Os legistas foram os grandes unificadores do império chinês no século III a.C., emprestando sua ideologia forte e radical ao governo do reino de Qin que, possuidor de uma estrutura sólida e de uma máquina militar invejável, demoliu um a um dos reinos que formaram o período dos Estados Combatentes. Esta escola teria surgido com Shang Yang, no século IV a.C., e no século III a.C., dois outros especialistas em legismo, Hanfeizi e Lisi, fizeram os preparativos finais para a ascensão do Estado Qin na política chinesa. Conquanto Hanfei fosse o grande ideólogo da escola legista, Lisi foi o ministro que aplicou as medidas com eficiência. Enciumado, porém, Lisi resolveu intrigar e condenar Hanfei, encerrando assim com a vida do mais brilhante autor desta escola.
Inicialmente Hanfei teria estudado o confucionismo pessimista de Xun zi, mas em breve ele se aprofundaria em outros textos antigos, tais como o de Shang Yang, Mozi, o Daodejing daoísta e ainda o Sunzi Bing Fa (a Lei da Guerra de Sunzi).
Suas idéias, assim como a de seus companheiros legistas, deixam claro uma descrença total com o passado, e a necessidade de se fazer tudo novo. Não acreditavam, e nem perdiam tempo, com a discussão sobre a natureza humana, acreditando que os efeitos, e não as causas, é que podiam ser controlados. Para isso, construíram a idéia de que um sistema político só podia ser gerido por leis firmes e determinadas, independentes de condições sociais ou materiais (HFZ, 49).
A proposta era simples: centralizar o poder única e exclusivamente nas mãos do soberano: acabar com privilégios nobiliárquicos e implodir com as diferenciações sociais. A hierarquia existente seria definida pelas atribuições de cada um, e não pela sua riqueza ou posição social. Mais; essas atribuições seriam detalhadamente definidas por lei, para que não houvesse uma sobreposição de poderes e/ou uma invasão do espaço do outro.
Muito se criticou a proposição legista na época. Ela gerava horror aos confucionistas, pois as questões não seriam mais julgadas pela sabedoria, e sim por uma lei seca. Os filósofos daoístas acreditaram que esta era uma construção mais artificial do que qualquer outra, fadada ao fracasso; mas os mesmos daoístas já estavam divididos nesta época, e a sua gradual transformação em religião diminuiu, em parte, o interesse da escola por temas políticos.
O que ocorreu é que os legistas conseguiram concretizar, ainda que de forma efêmera, a transformação da sociedade. Estruturam as bases do novo império chinês na figura de Qin Shi Huang Di, e ainda que suas leis fossem cruéis, criaram a idéia de igualdade jurídica, que não via distinção na aplicação das culpas e das penas aos membros da sociedade, fossem quem fossem.
Quando Hanfei falou sobre o castigo e a recompensa, ele não se preocupou em tentar entender se o homem era bom ou mal; se estava ligado ou desligado da natureza; se havia necessidade de uma discussão pública ou privada do poder; se os seres deveriam ou não ser instruídos. Para ele, todos estes aspectos são de âmbito individual, e não diziam respeito à premência de organizar o poder e a coletividade de uma forma única e coesa (HFZ, 48).
O realismo legista trouxe uma experiência singular para a China. Forçou o abandono das idéias de propriedade particular e absorveu todas as terras nas mãos do imperador, criando uma forte máquina estatal. Combateu a cultura antiga, promovendo queimas de livros e perseguições políticas relatadas por Sima Qian no Shiji (SJ, 6).
O legismo nos faz pensar se a força, por vezes, não seria a única solução efetiva em momentos de grande crise. Se pensarmos como os daoístas, veremos que ela pode ter sido empregada no momento correto, mas não sobreviveu além da época Qin. No entanto, a estrutura organizada pelos legistas foi suavizada e aproveitada, em muitos aspectos, pelos confucionistas da dinastia Han.
Acreditamos que a virtude de Hanfei foi mostrar (ainda que não da melhor forma) que a força de um Estado e de uma ideologia se valem, quase sempre, do monopólio da violência. A administração, tanto da punição, quanto da recompensa, resumem os pressupostos de que a coletividade não possui uma identidade definida, e por isso mesmo, não pode ser julgada nem guiada por princípios diferentes (HFZ, 8). Uma única lei é necessária, o que torna todos as pessoas iguais. Não haveria espaço, numa sociedade deste gênero, para o interesse próprio, sob pena de punições severas. É, portanto, a violência, um mal necessário? É, a força, uma realidade indissociável da prática do poder? Será que os melhores governos têm que se basear numa administração forte, austera, porém radical? Até porque isso nos faz questionar, também, sobre a efetividade dessas medidas. Como disse uma vez Montesquieu, os melhores códigos legais são os que têm menos leis, porque demonstram uma sociedade evoluída, que não necessita de tantas regras para viver. Se Hanfei promulgou tantas diretrizes, é bem provável que a quantidade de crimes fosse enorme. Além disso, o povo, que deveria ser o maior beneficiário dessa “igualdade”, ateou fogo à tumba de Qin Shi Huang Di, revoltado com os anos de exploração (SJ, 6). Logo, mesmo as propostas legistas nos fazem ver que a manipulação do poder pela força gera descontentamento e atrito, já que ela não impede a manifestação dos interesses individuais no sistema social. Em muitos casos, a igualdade jurídica, se não bem vistoriada, torna-se um embuste à realidade das divisões sociais. E, assim sendo, mesmo todas as benesses advindas de um sistema político fechado podem perder-se no mar da violência.
Bibliografia Indicada:
HFZ = Livro de Hanfeizi.
SJ = Shiji, ou Registros Históricos, de Sima Qian.
CHENG, A. Historia del pensamiento chino. Madrid: Bellaterra, 2003.
HANFEIZI. Han fei tzu: Basic writings. Columbia: CUP, 1964. trad. B. Watson.
HANFEZI. The Complete Works of Han Fei Tzu. London: Prosbthain, 1939. trad. W. K. Liao.
SHANG Y. O Livro de Shang Yang. Lisboa: Europa-America, 1999.
SIMA QIAN. The records of the grand Historian. Columbia: CUP, 1993. trad. B. Watson.
VANDERMEERSCH, L. La formation du Légisme. Paris: EFEO, 1998.
ZHENG Y. F. China's Legalists: The Earliest Totalitarians and Their Art of Ruling. New York: Sharpe, 1996.
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