ‘análise crítica’ que os filósofos se propõe a ensinar (vinculado sempre ao modo de ver particular e de apenas um único autor) incorpora a utopia de poder ler, analisar, desconstruir e mudar a tudo. Mas se as raízes não estão no ‘real’, e sim no ‘conceitual’, que filosofia é possível, assim?

Essa reflexão me levou a pensar que, se a história é uma ficção científica, a filosofia é, quase com certeza, um romance.

Um romance narra histórias e propostas de um mundo que-poderia-ser. Ele oferece modelos ideais, que fazem as pessoas sonharem em viver histórias semelhantes. O modelo de romance norte-americano, inclusive, é a concretização disso: os mesmos roteiros, conflitos, desencontros e a cena final de corrida-até-o-aeroporto são um clássico do que esquema do que-podia-ser. Curiosamente, são os romances mais trágicos que costumam provocar maiores reflexões (vide ‘Romeu e Julieta’, por exemplo, que até hoje é discutido e suscita profundos debates), mas a questão é que as pessoas, no geral, não querem passar seus finais de semana assistindo dramas e concluindo que a vida é uma droga e o mundo é decididamente infeliz. Entre o drama e a comédia, o romance se situa na medida certa para fazer sonhar – e daí o motivo pelo qual a filosofia se encaixa tão bem nessa classificação.

A filosofia busca provar que, de algum modo, seria possível e lógico acreditar na utopia, ainda que ela seja dificilmente realizável. Contudo, devemos ponderar alguns elementos presentes nessa nossa análise. Primeiramente, que os romances são feitos de elementos previamente conhecidos, cuja associação constrói a narrativa. Um romance pode acontecer em qualquer época ou lugar, mas ele será descrito a partir de coisas e situações possíveis e familiares (em geral). Mesmo os momentos mais absurdos são construídos com base em elementos compreensíveis, sem o que, a narrativa seria inacessível ou incoerente, o que torna um romance ‘ruim’. Um romance ‘bom’ depende, portanto, de uma articulação de idéias que apresente certa coerência interna, e que deve ter um resultado (um final) aceitável. Assim como romances não terminam com a vitória do vilão, teorias filosóficas dificilmente contêm erros para o seu próprio autor – e menos ainda para seus seguidores (o que é, em certa medida, apavorante de se pensar).

A filosofia, pois, não raro aceita o pressuposto de intermediar a ficção (o pensamento) em busca de respostas corretas para problemas não necessariamente existentes! Entendemos que esses problemas são os dilemas proporcionados pelo debate dos conceitos no plano teórico. Mas o que debater se eles ainda não são um problema, de fato? A discussão sobre o impalpável proporciona as respostas corretas que concluem o romance imaginário. O desfecho é coerente e pertinente; a questão é saber se ele se aplica a pergunta. A filosofia tenta, de alguma maneira, compreender e explicar o dilema dentro de uma perspectiva que conduz à uma resposta definida.

Com base nessas análises, é difícil imaginar o que poderia se aproveitar da filosofia. A questão, porém, é que enquanto a filosofia for a repetição da história de uma série de esquemas batidos de pensar, ela não leva a lugar nenhum, senão a utopia e ao desencanto (desencanto esse sempre necessário a própria renovação do interesse pela filosofia!). Um filósofo capaz de entender os problemas modernos, compreender as ciências atuais e trazer o debate para o plano da eficácia e da aplicabilidade, esse sim, escapa da armadilha do romance e faz do pensar a base da autêntica ciência crítica.

Infelizmente, o logocentrismo conceitual é bastante cômodo para os que estudam pouco. Ao centrar-se apenas na tradição filosófica, se faz uma má filosofia de repetições e condicionamentos, que exclui do estudo aquilo que é moderno. Em termos práticos, isso significa que a maior parte dos ‘romances’ que os filósofos estudam são de épocas passadas. Mesmo que alguns problemas continuem a existir, as respostas mudam de acordo com o tempo, as culturas ou com a própria evolução do pensar. Imaginar futuros melhores é o fundamento da mudança, mas isso não pode ser feito com base em fórmulas desgastadas, equivocadas ou distantes das ‘realidades’ do cotidiano e da ciência. Durante séculos, bons filósofos tiveram o trabalho de combater, justamente, essa armadilha do ‘pensar pelo pensar’; e enquanto continuarmos a pensar nisso, cairemos na fantasia do romance filosófico... mas sem qualquer previsão de final feliz.


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