Desde já, explico o ‘religioso’ entre aspas: Confúcio não criou ou pregou qualquer tipo de ‘religião’, e sua ética era imanente e materialista. Não se assentava em poderes espirituais, mas na necessidade da convivência diária entre os seres humanos – aquilo que se consagra no Ren, seu conceito fundamental (‘duas pessoas juntas’, como afirma o ideograma). Para ser um confucionista – ou melhor, ‘letrado’, ou ‘acadêmico’, precisava-se estudar, e muito. O confucionismo não tinha clero; os confucionistas eram professores, e não padres, monges ou sacerdotes. Por outro lado, Confúcio fazia sacrifícios aos ancestrais, em honra de sua memória e saber; ele se devotava à ecologia da natureza, tentando entendê-la, num misto de ciência e sentimento ‘religioso’. Creio que Confúcio não queria de modo algum criar uma religião, e nem ao menos soubesse e do que se tratava isso na China antiga, posto que esse conceito – a ‘religião’ – sempre foi estranho aos chineses. Isso não impede, contudo, que ele não acreditasse em forças ‘sobrenaturais’, ou poderíamos dizer, ‘religiosas’.
Me debruço agora sobre esse significativo trecho do Zhong Yong, em que Confúcio fala:
O Mestre disse: Os poderes das forças invisíveis, como são evidentes! Eu as olho, mas não vejo, eu as escuto, mas não entendo, elas são a realidade e a tudo são inerentes! São elas que fazem os seres do mundo inteiro se purificarem pela abstinência e vestirem suas melhores roupas para os sacrifícios. Em toda parte, elas estão presentes; às vezes sobre nós, às vezes ao nosso redor.
Diz o Tratado das Poesias:
A atuação das forças invisíveis não pode ser suposta, como não pode ser ignorada. A manifestação daquilo que há de mais sutil e impossível de olhar em toda sua realidade, isto é o que ela é!
Como negar que Confúcio estava falando de uma ‘força além’, daquela realidade transcendente a qual os daoístas tanto se dedicaram no estudo dos sonhos? Isso que é fascinante nos estudos confucionistas; não importa tanto o meio pelo qual se ‘acredita no lado de lá’, contanto que não se esqueça das regras do mundo material (se é que o ‘sobrenatural’, na visão chinesa, não era tão somente outro aspecto da natureza – e portanto, tão natural e real como o ‘mundo material’). No mesmo Liji, em outro fragmento, ele informa:
Quando morria alguém, os parentes subiam ao telhado e gritavam bem alto, ao espírito: "Ahoooooo! Fulano, você pode fazer o favor de voltar para seu corpo?" (Se o espírito não voltava, e a pessoa estava realmente morta) então assavam arroz cru e carne assada para oferendas, levantavam a cabeça para o céu "a fim de ver longe" o espírito e enterravam o cadáver. O elemento material descia então (à terra) e o elemento espiritual subia (ao firmamento). Os mortos eram enterrados com a cabeça na direção norte, e os vivos tinham suas casas com a frente voltada para o sul. Tais eram os costumes primitivos.Os mortos viram os ancestrais. Mestre Zeng, no Lunyu, afirma categoricamente: ‘Mestre Zeng disse: "Quando se honram os mortos e a memória dos ancestrais remotos se mantém viva, a virtude de um povo encontra-se em seu apogeu".’
O próprio Confúcio, sempre tão profundo, não receia dizer que:
Alguém pediu a Confúcio para explicar o significado do sacrifício do Ancestral da Dinastia. O Mestre disse: "Eu não sei. Quem soubesse isso poderia dominar o mundo como se o tivesse na palma da mão". E ele colocou o dedo na palma da mão. (Lunyu)
Esse fragmento é ainda mais impressionante: Confúcio teria, ele mesmo, sua visão sobre o ‘além’? Saberia ele do que se tratava, ou ele simplesmente fez um gesto de mãos que hoje, dogmaticamente, seus seguidores tentam explicar como símbolo de um significado oculto? (e nessa hora, infelizmente, os grandes mestres não podem ao menos brincar, pois seus seguidores lhe impõem a obrigatoriedade de que tudo que eles fizessem ou dissessem tivesse um sentido, claro ou subliminar). Talvez Confúcio simplesmente não soubesse, ou não quisesse arriscar um palpite. O que importa? Ele acreditava nas tradições. Ele acreditava que as carapaças de tartaruga e o oráculo do Yijing o conectavam com forças espirituais que influenciavam na resposta, ainda que soubesse que o Yijing, em específico, se tratava de um texto racionalmente composto, no qual se depositava toda uma lógica sobre as leis da natureza que os chineses esperavam representar de um modo – por assim dizer – ‘científico’.
Existem muitas frases na qual Confúcio evidenciava sua preocupação com o ‘mundo dos viventes’, mas elas não são cabíveis nesse texto; a questão é que Confúcio acreditava, sim, em forças espirituais, e poderia se dizer, portanto, que ele tinha ‘sentimentos religiosos’, se entendermos esse termo como a crença em elementos além do nosso acesso imediato. Se o confucionismo, pois, é uma doutrina laica, Confúcio, no entanto, não era um ateu.
Como sempre, sua expectativa sobre qualquer crença se atrelava, inequivocamente, a sua ética de cunho prático. Como ele mesmo afirma no Lunyu:
O Mestre disse: "As pessoas do sul têm um ditado: 'Um homem sem constância não seria apropriado para ser um xamã'. Que grande verdade!" Quem não persevera na virtude, se expõe à desgraça". O Mestre comentou: "Pessoas assim não precisam de previsões [prognósticos]".
Nisso vai a sabedoria confucionista: sem virtude, nem mesmo um sacerdote religioso (como o xamã) poderá ser bem sucedido; que se diga as pessoas comuns. A virtude não é uma imposição que vem ‘do outro lado’, mas um requisito para ser alguém sábio e bom – mesmo, até, numa visão ‘religiosa’. Dito isso, quem pode ser ‘religioso’, de fato, se não buscar ser virtuoso antes de tudo?
Porém, Confúcio também afirmou, no final do mesmo trecho, que pessoas que não perseveram na virtude se expõe a desgraça – e seu final trágico não precisa de previsões para se confirmar. Apenas nesse ponto é que, creio eu, Confúcio tinha fé em algo que nos escapa: pois a imoralidade continua a correr solta, a corrupção mantém-se como uma praga, e as pessoas que buscam fazer algum bem continuam a ser oprimidas, sendo punidas por suas boas intenções, e esquecidas pelo que tentaram realizar.
Que mundo difícil, esse: com Deus, ou sem ele, a ignorância é o único ídolo que se recusa a cair; e se não é a luta dos sábios para manter a cultura, quem sustentará a continuidade?
Fan Chi perguntou sobre sabedoria. O Mestre disse: "Garante os direitos do povo; respeita espíritos e deuses, mas mantendo-os a distância - isso, na verdade, é sabedoria". Lunyu
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