O Maravilhoso Sagui Celeste!




AS FANTÁSTICAS, INCRÍVEIS E MAGNÍFICAS AVENTURAS DO SAGÜI CELESTE




UM LIVRO FABULOSO, CUJO TÍTULO É MAIS COMPRIDO DO QUE O NOSSO PEQUENO HERÓI




“GRANDE É AQUELE QUE NUNCA PERDE O SEU CORAÇÃO DE CRIANÇA”
MÊNCIO




‘AS PESSOAS VIAJAM PARA VER O QUE PERMANECE: EU VIAJO PARA VER O QUE MUDA’
LIEZI





O GRANDE COMEÇO

Um dia, mamãe sagüi despertou de sonhos bons, e sentiu que esperava um sagüizinho. Ela ficou muito feliz! Mas logo se preocupou: era tão pobre, de dar dó... Como iria cuidar do seu querido filhotinho?

Sagüis, porém, são bichinhos obstinados! Mamãe sagüi saiu pela floresta procurando uma boa toca para si e seu pequenino. Quando achou um buraco numa árvore aconchegante, começou a forrá-lo com folhas verdinhas, para ficar bem confortável. Perambulou por todos os cantos procurando frutos, flores e raízes, e armazenou com cuidado tudo o que achou. Preparou-se como pôde para a chegada do seu abençoado.

E então, ele veio. Era miudinho e felpudo, uma bolinha de pêlos. Logo se agarrou nas costinhas da mamãe sagüi, e nunca deu trabalho. Só chorava quando tinha fome – sagüis são manhosos. Mamãe sagüi sempre fez o que podia pra cuidar dele com todo o carinho, mas continuavam muito pobrezinhos. A coberta do sagüizinho era o retalho de um lenço; seu único bichinho de pelúcia era o próprio rabinho peludo, que ele abraçava quando tinha frio. Mesmo assim, sempre estavam animados e felizes. Para mamãe sagüi, ver seu filhote sorrir era a maior felicidade; e ele se encantava com tudo, e não era difícil de agradar.

Aí, o sagüizinho cresceu, e desceu das costas da mamãe sagüi. Ela pensou: ‘chegou a hora de cuidar da educação desse bichinho!’.

Ela resolveu se mudar para perto de um mercado: ‘quem sabe o sagüizinho aprenda uma profissão’, refletiu. O sagüizinho observava o vai e vem dos mercadores, as pessoas discutindo preço, o cheiro das especiarias. Um dia, mamãe sagüi saiu para buscar comida, e quando voltou, surpreendeu seu sagüizinho na feira fazendo truquinhos, malabarismos e pequenas mágicas em troca de centavinhos. Pensou consigo mesma: ‘esse não é um bom lugar pra morarmos’, e se mudou dali.

Foi morar perto de uma escola pública. ‘Ele aprenderá um pouco de educação, quem sabe goste do estudo’. O sagüizinho olhava o corre-corre dos alunos, os berros dos professores e sentia o cheiro dos banheiros. Um dia, mamãe sagüi foi novamente buscar comida, e quando voltou, encontrou seu sagüizinho formando uma gangue com outros sagüis. Seus planos eram roubar frutinhas, mexer com bichos maiores, pescar, jogar bola, vadiar e aprontar travessuras. Novamente, mamãe sagüi ponderou: ‘esse não é um bom lugar pra morarmos’, e se mudou dali.

Foram pra perto de uma igreja. ‘Quem sabe o sagüizinho aprenda um pouco de religião’, mamãe sagüi pensou. O sagüizinho mirava os pregadores empolgados, as fofocas dos fiéis, e sentia o cheiro do incenso e das roupas novas. Um dia, mais uma vez, mamãe sagüi chegou em casa e pegou seu sagüizinho cercado de outros bichinhos. Ele declamava coisas confusas, contava lorotas atrás de lorotas, fábulas terríveis e assustadoras. Mamãe sagüi raciocinou: ‘aqui também não é bom pra morarmos’, e se mudou mais uma vez.
Mamãe sagüi e o sagüizinho foram morar do lado de um rio, por onde passavam vários barcos. Alguns subiam, outros desciam o rio. O sagüizinho contemplava a tudo, e suspirava. Um dia, perguntou para sua mãe: ‘mãe, para onde esses barcos vão?’

Mamãe sagüi pensou: ‘agora ele está pronto’. Aí, ela disse: ‘meu querido sagüizinho, chegou a hora de você buscar a sabedoria. Você precisa encontrar um mestre. Você precisa descobrir o mundo. Você precisa descobrir quem é. Você vai viajar’.

Pegou o dedo de uma luva e com ele costurou uma mochilinha para o sagüi. Deu-lhe alguma comida e um caderninho para anotar suas descobertas. ‘Meu filho, é hora de você partir. Vá, e conquiste a você mesmo’. O sagüizinho acatou as ordens de sua mãe. Estava feliz e empolgado, pensava em tudo o que queria fazer. Beijou a mamãe sagüi, e se pôs a caminhar pelos galhos do mundo.



O monge caminhante

Não demorou muito tempo e ele chegou a uma floresta. Ouviu falar que lá morava um sábio, que vivia oculto de todos os outros homens. Pensou consigo mesmo: ‘pode ser esse o mestre que a mãe falou?’. Ficou encucado, e foi procurá-lo. Quando chegou perto da árvore onde morava o tal mestre, encontrou um asceta meio gordinho e preguiçoso.

- Oi! É você o mestre dessa floresta? – disse o sagüi.
- sim, eu sou um mestre caminhante.
- e o que um mestre caminhante faz?
- ah, buscamos nossa natureza original.
- ei, isso parece bom! Como se faz?
- é simples. Você tem que descobrir o que deseja fazer para você mesmo. Seguir seu próprio ritmo.
- uau! É isso mesmo que estou procurando.
- então faça o seguinte: pratique o a ‘não–ação’. Não faça nada. Apenas coma quando tiver fome, durma quando estiver com sono, e medite de vez em quando. Busque não se misturar com os outros, preserve a si mesmo, e você atingirá a harmonia interior.

O sagüi achou lindo tudo aquilo. Em breve, começou a seguir as orientações de seu mestre. Ficou pendurado numa árvore, só comia e dormia, abria a boca apenas de vez em quando. Os bichos começaram a se perguntar quem era aquele sagüi misterioso, e começaram a lhe fazer oferendas de frutas. O sagüi curtia tudo aquilo, e em breve, estava com uma barriguinha rosada de tanto se empanturrar. Quanto mais simplicidade ele buscava, mais ele tudo tinha.

Mesmo assim, ele estava se enfastiando de tudo aquilo. Ficar se bobeando na vagabundagem não parecia ser uma busca ideal da sabedoria. Sentia-se um inútil, na verdade. Até que um dia, enquanto ele estava deitado num galho de sua árvore, barriga pra cima, contemplando o céu e mascando uma palhinha, chegou um bicho preguiça e lhe cumprimentou:

- oi primo!

Alguma coisa estalou dentro do sagüizinho! Ele sorriu, fez um cafuné na preguiça, pegou sua mochilinha e partiu, se pondo a caminhar novamente.



O professor de disciplina

Então o macaquinho andou, e andou, e andou. Nesse meio tempo fez muitas coisas. Escovou os dentes de jacarés, lustrou os chifres de rinocerontes e deu banho nos elefantes, esfregando sua pele delicada nas margens dos rios. Retocou as listras na pele dos tigres, dormiu na barriga de ursos e desafiou a realeza dos leões – na última hora ele foi salvo de tomar uma surra por uma leoa, que ralhou com seu marido: - deixe-o em paz, oras bolas! Ele só contou umas piadas sobre você pras hienas rirem!

Depois dessas pequenas aventuras, o sagüizinho chegou a uma cabana, próxima de uma cidade, em que morava um ‘professor de disciplina’. Ficou curioso de saber do que se tratava, e foi procurar o tal homem. Chegando por lá, o professor lhe disse:

- disciplina é a base de tudo. Não é preciso saber. É preciso obedecer, ter uma vida regrada, fazer algo de útil. Quem não tem padrão, não tem perdão.

O sagüizinho achou aquelas palavras meio fortes, mas ponderou: ‘bem, eu não estava fazendo nada, e me sentia um sabichão imprestável. Talvez eu aprenda algo aqui’. E pediu para ser discípulo desse professor.
Já de cara ganhou uma coleira, o que odiou profundamente. Mas se sujeitou, achando que podia aprender alguma coisa. Então, suas lições começaram.

- Um, dois, três, esquerda, direita, marche! – essas eram as lições que o professor ensinava. E o sagüi aprendeu a marchar, a lutar e a obedecer. Acordava cedo, corria, se exercitava. Ouviu meia dúzia de ensinamentos de filósofos que diziam que pensar não ajuda nada. ‘Pensadores que ensinam a não pensar?’, refletia o sagüizinho. Mas tentava deixar de lado esses pensamentos, pois isso era contra a disciplina.

Em breve, ele estava fortinho e destemido, mas nem um pouco feliz. Embora o professor dissesse que ele era um excelente aluno, um ‘escolhido entre poucos’, não estava convencido de que esse era o caminho certo.
Esse professor tinha um cachorro, que vivia preso na coleira. Era um cão fiel, leal, que só comia na mão de seu dono e estava pronto a brigar pela casa. Um dia, enquanto o sagüizinho treinava com seu halter feito de um palito e duas rolhas, o cão se aproximou timidamente e disse:

- oi primo! Você é bom nisso, hein?

E de novo, algo estalou no macaquinho. Meia hora depois, quando o professor chegou em casa, mal abriu a porta e viu tudo revirado. Não havia nada em seu lugar, um furacão tinha passado ali dentro. Enquanto olhava, abismado, o sagüizinho surgiu do nada montado em seu cão, puxando-o pelas orelhas. Num átimo, ele saltou do cão e voou pra cima do professor, sacudindo a coleira como um chicote. Deu-lhe uma mordida, três lapadas e um cascudo, saiu pela porta da frente correndo, e continuou sua jornada em busca da sabedoria.



Discípulo de Buda

Em suas peregrinações, o macaquinho fez muitos outros prodígios. Organizou corridas de avestruz, defendeu filhotes de pingüim, e esbofeteou uma águia arrogante. Trabalhou vendendo casas de João-de-barro para outros passarinhos. Ensinou os canários a cantar, e os patos a irem pro sul. Abriu um restaurante com o que havia de melhor e mais podre para urubus. Deu uma boa pedrada num homem que mirava na pomba da paz.

Após essas travessuras mirabolantes, o sagüizinho ouviu falar de um templo dedicado a Buda. Buda havia sido um grande mestre de sabedoria, vindo da Índia – terra onde seus priminhos macaquinhos eram bem tratados. Resolveu visitá-lo, pois ainda desejava encontrar a sabedoria.

Chegou lá e encontrou um homem doce e calmo, cabeça raspada, meditando profundamente. Não quis incomodá-lo, mas o monge sentiu sua presença e sorriu:

- oi amigo sagüi, tudo bem? No que posso ajudar?
- oi monge! Escuta, estou curioso: o que vocês aprendem aqui?
- aprendemos o autocontrole. Buscamos agir corretamente, pensar corretamente, e meditar corretamente, para alcançarmos a iluminação espiritual.
- puxa, isso é bacana! É difícil?
- depende de você amiguinho. Você precisa aprender a meditar.
- e como se faz isso?
- você vai ficar parado, se concentrando, até sua mente acalmar.

‘Ai, Ai’, pensou o sagüi. ‘Eu sou um bichinho inquieto, ficar parado não é comigo. Já fiz isso antes e não deu certo. E isso deve exigir um baita esforço, e já vi que essa coisa de disciplina também não é bacana...’

O monge percebeu que o macaquinho ruminava algo na cabeça e lhe disse:

- eu sei que você tem dúvidas se vai conseguir ou não. Todo mundo tem essa dúvida no início. Melhor ter dúvida do que ter certeza. Mas deixa eu te contar uma história. Uma vez, um parente seu, o grande Rei-macaco, desafiou Buda para uma corrida. Eles correriam até o fim do mundo, e quem ganhasse, seria proclamado o mais sábio e se tornaria discípulo do outro. O Rei-macaco não pensou duas vezes, e saiu em disparada. Voou mais rápido que o vento, que os pássaros, ou qualquer outra coisa que possa ser vista. Quando chegou ao fim do mundo, fez xixi no marco de pedra, para que Buda soubesse que ele havia estado lá. Quando voltou ao ponto de partida, encontrou Buda e disse: ‘eu ganhei, você nem chegou perto de mim!’. E Buda respondeu: ‘como, se você nem saiu da palma da minha mão?’. Então a ilusão se desfez, e o Rei-macaco percebeu que estava ainda na mão de Buda, e sentiu o cheiro de seu xixi no polegar dele. Ele compreendeu que Buda é tudo. E assim, o Rei-macaco se tornou discípulo dele, e entrou pra história como um grande sábio.

O sagüi se encantou com essa fábula, e decidiu que devia experimentar aquilo tudo. Mas naquela hora, um cheiro delicioso de comida se levantou no ar. Quando farejou aquele aroma e se encheu de água na boca, o sagüi disse:

- ei monge, vamos apostar uma corrida até o refeitório?

O monge riu, e foi se levantando; mas quando olhou novamente pra frente, só viu um rabo peludo e serpenteante sumindo dentro da cozinha.

....

A meditação era um inferno para o sagüizinho. As tripas de um macaquinho foram feitas para ação, movimento e aventura. Ficar parado, com os olhos fechados e tentando esvaziar a mente, era um desafio e tanto para o nosso pequeno herói.

Mas ele era dedicado. Varria o altar com uma escova de dente, pedia esmolas numa cuia feita com um dedal e acendia as lâmpadas no alto para os monges poderem ler.

Aos poucos, a meditação foi funcionando. No início, ele tinha que ‘lembrar de se esquecer’. Mas ele foi se esquecendo de lembrar, e sua mente foi ficando calma e profunda. Seus olhos brilhavam como duas jabuticabas maduras. Ele estava calmo, em paz – mas não satisfeito.

Nesse mosteiro budista, havia um gato que era velho conhecido dos monges. Eles o admiravam por caçar com precisão, e só se mover quando necessário. Seu poder de concentração para pegar ratos e passarinhos era impressionante. Mas era um gato dissimulado, como muitos o são; se esfregava nos monges quando queria algo, e depois que conseguia, os dispensava. Não era talvez um gato mau, mas era fingido e muito prático.

Um dia, quando o sagüizinho terminava sua meditação, o gato se aproximou. Ele miou maliciosamente:

- miioooiiiii priminho... Desejassss serrrr o novo rrrei-macaco?

E mais uma vez, algo estalou dentro do sagüizinho. Ele se levantou, mostrou que seu rabo era mais lindo que o do gato, e foi até o monge. Pediu uma conversa em particular, ao que seu mestre assentiu. O sagüizinho fez apenas algumas perguntas: para onde fica o oriente do ocidente? Por que os sapos coaxam ‘om’? E por que Buda era gordinho nas estátuas, se foi magro em vida? O monge a tudo respondeu, e compreendeu que o sagüi estava além de suas capacidades como mestre. Ambos se abraçaram e se despediram. E calmamente, o sagüizinho saiu do mosteiro, sob os olhares atentos e perturbados do gato.



O velhinho sábio

E o sagüizinho continuou suas aventuras. Cavalgou em tubarões, deu comida para baleias, e empurrou-as de volta pro mar quando elas cismavam de encalhar. Explicou aos golfinhos porque sagüis andavam em bandos, e os convenceu a fazer o mesmo. Disputou queda-de-braço com lulas, e cuidou dos jardins dos polvos. Foi babá dos alevinos das piranhas, treinou salmões para provas de natação, e batucou na carapaça das tartarugas que vinham abençoar as famílias.

Perambulou pelos mares, rios, campos e atalaias, até que descobriu um velhinho com fama de doutor e sábio, numa casa que mais parecia uma biblioteca. Era um senhor fofo e gentil, diferente dos professores arrogantes que vira na escola quando ainda era um sagüizinho. Ao bater na porta de sua casa, foi convidado para tomar um chá. O velho mestre o acolheu, e perguntou:

- meu querido sagüi peregrino, o que a minha humilde figura pode fazer por você?
- velho mestre, procuro a sabedoria, mas não a encontro. Você pode me ajudar?
- meu caro sagüizinho, eu sigo o caminho do mestre Confúcio, que nos ensinou o seguinte: se queremos achar algo, temos que procurar. E procurar, nesse caso, é estudar.
- estudar? Estudar o quê?
- bem, o que posso oferecer são livros. Estudos. Histórias. Poemas. Músicas. Eles contam como os outros acharam seus caminhos. Quer dar uma olhadinha?

E sem querer, o sagüizinho foi pego pelas letras. Começou pendurado nos ombros daquele velho senhor, fuçando curiosamente os livros junto com ele. Depois foi lendo uma história aqui, outra ali, e quando se deu conta, descobriu que adorava estudar. Havia muitas histórias. Umas chatas, outras fabulosas. Ele meditava sobre essas aventuras, aprendia seu sentido moral. Começou a estudar ética com o mestre vovô. A essa altura, o velhinho havia feito uma caminha de palha, com uma caixa de sapatos, para que o sagüi pudesse dormir em sua casa.

O pequenino discípulo compreendeu o sentido do respeito; a coragem para defender o correto; a importância das letras. Entendeu como argumentar, e como investigar as coisas. Aprendeu como cuidar dos mais velhos, e da importância da família. Aprendeu até mesmo a cozinhar e a servir chá.

Um dia, o velhinho o chamou:

- venha aqui, agora você precisa aprender as artes. Vou te ensinar música de verdade.

Ele esculpiu um cavaquinho bem pequeno, apropriado ao tamanho do sagüi. Fez cordinhas para ele com alguns dos poucos fios de cabelo que sobraram em sua cabeça.

- use com cuidado, se as cordas arrebentarem, não sei como faremos! – disse o velhinho, e os dois riram.

O sagüizinho treinou bastante, e compreendeu a música, se tornando um exímio artista com o cavaquinho. Eles tocavam juntos, e essa era uma forma de compartilharem os dias. Quando já dominava o cavaquinho, o velhinho chamou-o novamente e disse:

- agora, pegue esse papel e esse pedacinho de carvão e comece a rabiscar. Vou te ensinar e desenhar e a pintar.

E o sagüizinho não se continha de felicidade. Eles iam para o campo, e ficavam observando a paisagem. O sagüizinho treinou o olhar, e em breve fazia desenhos maravilhosos, e pinturas belíssimas. Ele aprendera a contar o mundo por imagens, sons e letras.

Um dia, o velhinho sábio ganhou um papagaio. O sagüizinho estava estudando junto com seu mestre, até que ele se levantou e foi ao banheiro. Nisso, o papagaio se virou para o sagüizinho e disse:

- esse velhinho é o máximo, né?

‘Poc!’ Aquele velho estalo de sempre que o sagüi já conhecia. Incomodou-se, mas ficou quieto. Saiu pela cidade com seus trocadinhos, pechinchou um livro antigo e raro, e voltou pra casa. Deu aquele fabuloso presente para o velhinho, e pediu sua benção. O velhinho ficou feliz de sentir que seu aluno estava pronto, e o abençoou. Com seu cavaquinho nas costas, saiu novamente o sagüi a jornadear pelo mundo.



Irmão da Humildade

E lá se foi o sagüi, a atravessar montanhas e desertos. Fez caravanas no lombo de camelos, dormiu nos campos tendo carneiros por travesseiro, chamou os babuínos de ‘boboínos’, e foi barbeiro de sagüis-imperadores e de cabritos. Jogou pão para o monstro que morava num lago, e tomou cachaça com os perus, antes de libertá-los da prisão e liderar sua fuga mata adentro. Ajudou a casar um pato com uma castora, e foi padrinho do filho deles, o ornitorrinco. Teve um salão de beleza que pintava os rabos dos lêmures e as penas dos pavões. Pegou carona na sacola de cangurus, peitou gaivotas que queriam comer tartaruguinhas recém nascidas, e se lembrou de sua mãe quando viu as mamães Coalas carregarem seus filhotes nas costas. E de tudo, ele sempre achava que ainda tinha feito muito pouco.

Numa dessas viagens, num dia belo e ensolarado, estava o nosso saguizinho peregrino a andar na estrada, com um cajadinho e sua sacolinha, quando viu uma curiosa procissão. Eram crianças, muitas crianças, e cada uma delas levava consigo um bichinho. Algumas traziam ovelhas, outras cães, gatos, passarinhos, burricos, enfim, uma montoeira deles, e estavam todos felizes.

O sagüi achou tudo aquilo curioso, pois nunca tinha visto algo assim. Foi acompanhando o cortejo, até que notou uma menininha chorosa, sentada na beira da estrada. Achegou-se perto dela e perguntou:

- oi menininha linda, por que você está chorando?

Fungando, em meio as suas lágrimas, ela respondeu:

- é que hoje todas as crianças da vila vão levar seus bichinhos para ganhar a benção do santo de Assis, e eu não tenho nenhum bichinho pra levar.

- ei, não fique assim! Vou te ajudar: porque você não deixa eu pular no seu ombro, e me leva até lá?

A menina parou de chorar, e abriu um sorriso largo e feliz. Ela topou na hora o plano de seu novo amiguinho. E foi assim que, se empoleirando no ombro da menina, foi o sagüi que levou uma pessoa para ganhar a benção dos bichinhos.

Chegando lá, o sagüi viu um homem que mal parecia padre surgir no meio da multidão. Era pobre, vestido em trapos, com sandálias gastas e mãos feridas. No entanto, ele irradiava bondade. E foi com carinho que ele dizia:

- benção irmão patinho! Benção irmão burrico! Benção irmão porquinho! Benção...

E abençoou a todos, e todos ficaram ainda mais felizes e sorriam. Por último, chegou o sagüi com sua amiguinha, e ele disse:

- ora, ora, benção irmão sagüi! Que bom que veio de tão longe até aqui.

A menina sorriu toda, que não se cabia de contente! Depois da benção, ela amassou o sagüizinho em seus braços, encheu-o de beijos e saiu saltitando. O sagüizinho e o homem santo riram da cena, e se voltaram um para o outro:

- mestre, você pode me ajudar a encontrar a sabedoria?
- sabedoria? Ah, não sei muito disso.
- mestre...
- me chame de irmão, irmãozinho sagüi – disse ele sorrindo. O sagüi se encantou com aquele homem, e falou:
- irmão, então me conte, como seguir seu caminho?
- é simples. Primeiro, você precisa ser pobre.
- irmão, nasci pobre, e sempre fui. Nunca mudei.

Eles riram. Então, continuou:

- certo. Mas você precisa ser feliz.
- aprendi isso com um homem na floresta.
- mas não basta ser feliz sem fazer nada: você precisa ser disciplinado.
- afe... Aprendi isso com um professor de disciplina...
- que bom! Mas a disciplina tem que vir do coração, de dentro, da meditação, e com Deus!
- puxa, parece que o senhor já me conhece! Acredita que já fiquei um tempo fazendo isso?
- melhor ainda! Porque se você sabe isso, então, sabe também que o serviço a Deus exige dedicação aos outros – cuidar dos velhinhos, das crianças...
- ai, ai... irmão, pode achar que estou mentido, mas tive um mestre velhinho que me ensinou isso também...
- então, meu caro irmãozinho sagüi: muito você já descobriu até chegar aqui. Só me falta te ensinar uma última lição: você precisa de humildade.

E então, o irmão deu uma pequena florzinha ao sagüi. Era um amor-perfeito. Quando o sagüi pegou aquela flor em suas mãos, ela brilhava, e ele nunca tinha visto uma flor tão linda, tão radiosa e tão suculenta. Ele já comera muitas outras, mas aquela foi a mais gostosa de todas elas. Saboreou aquela simplicidade como a mais deliciosa das supremacias do amor. E entregou seu coração àquele irmão.

Durante algum tempo, o sagüizinho o acompanhou. Quando ele e seus outros irmãos reformaram uma antiga igreja em ruínas, era o sagüizinho que procurava as pequenas brechas nas pedras das paredes, e as preenchia com pedrinhas miudinhas e argamassa. Ele tocava músicas e cantava para os irmãos. Relembrou os truques do mercado, e fazia umas macaquices em troca de comida para eles, mas sempre com o coração limpo de desejos menores. Entretinha os pobres, ajudava os doentes, e o irmão havia nomeado-o ‘assistente especial para os irmãos bichinhos na pobreza’. Na humildade, enfim, se sentia um sagüi quase completo.
Até que numa tarde, passeando pelos campos com seus irmãos, encontraram um rebanho de ovelhas. Os irmãos brincavam com elas. Uma veio até o sagüi e o saudou:

- óóóooiiii iiiirmaaaão! Que a paz esteja contigo!

E mais uma vez, o sagüi sentiu algo espocar dentro de si, aquele ‘clac!’ que lhe dava a cabeça. Foi até o irmão, que lhe orientara esse tempo todo, e falou:

- irmão e mestre, levo comigo a simplicidade, o amor e a humildade que aprendi aqui. Obrigado por tudo! Vou embora agora. Mas antes, por favor, aceite esse pequeno pedacinho de queijo que trago aqui na minha mochilinha como um presente de despedida.

- só se dividirmos – disse ele – senão, você me acostuma mal com esses banquetes.

Riram mais uma vez. Comeram aquele queijinho fabuloso, e o sagüizinho pôs-se a andar pelas estradas do mundo.



O encontro com os três sábios

Tudo de incrível que o sagüizinho fez não pode ser contado aqui. Ele foi à assembléia dos pássaros. Foi juiz na corrida entre a lebre e a tartaruga. Montou num unicórnio. Ajudou no parto da fênix. Convenceu o dragão a fazer chover no sertão. Enganou a raposa, a rainha das artimanhas. Foi no enterro do último dinossauro, e fez um belo discurso. Quase tomou um gole do suco de cinábrio que o coelho fez. Ensinou os corvos a dizerem ‘nunca mais’. Lutou espadas com um porco-espinho num desafio amigável. Ensinou os cervos a usarem galhos na cabeça pra se defender. E depois de tudo isso, suas aventuras estavam chegando perto do fim.

Onde o sagüizinho andava, as flores nasciam mais belas, a fome passava, e o mal não prevalecia. Sempre que podia, ele ajudava os outros. Não tinha nada pra si, além de seu cavaquinho e da mochilinha que sua mãe que lhe costurara. Mas ele ainda não estava satisfeito. ‘Sabedoria, bicho matreiro esse... Mamãe não podia apenas ter pedido pra eu ir comprar pão na esquina?’, meditava rindo consigo mesmo o sagüi buscador.
E então, ‘quando o discípulo está pronto, o mestre aparece’, diz um antigo ditado.

Foi numa floresta bem fresca e agradável, no meio de uma montanha, que o sagüizinho viu três senhores conversando. Eles estavam sentados no chão, em suas esteiras, no meio de uma clareira, perto de uma fogueira meio apagada. Tomavam vinho, e beliscavam alguma coisa. O sagüizinho se aproximou deles bem devagar; eles pararam a conversa e começaram a fitá-lo com olhos e sorrisos.

- oi! – disse, humilde e reverente, o sagüizinho.
- oi, caro amigo buscador! – respondeu um deles – achou o que procurava?

O sagüizinho sentiu um arrepio nos pelinhos; finalmente, parecia que seu caminho estava perto de se completar.

- Caro amiguinho, deixe que eu nos apresente. Esse grande professor que está aqui, meio gordinho e bonachão, é o grande mestre Zapotzu, doutor em conhecimento e assuntos do espírito.
- oi amiguinho sagüi! – disse mestre Za.
- oi mestre!
- aqui do meu outro lado, esse senhor barbudinho e sossegado é o sábio-que-dorme.
- oi mestre – disse o sagüi, que recebeu em troca o sorriso silencioso do sábio.
- e eu, finalmente, sou conhecido como Andarilho Celeste, o buscador do caminho.
- mestre andarilho, saudações! - disse o sagüizinho.

Então, delicadamente, o mestre Za tomou a palavra e disse:

-sagüizinho, você está buscando há um bom tempo a sabedoria. O que encontrou?
- mestre, achei muitas coisas. Aprendi a importância de agir espontaneamente, em harmonia com a natureza; aprendi que a disciplina é necessária para pôr as coisas em ordem; aprendi que o desprendimento e o autocontrole nos ensinam a domar as nossas forças e a nossa mente; aprendi que sem conhecimento, sem artes e sem dedicação, a espontaneidade degenera, a força se excede e o autocontrole nos inibe; por fim, aprendi que sem amor e humildade, nem toda espontaneidade, disciplina, meditação e conhecimento servem para algo. E sem eles, não é possível compreender o que é o amor e a humildade.

Mestre Za abriu um largo e contente sorriso, e disse:

- eu te aprovo meu filho. Agora é contigo, mestre Andarilho.

O Andarilho Celeste falou:

- meu pequeno amiguinho sagüi, você encontrou outros bichinhos na sua jornada?
- muitos, mestre Andarilho.
- e o que aprendeu com eles?

O sagüizinho meditou um pouco e disse:

- mestre, as principais lições que aprendi vieram no dia em que os bichinhos me mostraram o que faltava. Quando encontrei com um bicho-preguiça, percebi que a espontaneidade sem trabalho vira futilidade e acomodação; quando falei com um cão, percebi que disciplina sem amor ou consciência vira submissão e estupidez; quando um gato veio ter comigo, percebi que a meditação sem utilidade vira falsa santidade e dissimulação; quando falei com um papagaio, percebi que poderia me tornar um mero repetidor de belas palavras se o conhecimento não morar no meu coração; e finalmente, quando encontrei com um cordeiro, percebi que se todo amor do mundo estiver num coração sem atitude e coragem, seremos servos da vontade alheia, e terminaremos virando churrasco.

O Andarilho Celeste assentiu com a cabeça, e disse:

- te aprovo meu caro amiguinho buscador. Você encontrou o que precisava. Mas agora, você tem que se acertar com o sábio-que-dorme. Esse homem vive mais no outro lado do que aqui, entre os acordados.

O sagüizinho olhou então para o sábio-que-dorme, e esse olhou pro sagüizinho. Ambos se olharam bem fundo, nos olhos. E então, acordados, começaram a sonhar um mesmo sonho, o sonho que todos sonham, mas não lembram que sonham. E nesse mesmo sonho em que se encontraram, ambos sorriram um para o outro, e se compreenderam mutuamente.

O sábio-que-dorme olhou para o mestre Za e para o Andarilho, os três riram juntos e compreenderam mutuamente o que ocorrera. O sagüizinho finalmente se sentiu invadido por uma incrível felicidade, e percebeu que chegara onde queria. Ele agradeceu aos três mestres com uma reverente prosternação, ao que mestre Za respondeu com um leve chute em seu pequeno traseirinho com rabo. Mais uma vez, gargalhadas. E assim, o sagüizinho participou daquele nobre piquenique, no dia em que alcançou a sabedoria, sabendo que era hora de voltar pra casa.



Retorno à florestinha

Quando voltou para sua florestinha, todos notaram a diferença no sagüi. Ele era alegre, mas também profundo; cordial, mas também divertido; continuava lépido, mas ficou mais preciso. Simplesmente, o sagüizinho se dedicou a cuidar dos seus, e lhes ensinou o que havia aprendido.

Ele explicou para a sagüizada a importância de descansar, mas de não ficar parado sempre. Ensinou os sagüis a se defenderem e a serem disciplinados quando necessário, e os liderou tacando pedrinhas e frutinhas nos bichos feios que ameaçavam ocasionalmente a floresta. Mostrou a importância da simplicidade, e contou a história do Rei-macaco, com o qual os sagüis se orgulharam de seus ancestrais. Começou o hábito de amparar os sagüis mais velhinhos, dando exemplo pelo cuidado que ele tinha pela própria mamãe, que estava ficando velhinha depois desse tempo todo. Ensinou-os artes, música e letras: e de fato, todas as apresentações que os sagüis fizeram nos mercadinhos e nas ruas ficaram muito melhores depois disso. Ele contou sobre o homem que abençoava os bichinhos, e todos se encantaram com essa história. Por fim, falou sobre o conhecimento do Céu, da Terra e do Espírito, e todos meditaram circunspectos e radiantes.Os sagüizinhos aprenderam a ser pobrezinhos e humildes, mas com amor e felicidade.

E foi assim que eles viveram bem e se espalharam por todos os lugares, levando sua alegria para onde quer que fossem. A florestinha havia mudado para sempre.



O sonho

Um dia, nosso herói sagüizinho cuidava de sua mamãe sagüi, a quem ele sempre agradeceu de todo o coração pelo seu amor. Ele nunca esqueceu que fora ela quem o enviara naquela fantástica missão, a busca da sabedoria.

Mamãe sagüi estava deitadinha na sua cama de folhinhas. O sagüi acabara de dar sopinha pra ela, e quando se levantava pra sair, uma curiosidade lhe atravessou o íntimo:

- Mãe, posso te fazer uma pergunta?
- claro, meu filho!

Ele sentou bem do lado de onde ela estava deitada e falou:

- mãe, você sabia que eu ia dar certo? Que eu ia conseguir?
- meu filho, agora que você me perguntou, deixe-me contar de um sonho que tive... Um sonho que tive bem quando senti que esperava por você. Foi assim:
Eu sonhei que estava na minha toquinha. Era de noite. Então, começou a surgir uma luz maravilhosa, bem na frente da minha arvorezinha. Quando fui olhar o que estava acontecendo, vi uma dama luminosa, uma senhora cercada de luz, envolta num manto brilhante, que inundava a florestinha de bondade. Em seus braços, ela trazia um menininho que nem você. Eles sorriram e olharam pra mim. Senti que era uma visita importante, mas eu era tão pobrezinha! Não tinha nada para oferecer a eles. A única coisa que eu tinha era uma florzinha de amor-perfeito, que eu tinha colhido para comer. Foi o único alimento que eu tinha achado, e eu ia comer uma pétala por dia, pra economizar. Mas eu não podia de modo algum desrespeitar aquela visita tão ilustre! Então, eu humildemente ofereci a minha florzinha, envergonhada por ser tão pobre. O menininho olhou, e deu uma risada bem alta, gostosa e feliz – Ê! – e começou a sorrir, como se eu houvesse lhe dado o mais lindo dos presentes. A dama luminosa também sorriu doce e candidamente, e me disse as seguintes palavras:
- te abençôo, por seu amor, com um filhote que espalhará esse amor pelo mundo.
E daí meu filhinho, eu acordei desse sonho maravilhoso, e senti que esperava por você! Mas eu admito, no início achei que era só um sonho: meu deus, como você era travesso quando era um sagüizinho!

Lágrimas do tamanho de cabeças de alfinete saíam dos olhos do sagüizinho. Ele secou seu rosto com o rabinho. Sua mãe começou a rir e disse:

- está com fome? Sagüis só choram por manha!

E se riram noite adentro.



Lendas

E toda essa história que foi contada aqui é uma jornada de sabedoria, que se espalhou pela florestinha. Passaram os anos e os bichinhos só ouviam falar, mas mesmo assim, acreditavam no que ouviam, e viam que era bom. Aos poucos, aquele sagüi buscador da sabedoria foi chamado de São Mico, o sagüi celeste. Ele se tornou o protetor da floresta, dos bichos e dos que procuram a senda da sabedoria. Por ser pequenino em tamanho, ele protege os pequeninos; mas quem segue sua trilha, se torna grande por dentro. Seu caminho é o amor que abraça o mundo, feito com a sabedoria dos grandes mestres e a ousadia bondosa e travessa de um rabinho felpudo.
Foi assim.



Todo bichinho que ama
Seja de pêlo, pena ou escama
É ele que Deus chama
Para ficar do seu lado

Ao seguir nesse caminho
Seja pobre, feio ou sozinho
Aquele que ama é bichinho
A quem Deus dá seu agrado
....
Não importa quão alto são os cumes
O que faz o bichinho são as atitudes
Que como um lampião de vaga-lumes
Iluminam seu coração

E foi nessa trilha da florestinha
Não importava garra, asa ou patinha
Quem achou a sabedoria fofinha
Encontrou a Redenção.


VERSINHOS DE SÃO MICO





Fim

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