Sinologia e Confucionismo:
a importância dos estudos confucionistas para a compreensão da civilização chinesa
Prof. dr. André bueno
Apresentado na UPE em 04/10/2012
Introdução
Em se tratando de China, nossos métodos e técnicas de pesquisa precisam adaptar-se. A China é uma das poucas civilizações milenárias que continuam a existir. Tal fenômeno é desconhecido no Ocidente, e mais especificamente no Brasil: somos heranças dos gregos, romanos, índios, portugueses e africanos, compartilhamos fragmentos de suas formas de pensar e agir, e nossa língua descende dessas matrizes. Contudo, há essa distância no tempo e no espaço que nos separa dos antigos. Não falamos latim, grego, tupi ou ioruba. Nosso português é bem diferente daquele que veio com as caravelas. Conhecemos a filosofia, mas não ‘praticamos’ o platonismo. Mesmo no plano religioso, nos ressentimos da diferença entre os antigos modelos e os desafios da vida moderna. Nossa cultura é ‘nova’, por assim dizer.
Já a China continua a se desenvolver, sem interrupção, há mais de cinco mil anos – isso se tomarmos como referência apenas os núcleos urbanos e a primeira dinastia, Xia夏. Sua escrita é praticamente a mesma desde o século -3, e o chinês há séculos é a língua mais falada do mundo. A história da cultura chinesa é calcada num longo processo de assentamento, cujas sucessivas camadas acumulam o passado e o re-significam perante o contexto histórico. Um chinês de hoje acha plausível colocar em pé de igualdade, numa discussão sobre política moderna, Confúcio e Maozedong (Mao Tsé Tung毛泽东). A mente chinesa trafega num espaço em que passado e presente se alternam, se tocam e se engendram mutuamente, gerando indistinções difíceis de serem traduzidas para o pensamento ocidental. Talvez não se trate, portanto, de tentar enquadrar a China em nossas categorias epistemológicas; por outro lado, não podemos abandonar nossos referenciais ao estudá-la, sem o que nos dissolvemos de maneira acrítica nesse monumento cultural. A civilização chinesa merece um exame pelo que ela é, e se torna necessário que estabeleçamos formas de compreendê-la. Tais métodos devem escapar do fascínio esotérico ou do preconceito acadêmico; devem deixar a China falar por si, exibindo as fraturas de seu discurso – e os equívocos dos nossos próprios discursos – de tal modo que possamos criticá-los, reformá-los e estabelecermos um verdadeiro diálogo intercultural.
Para isso, pois, é preciso compreender a figura de Confúcio e do Confucionismo para a sociedade chinesa. Veremos que o confucionismo escapa de nossas classificações usuais, e nos apresenta a complexidade da cultura chinesa. Por outro, o seu entendimento nos permite acessar as nuances do pensamento chinês, de sua estrutura de vida, de seu modo de olhar o mundo. O que pretendo nesse breve ensaio é deixar-lhes uma breve apresentação acerca da necessidade de entender Confúcio para compreender a China. Ambos são indissociáveis. É praticamente impossível apreender a China de hoje sem investigar seu passado. É o que proporei aqui.
O modelo do sábio
O confucionismo é um movimento intelectual, e sua denominação original é ‘Rujia’ 儒家, que pode ser traduzido como ‘Escola Acadêmica’, dos ‘estudiosos’ ou dos ‘letrados’. Ela denota um grupo que se formou em torno da figura de Confúcio (孔夫子, -551 a -479), antigo professor da China antiga cuja doutrina filosófica analisaremos aqui. Não há em chinês o termo ‘confucionismo’, e essa é uma criação ocidental, feita pelos primeiros missionários cristãos que foram para a China no século 16. Utilizaremos o termo por conveniência: contudo, desde já somos obrigados a notar que não houve entre os chineses essa associação particular entre o mestre fundador e o nome de sua doutrina. Esse detalhe lingüístico é importante para percebermos o primeiro problema que se interpõe quando estudamos a história da China.
Possuímos basicamente dois modelos para investigar os grandes nomes do passado: o dos filósofos e o dos sábios-religiosos. Os filósofos, tais como Platão e Aristóteles, legaram um razoável material escrito, organizaram os princípios de suas doutrinas e as transformaram em escolas. Já os sábios-religiosos, como o filósofo Karl Jaspers propôs, são figuras que não deixaram praticamente nada escrito, extrapolaram suas fronteiras e ganharam uma dimensão religiosa. Suas doutrinas, porém, sobreviveram ao longo dos séculos, transformando-se em movimentos de forte cunho social. Nessa categoria, entre muitos outros, Jaspers incluía Jeremias, Buda, alguns pensadores gregos e Confúcio.[1]
Poderíamos, a partir dessa breve classificação, nos perguntar por qual razão Jaspers transformou Confúcio numa figura religiosa se ele, na verdade, estava muito mais próximo de um filósofo. Confúcio foi, provavelmente, o primeiro editor de livros da civilização chinesa, reconstituindo um conjunto de clássicos que seriam a base educacional de sua escola. Além disso, ele próprio teria escrito um livro, o ‘Chunqiu’ 春秋, pelo qual esperava ser conhecido. Os livros posteriores a Confúcio foram compilados por seus discípulos, e naturalmente somos atraídos pela idéia de que esse seria um processo similar ao que a tradição cristã afirma sobre a escrita dos evangelhos. No entanto, as obras de Aristóteles também foram editadas por um de seus discípulos, Teofrasto, e essa prática não era incomum na época. Confúcio, portanto, deixou muita coisa escrita. Do mesmo modo, ele nunca fez qualquer milagre, nem mesmo operou eventos fantásticos. Na verdade, ele é conhecido por alguns trechos absolutamente ‘não religiosos’ (do nosso ponto de vista), presente em suas Conversas (Lunyu, 論語):
Fanchi perguntou o que é sabedoria.
O Mestre disse: cuide do povo, respeite os deuses e espíritos, mas sem se envolver com eles. Isso é sabedoria.
[...]
Zilu perguntou: como se serve aos deuses e espíritos?
O Mestre disse: aprenda a servir às pessoas, depois pense em servir aos deuses.
Zilu perguntou sobre a morte.
O Mestre disse: aprenda antes a viver, depois aprenda sobre a morte.
Visto assim, Confúcio poderia ser perfeitamente enquadrado na categoria dos filósofos. A questão, porém, é que Platão não conseguiu convencer os Dionísos de Siracusa a transformarem-se em bons governantes. Nenhum filósofo foi invocado como o modelador de uma sociedade, embora alguns pretendessem sê-lo. As inspirações morais das sociedades européias vinham de suas religiões. Com o advento do cristianismo, isso ficou ainda mais evidente, e foi a religião que converteu os filósofos à sua causa. Na China, porém, foi diferente. Confúcio foi o artífice de uma profunda revolução ética na sociedade. Nos dias de hoje, em que o comunismo não é mais capaz de convencer os chineses, estes afirmam sem sombra de dúvida que Confúcio é o grande articulador de sua cultura. Daí, podemos entender o ponto de vista de Jaspers: afinal, como Confúcio conseguiu ser o modelo ético de sua sociedade sem apelar para o elemento religioso? Confúcio não invocou o poder dos deuses para fazer funcionar a sua doutrina. Na verdade, ele nada impôs: apenas informou que a degeneração social criaria os seus próprios tormentos, num cálculo absolutamente racional da questão.
A capacidade de rearticular a sociedade num novo sistema, sem requisitar a interferência de potências celestiais ou infernais, distingue Confúcio de todos os seus contemporâneos. No entanto, se ele conseguiu o que nenhum filósofo grego ou romano alcançou, a amplitude e profundidade de suas reformas só possuem equivalência, justamente, com aquelas feitas pelos grandes sábios-religiosos. Como então definir Confúcio? Um filósofo bem sucedido, ou um profeta sem religião?
Para os chineses, Confúcio representa a essência daquilo que eles chamaram de ‘sábio’ (Shengren, 聖人). O sábio chinês possui a sabedoria devido a sua capacidade em enxergar para além das aparências, de conceber o mundo em seu sistema, alcançando sua lógica de funcionamento. Sua interferência, porém, não é metafísica: o sábio só é tido como sábio, na verdade, por realizar coisas absolutamente factíveis e concretas, alterando a conformação da sociedade. Nesse caso, pois, Confúcio foi sábio por legar uma herança realizável; se fizesse milagres, seria um mero feiticeiro (Fangshi, 方士). Por essa razão, também, não existe uma doutrina dos seguidores de Confúcio. O que existiu foi uma escola, que depois se transformou num movimento intelectual de profundas implicações sociais.
Os estudos acadêmicos
Em linhas gerais, o que propunha Confúcio? Uma reforma social, baseada na Educação (Jiao, 教). A China de sua época passava por uma terrível crise social. O império Zhou (-1027 a -220, 周) encontrava-se dividido em reinos que guerreavam incessantemente entre si. Um declínio generalizado da moral estimulava a corrupção, a astúcia, a violência e a desigualdade. Esse momento, conhecido na história chinesa como ‘Época das Cem Escolas’ marcaria o surgimento de diversas doutrinas, cada uma propondo um tipo diferente de solução para esses problemas. Cada uma delas apresentava o seu próprio ‘Dao’ (ou Tao, 道), um caminho ou método para recuperar a Harmonia (He, 和) do mundo. Confúcio entendia que as causas da crise estavam num empobrecimento generalizado da cultura. Sem conhecer a moral, as pessoas não podiam ser corretas. Só se poderia conhecer a moral pela educação. Assim, pois, a solução para os problemas da sociedade era criar um programa completo de educação, que resgatasse na Natureza humana (Xin, 性) o verdadeiro humanismo, Ren仁, o desejo de viver harmoniosamente em sociedade.
Visto assim, parece uma simplificação ou uma visão modernizada de Confúcio, mas sua atualidade é chocante justamente por isso. Confúcio propunha que os problemas sociais eram gerados pela ignorância. Não haviam deuses envolvidos na questão: a degradação humana era causada pela própria humanidade. Confúcio defendia que estávamos integrados num sistema ecológico natural (que ele chamava de Céu, Tian天), em que as agressões e desregramentos geravam os efeitos negativos que assolavam a sociedade. O primeiro capítulo do livro A Justa Medida (Zhong Yong, 中庸) define bem isso:
O que o céu concedeu ao ser é chamado Natureza humana 性; seguir esta Natureza é o que se chama Caminho 道; seguir o Caminho é o que se chama Educação 教. O caminho não pode ser abandonado por um só instante; se pudesse, não seria o caminho. Por isso, o ser superior espreita o que seus olhos não podem ver e atenta-se ao que os ouvidos não podem ouvir. Não há nada mais visível do que o que não se busca ver, nada mais palpável que o não-tocado. Por isso o ser superior presta atenção diligentemente a si mesmo. Enquanto o contentamento ou a raiva, a tristeza ou a alegria ainda não despertaram, temos a centralidade 中. Quando estas paixões despertam de forma equilibrada e medida, temos a Harmonia 和 (Medida). A Centralidade é o grande fundamento do mundo; a Harmonia, o caminho universal. Quando a centralidade e a harmonia forem levadas ao seu ponto supremo, céu e terra estarão em seus lugares, e todos os seres prosperarão.
Para resgatar a compreensão desse sistema, Confúcio defendia que o estudo era a via fundamental. O estudo das tradições era designado como ‘Xue’ 學, e o estudo da ação prática como ‘Zhi’知. Ambos eram complementares, e formavam a base da Educação (Jiao, 教). Essa é a razão pelo qual o Caminho proposto por Confúcio acabou sendo conhecido como ‘escola acadêmica’. Um seguidor de Confúcio era, antes de tudo, um estudante. E no fundo, ele não se entendia seguindo Confúcio, mas sim, as tradições. O prestígio de Confúcio residia em ter demonstrando o quão óbvio seria a causa dos problemas chineses, e de como se poderia resolvê-los.
A redenção pelos Estudos e a História
A elaboração do método Confucionista consistia no estudo de seis artes e no domínio de seis livros. As seis artes eram; o estudo da cultura (‘ritos’), Música, Caligrafia, Matemática, Arqueria e Cavalaria. Essas áreas contemplavam o conjunto dos saberes básicos da época, que eram desenvolvidos depois nos estudos superiores em uma determinada área específica. A formação humanística era dada por seis livros que Confúcio selecionara como os fundamentos da cultura chinesa:
• Yijing 易經, ou Tratado das Mutações, livro que guardava os antigos conhecimentos sobre as teorias científicas chinesas, e servia também como oráculo;
• Shujing 書經, ou Tratado dos Livros, continha as principais passagens históricas das primeiras dinastias;
• Shijing 詩經, ou Tratado das Poesias, uma recolha de poemas e canções tradicionais que apresentavam um quadro do cotidiano dessa civilização;
• Liji 禮記, ou Recordações Culturais, é uma vasta compilação dos costumes, ritos, hábitos, leis e visões sociológicas da época Zhou周;
• Chunqiu 春秋, ou Primaveras e Outonos, é uma crônica histórica escrita pelo próprio Confúcio sobre sua época, apresentando diversas passagens históricas para serem analisadas pelo seu caráter moralizante;
• Yuejing 樂經, ou Tratado da Música; esse último texto foi perdido, e se supõe que ele contivesse músicas e teorias músicas da China Antiga, fundamentais para a Educação, na visão de Confúcio. Uma possível parte desse tratado sobreviveu no Liji禮記.
Devemos notar que entre esses livros, dois são especificamente de história (o Shujing書經e o Chunqiu春秋). Confúcio acreditava que na história (Shi, 史) estavam contidos os grandes exemplos morais, as experiências de vida necessárias à descoberta da sabedoria, os eventos elucidativos que explicariam as razões pelas quais somos hoje o que somos. A história ensinaria a origem e as funções dos mecanismos sociais, permitindo-nos aceitá-los, praticá-los ou mesmo modificá-los, segundo as conveniências da época. Compreendendo as raízes da cultura, compreendemos, por conseguinte, o desenvolvimento da moral e da justiça (Yi, 義). Foi isso que ele nos legou as Recordações Culturais (Liji, 禮記)[2], uma extensa compilação dos hábitos, costumes e crenças de sua época. No passado podia ser encontrada a fonte da sabedoria. Eis porque ele afirmou, nas Conversas論語: ‘amo o passado, e o imito’, e também: ‘mestre é quem sabe o antigo, e descobre o novo’.
Posteriormente, Zhuxi朱熹 (1130 a 1200), um dos mais destacados continuadores da escola acadêmica, afirmaria que a doutrina poderia ser condensada em quatro livros básicos: Conversas論語, Justa-Medida中庸, O Grande Estudo大學 e O Livro de Mêncio 孟子 (Mengzi孟子, -372 a -289, discípulo do neto de Confúcio, Zisi 子思, e considerado o maior autor ‘confucionista’ depois do próprio Confúcio). Esses livros foram escritos pelos discípulos de Confúcio (a Justa-Medida中庸 e O Grande Estudo大學 chegaram a ser incluídos nos Recordações Culturais禮記posteriormente), e constituiriam o cerne do pensamento acadêmico, definindo seus temas principais. Doravante, formar-se-ia um cânone da escola acadêmica, utilizado como base, até nossos dias, para o aprendizado do Confucionismo e da Educação em geral.
O projeto social
Mas como todos os sábios do passado, Confúcio tinha um problema: como aplicar essa educação na sociedade, e transformá-la numa regra moral incorporada a mentalidade popular? Seu modelo de cidadão era o ‘Educado’ (Junzi, 君子), a pessoa que havia alcançado o equilíbrio, a justa medida das coisas, em meio à sociedade. O Educado não deveria apenas inspirar as pessoas; ele deveria governar também. Para Confúcio, era necessário tornar a China uma nação meritocrática, em que o valor do estudo fosse reconhecido como forma de salvação e manutenção do bem estar social. Por essa razão, ele sempre aconselhava seus discípulos mais preparados a assumirem cargos na política, promovendo esse bem estar pelos exemplos de justiça e educação. Gradualmente esse sistema evoluiu, ao longo dos séculos, e se transformou no conhecido sistema de exames imperiais. Ele se constituía num vasto concurso nacional, cujo objetivo era constituir os quadros da administração pública imperial. Esse sistema foi capaz de sustentar o país por mais de dois mil anos, e transformou a educação numa obsessão nacional. Ele contrabalançou os desatinos dos déspotas, equilibrou as relações sociais por meio da mobilidade, e apesar de todos os seus defeitos, consolidou no país a idéia de que o estudo é a base do desenvolvimento individual e social:
Para o Educado, a única maneira de civilizar o povo e instituir bons costumes sociais é pela educação. Por isso os antigos soberanos consideravam a educação como o elemento mais importante, em seus esforços por implantar a ordem no país. [...] Só por meio da educação, pois, tornar-se-á alguém insatisfeito com o que sabe; e só quando tem de ensinar a outrem é que a gente dá-se conta da incômoda insuficiência dos próprios conhecimentos. Insatisfeita com o que sabe, a pessoa então percebe que é seu o mal, e dando-se conta da incômoda insuficiência de seus conhecimentos sentir-se-á impelida a aprimorar-se. (Recordações Culturais, 禮記)
Uma ética não religiosa
Já que a base da harmonia social era o estudo, a doutrina de Confúcio nunca se preocupou diretamente com a questão da crença no além. Os confucionistas sempre tiveram receio de investir na metafísica, deixando isso para o campo das opções pessoais. De fato, pode-se ser um confucionista e acreditar em qualquer outra coisa – budismo, daoísmo ou cristianismo – contanto que não se quebrem as regras do trato social.
Esse era o ponto de vista fundamental de Confúcio: não se tratava de negar a existência das divindades, mas de pôr em primeiro lugar os negócios da terra. A ética proposta por Confúcio era materialista e racional, como aparece nas Conversas論語:
Zigong perguntou: existe uma única palavra que possa guiar nossa vida? O Mestre disse: reciprocidade*. Não faça aos outros o que não quer para você. [*恕 shu: palavra que pode ser traduzida e empregada como reciprocidade, cortesia ou tolerância]
Outra passagem é bastante elucidativa nesse sentido:
O Humanismo (Ren, 仁) se resume em cultivar a si mesmo e cultivar a cultura. Faça isso por apenas um dia e todos vão seguir o Humanismo. A prática do Humanismo tem origem em si mesmo e não nos outros [...] cuide da cultura da seguinte maneira: não olhe, não escute, não diga e não faça o que for inapropriado. [...] fora de casa, aja como se todos fossem convidados importantes. Cuide do povo como se fosse um evento importante. Não imponha a ninguém o que não gosta pra si mesmo. Não deixe o ressentimento pessoal se intrometer nas coisas públicas ou nos assuntos particulares.
A doutrina confucionista não era, portanto, religiosa tal como entendemos. Confúcio defendia a existência de um sistema ecológico, denominado ‘Céu’ (Tian, 天), que governava a natureza por meio de leis – tais como hoje entendemos como ‘leis da natureza’. Mesmo deuses e espíritos estavam inseridos nesse sistema. Por isso, a função da política humana era interpretar os sinais da natureza, e convertê-las em políticas públicas adequadas. Uma importância fundamental era dada, por exemplo, ao calendário anual - atributo do imperador - que regulavas as estações do ano, a época de plantio e colheita, e as demais atividades cotidianas. Definir o calendário era adequar-se ao curso do Celeste; contrariá-lo era investir no erro e atrair sobre o império a calamidade. Isso fica bem claro no Tratado dos Livros書經:
Tian天(Céu) inspeciona o povo cá em baixo, tomando nota da sua retidão, e regulando conseqüentemente o seu arco da vida. Não é Tian天que destrói os homens. Estes, pelas suas más ações, encurtam as suas próprias vidas.
Se o ‘Céu’天era uma entidade inteligente, era também absolutamente impessoal. Na visão de Confúcio, uma conduta de vida adequada era o mesmo que uma vida harmônica com a natureza. A interferência do divino era relativizada na vida comum, como vemos nesse trecho das Conversas論語:
O Mestre estava doente. Zilu queria rezar por ele. O Mestre disse: e como é isso? Zilu disse: invocamos os espíritos de cima e de baixo. O Mestre disse: já faço isso há muito tempo, não vai dar certo.
A Ética familiar
Confúcio deslocou o problema da crença religiosa no além para a estruturação da sociedade. O equilíbrio social existiria em função de uma delicada teia de relações, cujo núcleo central era a família. Assim, a fraternidade familiar (Xiao,孝), tornara-se o elemento fundamental do sistema de organização dos indivíduos e de sua relação com o governo. Confúcio pretendia a existência de um conjunto de cinco relações sociais básicas, postas em ordem hierárquica, que seriam as seguintes:
Cinco são os deveres da obrigação universal, e três são as qualidades morais através das quais eles são cumpridos. Os deveres são entre governante e governado, entre pais e filhos, entre marido e mulher, entre parentes mais velhos e mais jovens, e entre amigos. Estes são os cinco deveres da obrigação universal. Sabedoria, compaixão e coragem – estas são as três qualidades morais dos seres humanos reconhecidos universalmente. Não importa de que maneira as pessoas exercitam essas qualidades morais, o resultado é o mesmo. (Justa Medida, 中庸)
A partir delas, a sociedade poderia ser estruturada dentro de uma cadeia de relações pré-determinadas, que definiam obrigações, direitos e deveres dos indivíduos, evitando a maior parte dos dilemas morais. Essas obrigações eram compreendidas por meio da educação, tanto na escola quanto no lar. Era o papel da fraternidade familiar, aqui descrito no Tratado da Fraternidade Familiar (Xiaojing, 孝經):
O Mestre disse: a Fraternidade é o fundamento da virtude. Aprenda e viverá. Eu vou te ensinar. Corpo, membros, cabelo e pele, cada pedacinho, são nossos pais que nos deram. Tenha o cuidado de não os envergonhar ou machucar. Essa é a primeira obrigação da Fraternidade. Quem legar seu nome na vida, no trabalho, e para as gerações futuras, esse alguém atingiu a Fraternidade perfeita.
A Fraternidade começa servindo aos pais, depois ao governante, por fim no cultivo de si mesmo.
O Tratado das Poesias diz: pense nos antigos, cultive sua virtude.
O Mestre disse: quem ama os pais não faz mal a ninguém. Quem respeita os pais, respeita os outros. Amor e respeito são a base da Fraternidade com os pais: quem dá o exemplo serve de modelo nos quatro cantos da Terra. Por isso, mesmo o filho do Céu é fraterno. O Tratado dos Livros diz: o Céu abençoa o soberano fraterno, e todos são abençoados juntos.
O governo
Se Confúcio pretendia que a família estabelecesse o equilíbrio social, formando pessoas justas (Junzi, 君子), qual o papel do governo na sociedade? O governo, na visão confucionista, recebia o ‘Mandato do Céu’ (Tianming, 天命) para administrar a vida dos seres, e manter a continuidade da harmonia no mundo. Esse Mandato não era um atributo místico, e sim um dever moral e cósmico. Implicava que alguém havia recebido o poder para conciliar as diferenças e corrigir os erros. Nas histórias confucionistas, os governantes mais sábios tinham sempre um receio tremendo de assumir o poder, e quando podiam, transferiam-no antes mesmo de morrer para um sucessor designado, de modo a poderem aproveitar a velhice com sossego. O Mandato, pois, não era uma benção celeste: ele deveria ser encarado como uma dura tarefa, da qual o imperador só poderia se beneficiar se cumprisse bem seus deveres. Do contrário, ele poderia ser derrubado – ou, perderia o ‘mandato celeste’, pelo qual foi investido para trazer ordem e harmonia ao mundo:
Cumpre-nos, certamente, analisar as dinastias de Xia夏e Yin殷. Eu não presumo que saiba, nem digo: "A dinastia de Xia devia gozar do favorecedor decreto do Céu, durante tantos anos”; não presumo que saiba, nem digo: "Ela já não poderia perdurar". O fato, simplesmente, foi o seguinte: carecendo a mesma da virtude da reverência, o decreto prematuramente caiu por terra, com o seu favor. Analogamente, não presumo que saiba nem digo: "A dinastia de Yin devia gozar do favorecedor decreto do Céu precisamente durante tantos anos”; não presumo que saiba nem digo: "Ela já não poderia perdurar". O fato, simplesmente, foi o seguinte: carecendo a mesma da virtude da reverência, o decreto prematuramente caiu por terra, com o seu favor. O imperador Zhou周ora herdou esse decreto - o mesmo decreto, eu presumo, que pertenceu àquelas duas dinastias. Que ele procure herdar as virtudes dos seus meritórios soberanos; que o faça especialmente no início das suas atribuições. [...] Que ele não ouse, como imperador e em virtude dos excessos do povo na transgressão das leis, governar com a violenta imposição da morte; - quando o povo é dirigido com brandura, o mérito do governo se torna patente. Compete-lhe, na qualidade de imperador, exceder a todos em virtude. Assim o povo o imitará por todo o império e ele será ainda mais ilustre. (Tratado dos Livros, 書經)
Nas Recordações Culturais (Liji, 禮記), Confúcio também informa como deve proceder um bom soberano, reforçando o sistema por ele proposto:
A arte do governo consiste simplesmente em fazer bem as coisas, ou seja, pôr as coisas em seus devidos lugares. Quando o próprio governante procede “bem", o povo imita-o naturalmente no bom procedimento. O povo apenas segue o que o governante faz - pois se o governante não o faz, como há o de povo saber o que, e como, fazer?
Com exceção do imperador Qinshi Huangdi秦始皇帝(-220 -206), e do regime comunista de Maozedong, todos os imperadores chineses recém-empossados buscavam sempre apresentar-se como restituidores da ordem celeste e representantes dignos da escola acadêmica. Não restava dúvida, aos chineses, que todas as crises derivavam do colapso da Educação e da Família[3]; e que a sobrevivência e os momentos áureos da civilização chinesa deviam a sua existência à boa consecução desses dois elementos.
Confucionismo e Sinologia
Todas as questões aqui apresentadas continuaram a ser discutidas e aprofundadas, dentro da China, ao longo dos séculos. A escola acadêmica – ou ‘confucionista’ – teve brilhantes continuadores, que mantiveram a postura crítica e questionadora da doutrina de Confúcio. Devemos atentar ao fato de que nenhum desses estudiosos – nem mesmo Confúcio – se tornou um santo ou um deus. Autores como Hanyu韓愈 (768 a 824) e Zhuxi朱熹 (1130 a 1200) fizeram questão de afastar qualquer tentativa de sacralizar a doutrina acadêmica, mantendo o aspecto fundamental do estudo e de uma ética laica como base do desenvolvimento humano e científico. Foram criados ‘templos’ confucionistas que, na verdade, eram salões acadêmicos com bibliotecas e áreas de estudo. Os confucionistas nunca criaram qualquer tipo de panteão espiritual: ao invés disso, eles desenvolveram aprofundadas teorias de cosmologia e de filosofia da mente que hoje fascinam o Ocidente.
Embora sejamos atraídos pela China mística de budistas e daoístas, foi o confucionismo que criou a argamassa com a qual a sociedade chinesa foi articulada. Ao estudarmos a história da China, lemos os livros escritos pela laboriosa produção historiográfica confucionista. Foram os acadêmicos que recolheram e preservaram as grandes bibliotecas de textos que nos permitem acessar o passado chinês – ainda que muito desses escritos fossem de escolas rivais a eles. Essa paixão pelo saber, pela ordem social, pelo valor da família e aos costumes foi definitivamente assentada no coração dos chineses pelo profundo sistema educacional proposto por Confúcio. A educação humanística criou uma China sempre preocupada em preservar-se, em manter-se viva ao longo da história. E na China de agora, é o movimento do ‘Novo Confucionismo’ (Xin Rujia, 新儒家) que vêm crescendo como alternativa política e social a um comunismo cada vez mais enfraquecido e distante. No passado, os chineses buscam alternativas para ao futuro, usando uma fórmula consagrada: educar-se, aprimorar-se e tornar-se um bom cidadão. Há milênio é isso que torna alguém, idealmente, ‘chinês’ – mas não será, também, um bom modelo para a humanidade em geral?
O trabalho da sinologia – o estudo da China pelos ocidentais – deve muito, portanto, a herança confucionista. O modelo criado por Confúcio instou os chineses a preservarem seu passado de tal forma que hoje podemos acessá-lo e compreendê-lo, por meio de todo o legado material e cultural que sobreviveu ao longo dos séculos. Mas não se trata apenas disso. Se o confucionismo nos permite estudar a China, tanto no aspecto histórico, quanto filosófico ou antropológico, há que se pensar se seu modelo não deveria nos inspirar também. Devemos passar além da mera herança histórica. Compreender o confucionismo não serve apenas para compreender a China. A mentalidade chinesa é traduzida, pelo confucionismo, num meio acessível de compreensão ao exercício da sinologia. Contudo, há mais: o modelo proposto por Confúcio prova, de certa maneira, a importância da Educação na continuidade de uma civilização. No atual contexto, em que a Educação é banalizada e corrompida, o exemplo do confucionismo na China demonstra tacitamente que a Educação serve à perpetuação de uma sociedade. Sem Educação, uma sociedade está sujeita a crises violentas e destruidoras, como foram as revoluções que ocorreram na China. Devemos dedicar nossa atenção a experiência chinesa: esse país milenário passou por percalços históricos aos quais podemos evitar, se deles pudermos extrair lições históricas que evitem nossos possíveis erros. O estudo da sinologia, pois, não é um mero exercício diletante de investigar o outro; mas é, fundamentalmente, buscar no outro uma via de re-significação de si mesmo. O modelo da Educação, tão bem sucedido entre eles, mostra que essa pode ser uma aposta correta: mas depende de uma vontade social, ligada ao desejo de auto-aprimoramento, que alicerça o desejo de continuidade – e ao mesmo tempo, de mudança – dentro da sociedade.
Confúcio disse, nas Conversas論語: ‘olhem os jovens, eles são o futuro. Mas se eles não se preocuparem com isso, ficarão velhos e não serão nada’. Foi justamente essa minha preocupação, como educador, em proporcionar essa breve apresentação sobre o confucionismo para vocês. Não pretendo com isso defender que todos devam tornar-se sinólogos, porque acredito firmemente que as pessoas devem seguir suas paixões e predileções intelectuais. Contudo, não podemos mais ignorar a realidade das civilizações asiáticas, se nos entendemos como historiadores e especialistas em ciências humanas. Nosso país, nossa sociedade, nossa cultura, tudo isso será construído pelo que soubermos fazer de nós mesmos. Nesse ponto, pois, a China – assim como muitas civilizações antigas – nos serve de aviso. Nelas vislumbraremos a longa cadeia de acontecimentos que fizeram povos desaparecerem, sobreviverem e se reinventarem. Termino, novamente, com uma recomendação do velho mestre sobre o caminho dos acadêmicos:
Pode-se alcançar o poder pelo conhecimento, mas ele se mantém pela bondade. Sem bondade, o poder se perde. Poder com conhecimento e bondade é bom, mas se perderá se não for digno com o povo. Poder que se alcança com conhecimento, se mantém pela bondade e se exerce com dignidade é bom, mas ainda não é o suficiente se não houver Cultura. (Conversas論語)
Para ler:
Destaco aqui algumas publicações que possam servir de introdução a história e cultura chinesa, bem como ao Confucionismo.
De minha autoria:
Mirações do Celeste, 2009; uma introdução a história e a cultura da China numa visão tradicional, baseada nas fontes chinesas. Disponível em: http://miracoes.blogspot.com
Cem Textos de História Chinesa, 2009; coletânea de fontes chinesas, cobrindo da Antiguidade até os dias de hoje, apresentando a mentalidade dessa civilização sobre os seus mais diversos aspectos, tais como história, economia, política, etc. Disponível em: http://chinologia.blogspot.com
Minhas traduções de Confúcio (Conversas論語, Justa-Medida中庸, O Grande Estudo大學e o Tratado da Fraternidade Familiar孝經) podem ser vistas em:
http://andrebueno-sinologia.blogspot.com.br
Os clássicos chineses, coligidos por Confúcio, podem ser vistos em:
http://chines-classico.blogspot.com
Outros autores:
Blunden, C. & Elvin, M.. China. In Grandes Impérios e Civilizações. Lisboa; Edições Del Prado, 1997. - Excelente obra de divulgação da história e cultura chinesa. (relançado recentemente, em 2010, pela editora Folio)
Boff, L. (org.) China & Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1979. - Coleção de ensaios sobre religião cristã, religiões chinesas e a relação Ocidente - Oriente.
Cheng, A. História do pensamento chinês. Petrópolis: Vozes, 2010. – excelente introdução ao pensamento chinês e sua história.
Miribel, J. & Vandermeersch, L. Sabedorias chinesas. Lisboa: Piaget, 2010. – apresentação geral da cultura chinesa, uma introdução sensível e muito bem articulada.
Scarpari, M. China Antiga. São Paulo: Folio, 2009 – uma apresentação da histórica chinesa pela arte.
[1] De fato, a classificação de Jaspers é abrangente, e possui uma série de contradições na escolha e definição dos ‘grandes nomes’ da antiguidade. Usamo-la aqui apenas como referência para discussão.
[2] ‘Liji’禮記tem sido tradicionalmente traduzido como ‘Livro dos Ritos’, mas julgo inadequada e reducionista a tradução do termo ‘Li’ apenas como ‘ritual’. Um exame breve dessa fonte nos permite constatar que Confúcio abordava a cultura no geral, razão pela qual optei por ‘cultura’ no lugar de ‘rito’.
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