'A vida num pote de Chá'
Sempre me lembro de Confúcio dizendo que o educado dorme sem receio, e que nada teme. Isso se deve a sua consciência limpa, ao senso de dever cumprido, de ter agido com lealdade, sinceridade e atenção para com os outros. No entanto, muitos já perderam empregos e mesmo as vidas por denunciar os erros de um sistema corrupto. Essas pessoas nunca dormiram sossegadas. Elas estavam inquietas por combater o erro, e tinham receios constantes de quanto o mal podia se expandir sem limites. Tudo isso porque acreditavam em agir de forma leal, sincera e justa. Ao refletir sobre isso, não penso nos ‘opositores profissionais’ de um regime, cujos expedientes não diferem, muitas vezes, daqueles à quem se opõem. Penso mesmo nas pessoas comuns, cujo senso de responsabilidade moral, social e familiar se vê prejudicado pelos desmandos das épocas ruins. Que sossego tinha Confúcio, se vivia denunciando os erros alheios? Ele correu risco de vida várias vezes; não que temesse propriamente isso, mas a questão é que ele realmente precisava se preocupar com a conservação de sua vida. Essa inquietude, ainda que honesta e sã, fruto de uma consciência correta, não lhe dava o sossego do bom ócio nem da noite tranqüila. Nesse caso, pois, parece que se desprender do mundo é realmente e única forma de se ter um sossego legítimo.
Os caminhantes pensavam nisso, e seu wuwei – a sua ação isenta de propósitos, senão da real necessidade do ato – os levavam a agir de modo relativamente independente das convenções. De fato, ao não se oporem a nada, sendo meramente escapistas, angariaram fama de sábios e sobreviviam aos regimes mais cruéis. O cinismo não era uma atitude pejorativa, apenas uma estratégia de disfarce, de sobrevivência, em meio à necessidade egocêntrica que quase todos os líderes totalitários têm. Esse modo de proceder caminhante depende, porém, de um real isolamento do mundo, ou de um hábito de vida absolutamente frugal. A questão é que ser caminhante – com exceção daquele que some no meio do mato – implica em viver na dependência dos outros, o que só pode ser aceito como ‘autonomia’ com uma grande dose de hipocrisia e desfaçatez. Não há liberdade total para eles, assim como não há para os Educados.
Todavia, como alguém pode ser absolutamente sossegado se seu desprendimento depende dos outros? Seja por cinismo proposital, uma acomodação consciente ou mesmo por uma ingenuidade desprendida, os caminhantes só têm seu sossego em função dos que ‘não o têm’, o que não pode ser aceito como válido. Logo, o sossego ideal não parece ser encontrado nas relações sociais comuns. O desprendimento material é um dos meios de ‘menos depender’ das coisas físicas, mas ainda não é completo; o isolamento social é também um meio de evitar atribulações, mas ela só transfere de viver com os humanos para o desafio da sobrevivência cotidiana no meio do mato. Por outro lado, o cultivo pessoal não basta para afastar de si os problemas diários de quem vive em sociedade.
É possível, então, que o sossego seja apenas um espaço de tempo nos ajustes da mutação? Entre os vários momentos da vida, no ciclo inexorável de yin e yang, podemos ser levados pelas circunstâncias aos acidentes ou, nos precavermos para acompanharmos os acontecimentos da vida com certa antecedência e planejamento, permitindo-nos o cuidado de evoluir e crescer. Dessa contemplação se pode intuir a perturbação e a ordem, o descanso e a ação, e no ‘meio tempo’, o sossego. Desfrutar o sossego é aproveitar um momento de modo particular, lúdico, mantendo o compromisso consigo mesmo. Se for assim, mesmo em tempos de desordem um letrado pode distrair-se, embora seja difícil – o envolvimento com a humanidade sempre fala mais alto.
Me parece, pois, que o sossego só acontece de fato se conseguirmos isolar nossa mente das coisas comuns. Não se trata de se separar do mundo físico, se não por alguns momentos. A vida, em si, exige essa conexão, sem o que não é uma vida vivida, de fato. O sossego, pois, é um contemplar em ação, um espaço de ponderação lúcida – ou, um vagar descompromissado somente quando se é do interesse pessoal, como no caso de uma providencial bebedeira.
Mêncio já dizia: ‘Apenas assim compreendemos que a ansiedade e a angústia fazem parte da vida, e que a facilidade e a comodidade só são encontradas na morte’. E mesmo a morte, assim, desassossega muitas pessoas...
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