INTRODUÇÃO
Confúcio 孔子(551-479 a.C.) é com certeza um dos pensadores mais importantes da história mundial. É difícil resumir sua obra e suas teorias numa breve apresentação; porém, algumas informações mais conhecidas nos serão úteis para entender um pouco sobre os escritos que apresentaremos aqui.
A vida de Confúcio se passou durante a dinastia Zhou 周(1027-221 a.C.), num contexto em que a civilização chinesa, e suas instituições políticas, atravessavam uma séria crise. Minada pela corrupção e pela incompetência administrativa, a sociedade da época se encontrava num momento difícil para sua própria sobrevivência e continuidade. Confúcio percebera isso, assim como muitos outros pensadores contemporâneos a ele; tal período acabou sendo conhecido pela história como ‘Cem Escolas de Pensamento’, dado o vasto número de especialistas que surgiram, propondo as mais diversas soluções para administrar os problemas sociais, econômicos e políticos que se desenrolavam.
No entanto, o pensamento de Confúcio se destacou entre todas essas propostas pelo seu caráter humanístico, extremamente preocupado com a sobrevivência da sociedade e com a dignidade humana. Confúcio não se pretendia um reformador, muito menos algum tipo de pregador religioso (e nada mais errado do que considerá-lo alguma espécie de santo ou de profeta). Em seu entendimento, ele era um educador – ou um filósofo, se preferirmos esse termo – mas essencialmente, um pensador preocupado em resgatar sua civilização da ruína. Em sua análise, a manutenção da cultura seria o elemento chave para a continuidade humana. Confúcio percebeu que todo o conjunto de leis, costumes, hábitos e ritos humanos haviam sido concebidos para garantir sua existência e conceder-lhe um lugar especial na estrutura do cosmo. Esse conjunto de práticas sociais e culturais era o que Confúcio chamava de ‘Li’禮 (muitas vezes traduzido também como ‘Rito’), cuja extensão abarcava desde os hábitos de etiqueta e alimentação mais comuns até mesmo os deveres religiosos mais complexos. Confúcio pretendia, pois, que a sobrevivência da civilização dependia do exercício correto de uma cultura racional, da prática de uma moral eficaz em inibir o mal e ensejar o altruísmo e a bondade.
Todavia, se a cultura havia sido construída ao longo de milênios para garantir a vida humana, quais seriam as razões, portanto, dela não conseguir manter-se? Porque as pessoas estavam desistindo da prática do correto? O diagnóstico de Confúcio continua surpreendente até os dias de hoje: para ele, a sociedade era incapaz de praticar a moral por não ter sido devidamente educada para tal. Ou seja, a idéia de Confúcio é que a crise da civilização chinesa se dava, essencialmente, pela falta de educação. Sem estudo, as pessoas seriam incapazes de compreender sua cultura e a necessidade dos valores morais. Como conseqüência disso, as pessoas se lançavam a práticas diversas para sobreviver – muitas delas, reprováveis. Confúcio não era contra modificações na cultura ou nas leis, ao contrário: se ficasse racionalmente claro que um antigo costume ou lei deveria ser abolido, e que isso beneficiaria a sociedade, o mestre provavelmente o aprovaria. Como ele mesmo disse: ‘mestre é quem sabe o antigo, e descobre o novo’. A questão, contudo, é que os reinos da antiga China estavam embarcando nos piores tipos de expediente para se manterem no poder: guerra, violência, repressão, abuso de poder, exploração econômica, abandono do povo, entre outras coisas. No antigo pensamento chinês, segundo Confúcio, tudo isso já era considerado deplorável; não havia razão, portanto, para acreditar que o tempo transformara essas coisas em ‘boas ou necessárias’. A sobrevivência da civilização chinesa dependia, portanto, da Educação.
Essa Educação era representada pelo ideograma ‘Jiao’教. Educar-se implicava, na visão confucionista, em dois tipos de estudo: ‘Xue’學, o estudo das tradições e da cultura e ‘Zhi’知, a experiência de vida. Ambos se complementavam, e um não podia ficar sem o outro. Uma pessoa educada, que conhecia a cultura e a moral, e que era capaz de praticá-la, se transformava então no ‘Junzi’君子, o ‘Educado’ – o modelo de cidadão ideal do confucionismo.
Esse era o ‘Dao’道 (ou ‘Tao’ em outra grafia) de Confúcio. ‘Dao’ pode ser entendido como um método, ou o caminho para se atingir a harmonia social e natural, que na época se representava pelo ideograma ‘He’和. A educação, pois, era o ‘Dao’ de Confúcio, e visava uma plena harmonia das relações humanas. Esse conceito era expresso pela palavra ‘Ren’仁, o verdadeiro Humanismo. Educadas, as pessoas compreenderiam como viver em sociedade, seus papéis, limites, possibilidades, direitos e deveres. O ideal confucionista pressupunha que numa sociedade assim as leis seriam poucas, e as intervenções do governo raras. Sabendo como agir, a existência humana fluiria, no mesmo ritmo da natureza, partindo do nível mais elementar – o indivíduo – passando pela família, comunidade, governo até o Estado, num todo articulado e regido por mecanismos culturais eficazes.
Para viabilizar seu método, Confúcio selecionou os seis principais livros da antiguidade chinesa com os quais construiria sua proposta educacional;
• Yijing 易經, ou Tratado das Mutações, livro que guardava os antigos conhecimentos sobre as teorias científicas chinesas, e servia também como oráculo;
• Shujing 書經, ou Tratado dos Livros, continha as principais passagens históricas das primeiras dinastias;
• Shijing 詩經, ou Tratado das Poesias, uma recolha de poemas e canções tradicionais que apresentavam um quadro do cotidiano dessa civilização;
• Liji 禮 記, ou Recordações Culturais, é uma vasta compilação dos costumes, ritos, hábitos, leis e visões sociológicas da época Zhou;
• Chunqiu 春秋, ou Primaveras e Outonos, é uma crônica histórica escrita pelo próprio Confúcio sobre sua época, apresentando diversas passagens históricas para serem analisadas pelo seu caráter moralizante;
• Yuejing 樂經, ou Tratado da Música; esse último texto foi perdido, e se supõe que ele contivesse músicas e teorias músicas da China Antiga, fundamentais para a Educação, na visão de Confúcio. Uma possível parte desse tratado sobreviveu no Liji.
Como podemos observar, a estrutura dos ensinamentos confucionistas visava a construção de uma base amplamente humanística na educação. Confúcio defendia, ainda, o ensino das artes, educação física (artes marciais) e da matemática para ensejar uma formação completa. Todavia, o centro de seu método era o aspecto humano e moral, sem o que o entendimento da cultura se veria sempre prejudicado pela superficialidade, abrindo portas ao erro e as falhas de uma educação incompleta.
Apesar de ser considerado um brilhante conselheiro, e o professor máximo de sua época, Confúcio comeu o pão que o diabo amassou. Governos corruptos gostam de falar de educação, mas desprezam qualquer forma de ensino que privilegie a formação crítica do indivíduo. Ora, Confúcio defendia que as pessoas deviam ser conscientes; que mesmo sendo obedientes, tinham que saber ponderar entre o que era apropriado ou não; que deviam ser autônomas para fazerem suas próprias escolhas; e que não deviam, de modo algum, se enfiar em degradações morais e corruptoras. Infelizmente, ele encontrou pouco apoio institucional para consolidar suas políticas educativas e governamentais. Nos breves períodos em que pode assumir algum cargo público, se destacou pela honestidade e humanidade, para ser logo em seguida caluniado, sofrer intrigas e perseguições. Passou anos peregrinando de estado em estado na China, até finalmente retornar a sua terra natal, já idoso, e dedicar-se ao ensino e a publicação dos clássicos antigos.
O fim de Confúcio foi sossegado e tranqüilo. Ele não virou um deus, não fez milagres, mas seu modo de olhar o mundo, e sua teoria fundamental sobre o papel da educação na sobrevivência de uma civilização, se tornaram pilares da cultura chinesa. A proposta de Confúcio demoraria alguns séculos para se consolidar como doutrina oficial do Estado chinês, durante a Dinastia Han 漢(206 a.C a 221 d.C.), mas desde então, as obras confucionistas asseguraram uma posição de destaque na China, sendo consideradas as bases para o entendimento da sociedade e da mentalidade chinesa.
As Conversas do Mestre
As Conversas do Mestre constitui uma seleção dos principais trechos do ‘Lunyu’ 論 語, o texto básico da doutrina confucionista. ‘Lunyu’ pode ser traduzido de maneiras diversas: ‘conversas’, ‘diálogos’ ou ‘analectos’. A história do livro é comum à de muitos textos filosóficos: após a morte do Mestre Confúcio (479 a.C.), seus alunos recolheram alguns fragmentos de suas conversas para a posteridade. Os principais personagens do livro são o Mestre e seus discípulos, com breves passagens sobre outras figuras da época. Contudo, o livro sofreu diversas intervenções, modificações e acréscimos que tornam difícil saber exatamente o que foi dito por Confúcio. Profusamente comentando, o texto foi ganhando feições arcaizantes ao longo dos séculos, mas nunca se transformou em um ‘livro sagrado’ ou de fundo dogmático; sua estrutura sempre esteve aberta ao debate, marca essencial da ‘Rujia’ 儒家– a escola confucionista (também conhecida como ‘escola acadêmica’ ou ‘escola dos letrados’). Por conta disso, resolvi fazer essa recolha de trechos que considero fundamentais do livro, constituindo uma referência para o entendimento do confucionismo nos dias de hoje. Contudo, a organização dessa coleção de frases, bem como sua tradução, foi feita dentro de critérios específicos que precisam ser esclarecidos.
Primeiramente, o chinês clássico não foi traduzido como um português empostado, de feições bíblicas, como comumente se faz. Optei por usar uma transcrição simples, direta, sintética, tal como propunha a língua dessa época. Dizer muito com poucas palavras era o ‘espírito’ da linguagem dos sábios daquele tempo, e foi o que tentei fazer aqui. Isso implica ‘recriações’ do texto, que assumo inteiramente como uma opção de escrita.
Outro aspecto relevante é a tradução dos conceitos. ‘Ren’仁, por exemplo, é um ideograma simples, mas cuja mensagem é vasta e complexa. ‘Ren’ representa o ideograma ‘pessoa’ e o número dois, ou seja: duas pessoas em harmonia, em convivência plena. Alguns autores preferiram traduzir esse conceito como “benevolência’, ‘altruísmo’, mas escolhi vertê-lo como ‘Humanismo’. Do mesmo modo, a palavra ‘Junzi’ 君子 designava um cavalheiro ou nobre, que Confúcio transformara numa pessoa educada, de qualidades morais apreciáveis. Já traduzi ‘Junzi’ como ‘ser moral’ em outros textos, mas achei que ainda não tinha ficado bom. Decidi usar a palavra ‘Educado’ em seu lugar, pois denota o que Confúcio queria dizer: uma pessoa de bons modos, educada, crítica.
Retirei também a numeração dos fragmentos, deixando-os soltos. Como são curtos e vão direto ao assunto, dispensei a ordenação que lhes foi imposta no formato tradicional.
Por fim, preferi recolher os trechos que tem uma significância perene para o pensamento confucionista, e que constituem o cerne do seu modus operandi: estudar, evoluir e crescer. Há passagens estranhas, ou contextuais, cuja origem ou forma podem não ter relação direta com os debates do Mestre. Tomei o cuidado, assim, de selecionar aquilo que ainda pode manter o confucionismo como uma teoria atual de interpretação da vida e do mundo.
No mais, agradeço imensamente a oportunidade de publicar essa pequena tradução. O confucionismo é fundamental para entender não apenas a China, mas todo esse outro modo de olhar o mundo que os chineses desenvolveram. Abrindo-nos novas perspectivas – ainda que baseadas num texto escrito há 2600 atrás – a leitura das Conversas do Mestre fornece uma profunda experiência de vida, e um guia indispensável para nos aconselhar em tempos delicados e confusos como os de hoje.
Rio de janeiro, Abril de 2012
LIÇÕES DO MESTRE
Uma seleção de fragmentos do Lunyu (Conversas) do Mestre Confúcio
Disponível para compra online (clique na imagem)
2013
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