A História é uma Ficção Científica


Um casal de velhinhos assistia a um programa de TV sobre Discos voadores. Depois de muito ouvirem as diversas análises de ufólogos sobre o tema, a senhora pergunta para seu marido: "escuta...você acha que existem estes tais de discos voadores?"
"Claro que não", ele respondeu com uma segurança quase autoritária; "a biologia e todos os cientistas já mostraram que é quase impossível ter vida fora da terra. Pra vida acontecer, ela precisa de ar, água, carbono, temperatura, enfim, milhões de coisas que dificultam as probabilidades de haver vida em outros planetas. Vida, pra mim, só tem aqui na Terra".
- "Mas então", perguntou ela, "o que devem ser estes discos voadores?"
- "Ora, é simples! Provavelmente são naves espaciais nossas, vindas do futuro, para ajudar a salvar o planeta da poluição, das guerras, e outros males. Afinal, a Física já provou que podemos viajar no tempo - é super simples!"
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Todas as vezes que me lembro dessa história, que se passou aos meus olhos há alguns anos atrás, duas coisas me vêm à cabeça: a primeira, onde posso fazer um curso universitário de Ufologia? Qual faculdade oferece? Ele é reconhecido pelo MEC? Piadas a parte, claro, uma segunda questão que me incomoda mais é: em que medida o conflito entre a ciência e o acontecimento torna viável o entendimento histórico das pessoas?

Já discuti em outras oportunidades a tensão infindável entre o senso comum e a prática científica, e por isso, não me estenderei muito nesse ponto. O senso comum se baseia em fragmentos mal esclarecidos de ciência e crença, organizados em um conjunto pouco coerente, que tenta explicar por uma ‘lógica’ cambeta o funcionamento do mundo e das coisas. É o senso comum que concede autoridade a um ufólogo – um ‘cientista’ cujo objeto de estudo nunca foi constatado de fato, princípio fundamental das ciências – no mesmo pé de igualdade com a biologia e a física, ainda que as teorias sejam lidas e absorvidas de especiais jornalísticos lidos em finais de semana ou na espera de um consultório.

Por outro lado, as ciências se propõem a serem verificáveis e aplicáveis, sem o que suas teorias não recebem crédito. As ciências não podem explicar tudo, mas podem – dentro de certos limites – garantirem o que defendem. Dito isso, a leitura de livros sobre realidade fantástica, com aquelas hipóteses deliciosas sobre Atlântida, discos voadores fazendo pirâmides, civilizações perdidas, etc. são facilmente demolidos com um pouco de conhecimento sobre arqueologia, ciências naturais, história e mesmo mitologia.

No entanto, a própria construção da história passa aí por um problema sério: se valendo da ajuda de outras ciências (como a arqueologia, ou até mesmo a genética), qual a possibilidade da história superar o fato de que suas teorias servem para interpretar as evidências do passado, e aceitar assim a sua impossibilidade de reconstituir o mesmo? Sim, a afirmação aqui proposta é problemática: estou admitindo que a história propõe passados, vinculados a uma teoria vigente no presente, mas que interpretam as evidências de modos particulares, sem que as vezes haja uma necessidade maior de arranjo coerente, desde que ela sirva a uma ideologia. Se assim for, qual a diferença entre a história e o senso comum, se a história for capaz de propor coisas inverossímeis apenas para atender ao capricho ou aos interesses ocultos de um grupo social?

No texto A História imaginária da China, eu discuti parte dessa questão, que na visão chinesa pressupõe, acidentalmente, que a imaginação atua sobre a reconstituição histórica. A imaginação é o raciocínio especulativo que amarra os acontecimentos numa suposta lógica. Contudo, essa imaginação tem regras para funcionar; ela deve se ater aos resquícios disponíveis, aos pedaços de texto e de matéria que temos em mãos para propor algo. Quanto menos evidências temos, maiores são as dúvidas e as impossibilidades de afirmação. Tal como na reconstituição de um crime, torna-se evidente a manipulação das provas em um sentido acusativo ou defensivo, sendo a narrativa uma elaboração complexa e multifacetada, cuja prova final só existe se o réu confessar o crime – mas mesmo isso traz outros problemas: o réu pode inventar versões, o réu pode ser pressionado a confirmar uma, e ainda, no caso da história, todos os agentes centrais da investigação já estão mortos, e seus testemunhos são descaradamente engajados. Lembremos, a história nasce no ocidente junto com a louvação dos reis e dos mitos. No caso da China, ela surge para manter tradições e com um fundo moral. Não há história, pois, desprovida de um sentido a priori; e mais, nenhuma delas é neutra, a imparcialidade é impossível. A própria escolha de uma época, sociedade ou evento a ser analisado já demonstra o interesse específico de um estudioso, que se diga então de um cronista da época.

Assim sendo, a história passa por uma dificuldade tremenda de ser comprovada – pois o que se ‘comprova’ é uma tese, e ela pode ser ‘descomprovada’ por novas descobertas científicas ou materiais. Vejamos o caso, por exemplo, da tumba de Qinshi Huangdi, descoberta em 1974 – ela era um mito até ser desenterrada. Isso tanto validou o ‘suposto mito da tumba’ como invalidou algumas outras análises, tornando excitante o estudo histórico, mas desconstruindo uma série de teorias sobre as quais eminentes acadêmicos construíram suas carreiras, lançando-os a pecha de mentirosos ou maus profissionais. Tal como um remédio, que foi usado durante anos até que outro melhor surgisse, a pergunta que fica é: porque o utilizamos, se ele não era bom? Como nos enganamos?

Novamente, a China conviveu com a possibilidade de saber que suas versões históricas sempre foram mais propositivas do que afirmativas. A crítica histórica chinesa sempre buscou o sentido, mais do que a idéia de verdade histórica – essa miragem criada por Ranke na qual o ocidente se debate. Porém, isso ainda não resolve o problema. Afinal, como ponderar sobre a possibilidade da história ser desconstruída a tal ponto que ela simplesmente deixa de existir, mesmo que sobrevivam as evidências?

Tomemos outro exemplo, o caso do holocausto judaico na segunda guerra mundial. Apesar de ser recente e fartamente comprovado, o movimento revisionista colocou em dúvida diversos elementos da narrativa do massacre na Europa. Existem vários pontos aí a serem vistos: a tradicional cultura ocidental anti-semita se recusa, por princípio, a admitir esse evento, buscando a mínima falha no discurso para taxá-lo de mentiroso; além disso – e numa atitude horripilante – ela aceita que se houve um holocausto, era de judeus, tal como hoje a mortandade na África seria necessária ao bem-estar de um mundo (europeu) que ‘não gosta de africanos’. Por fim, o Estado de Israel – entidade política cujas ações muitas vezes são lamentáveis – é utilizado como ‘justificativa’ ao passado holocáustico! Ou seja: em um momento se nega o massacre judaico como criação midiática; por outro, se justifica-o, em função da política israelense moderna ser mal conduzida (isso seria equivalente a condenar todos os brasileiros porque o ‘Brasil’, i.e, um grupo dentro dele, toma decisões políticas equivocadas e corruptas baseadas em elites autoritárias e bem armadas). Mas a questão fundamental aí é a seguinte: não há coerência nessas afirmações, mas elas formam um quadro histórico em que a lógica que o organiza o precede. Como as evidências históricas podem, então, servir para aqueles que as desprezam?

Por outro lado, essas mesmas ações militares de Israel, que tem oprimido o povo palestino, terminam por desviar o olhar histórico de qualquer possibilidade de compreender a geopolítica da região. A saber, a Palestina sofreu agressões não só de Israel como também da Síria e da Jordânia. A causa palestina só recebeu mesmo um grande apoio do mundo árabe a partir da década de 70. No entanto, quem quer saber disso? Por razões morais e humanitárias, tanto o holocausto judaico como o palestino deveriam ser lembrados, para não se repetirem – e disso eles dependem, inequivocamente, da escrita histórica. Mas se a vítima (no que se confude o povo de Israel com seus governantes) se transforma em algoz, como justificar uma análise consciente da história? A leitura dessa questão não pode impedir parcialismos, mas inevitavelmente tem levado a radicalismos, sem uma solução eficaz.

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Viajava Confúcio para o este e encontrou dois meninos que discutiam um com o outro. Perguntou-lhes pelo que discutiam e um deles expôs: — Eu digo que o sol está mais perto de nós pela manhã e mais longe ao meio-dia, e ele sustenta que está mais distante de manhã e mais próximo ao meio-dia. Disse um menino: — Quando o sol começa a levantar-se, é do tamanho de uma coberta de carro, e ao meio-dia é como um prato. Logo deve estar mais longe quando parece menor, e mais perto de nós quando parece maior. O outro menino disse: — Quando o sol se levanta, o ar está muito fresco, e ao meio-dia queima como sopa quente. Portanto o sol deve estar mais perto quando faz calor e mais distante quando está fresco. Confúcio não pôde decidir quem tinha razão, e os meninos riram-se dele, dizendo: — Quem foi que disse que tu eras um sujeito sábio?
A história de Liezi (séc. +1?) tinha por objetivo ridicularizar Confúcio e a questão do conhecimento erudito. Esse era um ponto básico da doutrina caminhante (daoísta), que pregava o desprendimento e a ausência de valor das descobertas científicas. Obviamente, tais discursos perdem muito de sua razão diante da mais simples doença, curada com os remédios do ‘saber erudito’, i.e., científico. No entanto, um dos alicerces do senso comum é banalizar e desprezar aquilo que não compreende para afirmar aquilo que pretende. Não é um intuito definido, sendo muito mais uma prática social: ao julgar inacessível um saber teórico, o senso comum o achincalha, colocando a busca científica como algo que ‘afasta a pessoa de sua natureza’ (seja lá o que isso quer dizer). Em termos práticos, isso equivale a não discutir, por exemplo, o desejo de consumo por um telefone celular; mas todo aquele que se dispõe a pensar, estudar, compreender as tecnologias por trás do aparelho sofre de uma depreciação social. São raros os casos de figuras do saber que conseguem uma ampla aceitação pública – e mesmo assim, quando ela ocorre, é acompanhada, em geral, da presença de uma riqueza notável ou de prestígio político por parte do reconhecido.

Por conseguinte, se isso ocorre com as ditas ‘ciências factíveis’, o que se esperar das ciências humanas, cujos resultados dependem em muito da capacidade receptiva dos leitores? O trato com as questões sociais é absolutamente ideologizado, o que implica uma forja de resultados a partir – e não depois – da implantação das experiências. Há uma má vontade generalizada contra qualquer nova teoria ou proposta, e ocorre a refutação automática de versões que se desvinculem de uma concepção anterior mental calcada em ‘verdades’. Nesse caso, apenas as re-interpretações são bem sucedidas, pois requentam coisas antigas, mas sem as problematizações que as acompanhavam. Novamente, permitam-me citar dois casos distintos.

O primeiro é o de Leandro Narloch, cujos dois títulos, Guia politicamente incorreto da História do Brasil e Guia politicamente incorreto da História da América Latina, tem sido um sucesso de vendas. Baseado em estudos acadêmicos sérios, ambos os livros propõem versões alternativas para uma concepção de história, no Brasil, totalmente contaminada pela ideologia socialista nesses últimos anos. O fato do livro ser um sucesso de vendas é o primeiro ponto a ser analisado. Ele é um sucesso em um país que, infelizmente, ainda lê muito pouco, e por isso, seu alcance talvez seja reduzido. Contudo, o fato dele ser um sucesso editorial tem servido para denegri-lo, taxando-o pejorativamente de oportunista ou sensacionalista apenas porque há, em nossa, cultura, essa recusa sistemática pelo saber, como afirmamos um pouco antes. Em nossa sociedade, um ‘intelectual’ tem que vender pouco, pois poucos o compreendem; ele só pode ser largamente divulgado por políticas públicas de educação (que no geral, se encontram ideologicamente com suas idéias), e geralmente mastigado em livros didáticos e intencionalmente resumidos. A questão aqui é que temos pouca experiência com regimes de ‘esquerda’ no Brasil; durante muito tempo, também fomos dominados igualmente por teorias arcaicas de história, representadas pelos regimes de ‘direita’, que em grande parte impedem uma leitura consciente da história. Desse modo, é muito comum que um leitor com uma formação histórica pouco crítica leia o livro de Narloch e o recuse de imediato, usando uma frase consagrada em nossa cultura: ‘então, quer dizer que tudo que aprendi é mentira?’. Sim, pode ser. Mas o problema é que a ‘tese’ do senso comum se encontra com a do regime vigente, que tende a negar terminantemente qualquer versão histórica que ‘revise’ alguns de seus heróis revolucionários. Neste ponto, o engajamento ideológico deixa de lado as evidências e as propostas acadêmicas em função de um discurso apriorístico, que determina de antemão a validade das teses. De que modo, pois, isso poderia ser científico?

O contraponto disso é que o livro de Narloch pode ser, igualmente, superado um dia – e nisso reside o dinamismo saudável da história. Novas descobertas podem modificar o panorama que ele constrói (bem como podem ser usadas para isso), mas o fundamento da crítica histórica é indispensável para a sua continuidade, e não deveria ser negada. O problema, porém, é que nossa cultura está tão absolutamente contaminada por essa cultura ‘rejeitiva’ que atualmente é difícil ser crítico sem ser acusado de reacionário, exclusivo ou elitista. Este é o segundo ponto; há tempos atrás, as teorias de esquerda eram perseguidas; hoje, o panorama se inverteu, e prevalece um modo de pensar que também se nega a ouvir a discordância. Herdando uma concepção de exclusão histórica, essa linha de pensamento dedica-se hoje a excluir tudo que é diferente do seu raciocínio. Daí, numa sociedade em que tudo é exclusão, os grupos se fecham em discursos ‘exclusivos’, que respondem aos seus interesses sem a mínima preocupação com o restante. E qual sua estratégia de inserção na história? Simplesmente negando todas as propostas históricas anteriores, mas por um caminho estranho: as versões antigas são afirmadas (sim, isso mesmo, afirmadas!) dentro de uma nova grade de leitura, que lhe impõe novos sentidos, e as distorcem até o ponto necessário de divulgação-aceitação. Veja-se o caso de muitos livros didáticos brasileiros, por exemplo, que se negam terminantemente a aceitar que as revoluções socialistas no início do século 20 descambaram em ditaduras. Eles aceitam facilmente a tese revolucionária, e desprezam qualquer crítica ao desvirtuamento dos regimes – ainda que muitos tenham quebrado por vontade de seus povos, exaustos por anos de opressão. O caso da China é emblemático nesse ponto: sempre estranha por ser asiática (pois o preconceito arraigado a sociedade brasileira de que o europeu é bom, e por conta disso mesmo os teóricos socialistas também tinham que vir de lá...), essa civilização não faz parte da quase total dos cursos acadêmicos até hoje – e apenas suponho que haja algum que a inclua; ignorada pela ditadura de ‘direita’ (porque ela era de ‘esquerda’), durante um bom tempo ela também foi avaliada com desconfiança pelos especialistas de ‘esquerda’ - e disso eu dou meu testemunho, quando comecei a estudar a China e ouvi de muitos historiadores que ela era ‘irrelevante, inviável e não pertinente’ para a academia! Depois que ela virou moda, muitos especialistas de ‘esquerda’ tentam captá-la de modo superficial, sem compreender a fundo o que implicam as transformações da China atual. Enredados em seu próprio obscurantismo, esses ‘intelectuais’ não conseguem objetivar uma civilização milenária com sua própria cultura, e perdem-se em especulações sem qualquer vínculo com a realidade, senão de uma meia dúzia de números econômicos efêmeros e de alcance reduzido.

Isso se reproduz na história, justamente, na perda de uma cosmovisão, que implica numa dificuldade tremenda de afirmação. Ao tratar das questões históricas de modo dogmático, driblando as críticas e usando uma lente exclusivamente ideologizada em detrimento das provas e evidências, a história fabricada enraíza, no senso comum, versões empasteladas e simplificadas que promovem preconceitos e incertezas. É difícil crer, de fato, numa história que tem as ciências ao seu dispor, mas não sabe usá-las; que pode se negar a usar provas segundo sua conveniência; e que às vezes, está longe de qualquer preocupação em relação à veracidade de uma proposta histórica. Assim, ela se aproxima fortemente do senso comum, querendo mesmo se integrar nele como uma forma de auto-afirmação, buscando no consenso a autoridade perdida na academia.

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Naveguei nesses exemplos diversos, que envolveram ora nossa cultura, ora visões diferentes, ora a visão acadêmica, para chegar a uma análise no qual condenso minhas conclusões acerca da história. Minha visão, baseada no que pretendo ser um pós-confucionismo, admite a possibilidade da história ser uma literatura. Mas de que tipo, então? Se quisermos que a história não seja somente um aperfeiçoamento do senso comum, ela precisará das bases científicas. Se seu alicerce depende de visões ideológicas, como fazer com que essas visões não desprezem as discordâncias, preservando a possibilidade de entendimento crítico (e quiçá, democrático) da mesma história?

Me parece, portanto, que precisamos admitir alguns pontos até aqui. O Passado não existe mais, e o que sobrevive é um princípio de Passado, que é narrado pela evidência e pela experiência. Sua análise é sempre feita a partir do tempo presente, que projeta sobre esse Passado seus anseios e suas auto-justificações. Por causa disso, a história é sempre ética, ou mesmo, uma história da ética (ou da moral), que busca preservar – ou mesmo, destruir, se for o caso – o conjunto das tradições culturais que permeiam a existência de uma civilização. A história é uma escolha de visões, que pode ser feita de modo mais ou menos coerente com as evidências disponíveis. A história, pois, é uma Ficção Científica; ela propõe, com base na ciência, o que poderia ter sido uma sociedade, mas no passado (e não futurista, como na ficção científica usual). A coerência dos modelos propositivos é a base de sua segurança, embora não necessariamente ela seja lida desse modo. Isso permite, infelizmente, a afirmação de visões dogmáticas e exclusivistas, como vimos; e a crítica histórica serve, justamente, para o exercício de debulhar esses discursos, mantendo a especificidade da história como uma literatura que poderíamos dizer, a grosso modo, “baseada em fatos reais’ (o clichê é oportuno: existem ‘fatos irreais’, ou mesmo só ‘fatos’?) ou, baseada em acontecimentos verificáveis (o que entendo ser preferível). Não é possível haver neutralidade na história, como é absolutamente possível discordar de uma continuidade absoluta. A história é, pois, o rascunho de um plano acerca do que uma sociedade deseja ser, e imagina de si mesma; e como nas boas ficções, ela pode acontecer, ou não.

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