A História e seus Comentários, de Liu Xie - Novembro, 2004

O Wenxin Diaolong consitui-se numa das obras mais singulares da antiguidade chinesa. Escrita por Liu Xie (466?-521?), o livro busca analisar as diversas formas literárias chinesas existentes na época, suas gêneses, funções, estilos, história, etc. A teoria de Liu baseia-se em dois pontos distintos; a existência de um Dao (via) da literatura e o formato dos Cinco Clássicos fundamentais (Shu, Shi, Yi, Chunqiu e Liji) como Modelos de escrita. A fusão destes dois conceitos levaria a elaboração de diversos gêneros de texto, que o autor dedica-se a analisar separadamente. Nesta tradução, apresento o capítulo 16, que trata do estudo da História e de seus Comentários. Note-se que Liu Xie não era um historiador, o que o levava a fazer críticas por vezes não muito pertinentes às teorias historiográficas vigentes em sua época (tal como apontar, de maneira misógina, a presença de biografias das imperatrizes nos documentos antigos). Por outro lado, tinha consciência do papel do autor como elaborador de uma versão dos “fatos históricos”, e reproduz de maneira esclarecida a noção complexa que os chineses possuíam acerca do tempo histórico (o passado). Enfim, um breve texto para ser apreciado.

Já transcorreram muitos anos desde que começou a divisão do mundo a partir da época da escuridão. Quem vive no presente só pode conhecer o passado através da história; quem busca conhecer a história só pode fazê-lo por seus escritos.

Nos tempos de Xuanyuan (o Imperador Amarelo), Cangjie foi seu historiador. O cargo oficial de cuidar dos textos vem desta época antiga. O “Quli” diz; "os historiadores preparam seus pincéis para tomar notas", o que significa que História significa "anotar" - ou seja, historiadores são aqueles que, a direita ou a esquerda do soberano anotam e recolhem seus registros. No Passado, os da esquerda recolhiam os fatos, os da direita as palavras. O clássico das Palavras é o Shangshu (Shujing), e o dos fatos é o Chunqiu. Os relatos sobre Tang e Yu foram transmitidos pelo Shujing, tal como a história das dinastias Xia e Shang. Quando Zhou recebeu seu novo mandato, o Duque Ji estabeleceu as normas: fez distinguir os três períodos para delimitar a história e ordenou as quatro estações para relacionar os acontecimentos. Quando os senhores estabeleceram seus territórios, cada um fez a história de seu próprio reino para "outorgar a honra aos bons, punir com o mal os indesejáveis e legar seus ensinamentos a posteridade".

A partir do rei Ping, a dinastia começou e declinar, e não foi mais digna de figurar no Livro das Odes. Leis e normas se dispersaram e se enredaram, e os princípios eternos se perderam. O Mestre Confúcio lamentou profundamente que o soberano abandonara o Dao; desolado pela destruição de sua cultura, viveu retirado suspirando pelo Fênix e vagou pelos caminhos clamando pela vinda do unicórnio. Mas então, se reuniu com o grande Mestre da Música para corrigir as poesias e os hinos; baseando-se na história de Lu escreveu o Chunqiu. Tratou dos enganos e dos erros para mostrar os avanços e retrocessos, e deu testemunho do que havia perdurado e do que havia perecido como conselho e advertência. Uma palavra de elogio valia mais que carruagens e vestidos cerimoniais; uma palavra de censura cortava mais profundamente que machados e facas. Seu significado profundo é obscuro e enigmático, mas o texto que o entrelaça é harmonioso e conciso. Qiuming, seu contemporâneo, chegou a compreender o mistério de suas palavras, partiu de sua raiz e alcançou os ramos. Assim criou o gênero dos comentários (o Zuo Zhuan).

Comentar significa "Transmitir" - Transmitir o significado aprendido nos clássicos para legá-lo a posteridade. Em realidade, são os comentários presentes nos escritos dos sábios que cobrem de fato o que já foi registrado. Durante a época dos Estados Combatentes continuou existindo a função de historiador. Quando Qin se reuniu aos sete reis, cada um dos reinos tinha o seu próprio arquivo. Eram arquivos desordenados, sem uma organização clara - por isso, tomaram o nome de "tábuas escritas" para designá-los.

Quando Han aniquilou Yin e Xiang, os êxitos militares se sucederam durante anos. Lujia estudou os Clássicos e escreveu o Chuhan Chunqiu. Então chegou o grande escriba Tan, seu descendente, que durante gerações havia sido detentor das "ripas de bambu". Sima Qian herdou sua paixão, examinou e relatou o trabalho dos soberanos. Para evitar confusões que adviessem da comparação entre suas biografias com a de Yao e dos santos, preferiu não seguir a norma prescrita por Confúcio para a elaboração de um Tratado (Jing, ou "Clássico"), ainda que pudesse fazê-lo. Por isso, tomou como modelo o Lushi Chunqiu e deu o título a sua obra de "Recordações Históricas". Esta denominação é grandiosa. Trata sobre soberanos e reis; as biografias reúnem condes e marqueses; oito livros descrevem as formas de governo; dez tabelas classificam as genealogias. Ainda que de maneira diferente da tradicional, conseguiu ordenar os acontecimentos. tem o mérito de haver registrado a verdade sem nada esconder, e de o haver feito com grande erudição e elegância, com um discurso elevado e um juízo claro; seu defeito foi seu gosto pelo estranho, contrário aos Clássicos, e comete erros ao confundir e perder princípios confucionistas.

Banbiao estudou-o com profundidade. Bangu escreveu o Hanshu. Seguiu as técnicas anteriores e observou a linguagem de Sima Qian. Meditar sobre a realidade lhe ocupou mais da metade do trabalho. Seus dez documentos são completos e ricos em conteúdo; seus comentários e prólogos são de rara beleza; tem a elegância e a qualidade dos clássicos, e nos lega um sabor duradouro e verdadeiro. Como norma, toma os clássicos como modelo e segue os sábios, tendo o mérito da abundância e riqueza de princípios. O delito de haver omitido a contribuição de seu pai e usurpado sua habilidade, tanto quanto o erro de vender seu pincel em busca de recompensas, constituem a chave dos estudos críticos levados a cabo por Gongli sobre o Hanshu e Bangu.

A sucessão de acontecimentos que Zuozi narra ocasionalmente, se baseiam no Chunqiu; sua linguagem é concisa, mas sua interpretação sobre a estrutura dos clãs é difícil de compreender. As biografias da história de Qian delimitam em detalhes a origem dos personagens e acabem sendo fáceis de examinar; os narradores a tomam como exemplo. Mas quando o imperador Xiaohui deixou os assuntos do seu Céu e a imperatriz Lu se fez governante, Ban e o Shiji lhe dedicaram um capítulo, contradizendo os clássicos e falseando a realidade. Porque o fizeram, se desde Foxi não se ouviu falar de um soberano que fosse mulher? O destino que encontrou Han dificilmente deve servir de lei para a posteridade. o rei Wu jurou que "uma galinha nunca anunciaria o amanhecer"; Huan de Qi, em um sacrifício, afirmou que as mulheres não participariam do governo. A imperatriz Xuan desestabilizou Qin e a dama de Lu pôs em perigo Han. Os assuntos de Estado são difíceis, nomeações e títulos devem ser outorgados com discrição. Quando Zhang Heng se fez historiador, cometeu o mesmo erro que Sima Qian e Bangu; quis dedicar um capítulo a imperatriz Xuan. Que grande equívoco! Ainda que Zihong tenha subido ao trono de maneira irregular, era parente de Xiaohui; Ruzi, ainda sendo criança, no entanto continuou a linha aberta por Ping. Se podemos escrever sobre estes pequenos imperadores, porque dedicar-se as imperatrizes?

Os Anais e Biografias dos Han posteriores tiveram suas origens nas Oficinas do Oeste (Bibliotecas e Arquivos de história). Os Trabalhos de Yuan e Zhang são parciais e contraditórios, sem princípios fundamentais; as obras de Xue e Xie são descuidadas e pouco confiáveis. Os de Sima Biao são detalhados e autênticos, e os de Hua Qiao, ponderados e convenientes; estes são os ideais.

Os três grandes historiadores da Dinastia Wei utilizaram tanto os Anais quanto as biografias. Das obras do tipo Yangqiu e Weilue, do estilo Jingbao e Wulu, algumas são apaixonadas e vão de encontro às tendências da época, sendo difícil considerá-las verídicas; outras são excessivamente toscas e vagas, carecendo do essencial. Somente o Sanguozhi de Chen Shou é um texto de qualidade e com definições claras. Xun e Zhang acompanharam Sima Qian e Bangu, o que não resulta num grande elogio.

Os registros da Dinastia Jin se realizaram na Oficina das Edições (Bibliotecas e Arquivos de história). Luji começou a escrever alguns, mas não chegou a terminá-los. Wang Shao continuou-os até o fim da vida, mas não pode completá-los. Gan Bao redigiu os Anais de Jin, investigou-os corretamente e logrou ordená-los de todo. O Yangqiu de Sun Sheng tem como ponto forte sua concisão.

Partindo do Chunqiu e seu comentário, se estabeleceram princípios gerais que se aplicaram a todos. Desde o Shiji e do Hanshu, não tem havido outro modelo. O Jinji de Deng Can estabeleceu, pela primeira vez, seus princípios gerais e abandonou o estilo de Han e Wei para adotar as normas de Yin e Zhou. Ainda que fosse um estudioso do rincão do rio Xiang, no extremo do país, tinha em seu coração os capítulos do Shujing sobre Yao e Gaoyao. Quando Anguo estabeleceu seus princípios, empregou as normas do Mestre Deng.

Para escrever registros históricos é necessário atravessar cem autores, retroceder mil anos, aclarar as evidências do florescimento e da decadência dos Estados e, como no "Espelho de Yin", refletir sobre seu surgimento e desaparecimento. Fazer com que as Instituições de uma Dinastia durem como o Sol e a Lua; que as vidas dos príncipes e reis sejam tão grandes e duradouras como Céu e a Terra. Por isso, nos princípios dos Han, o cargo de historiador adquiriu uma suma importância. Os documentos e registros dos reinos e províncias se reuniram pela primeira vez na Oficina do Grande Escriba, com a intenção de investigar detalhadamente as divisões do Reino. Se consultou a Câmara de Pedra, e se abriram as arcas de Metal; se desenrolou a seda deteriorada e se examinaram as ripas de Bambu quebrado, para ampliar conhecimentos e experiências na investigação da antiguidade.

O Historiador aponta idéias, elege as palavras e estabelece princípios baseando-se nos clássicos. Ao decidir sobre conselhos e advertências, deve apoiar-se nos sábios. Depois disto, seus juízos e críticas serão brilhantes e corretos, escapando da falsidade e da imprecisão. Assim, o estilo dos Anais e dos comentários nasce de tecer e bordar sucessos; seu texto não é um discurso trivial pois que escreve sobre eventos ocorridos.

Mas se passaram muitos anos e é difícil distinguir o que é idêntico e o que difere da realidade atual; quando os acontecimentos se amontoam é fácil confundir origem e fim. Precisamente esta é a dificuldade de lograr uma síntese. Às vezes há um só fato cujo mérito se reparte entre várias pessoas; se ele for registrado duas vezes, cairá na redundância; mas se for registrado apenas uma, sofrerá de falta de precisão. Assim, não é fácil pesá-los e uni-los. Por esta razão Zhang Heng encontrou erros e incorreções no Shiji e no Hanshu. Fuxuan criticou as faltas e erros do Hou Hanshu. Todas as críticas são deste tipo.

Ao referir-se as gerações antigas e longínquas, quanto mais distantes estiverem, maior será a inexatidão dos estudos. Gongyang Gao disse; "as notícias se transmitem usando linguagens diferentes"; Xun Kuang comentou; "ao registrar o antigo, se omite o moderno" (ou seja, o autor é sempre atual). De fato, em caso de dúvida mais vale ficar quieto; é mais valioso ser fiel a História. No entanto, as pessoas ignorantes gostam do que é estranho e não se preocupam com a razão dos acontecimentos. Ao transmitir o que se ouviu, tendem a falseá-lo, e ao registrar o distante desejam detalhar-lhe o máximo. Assim, abandonam o comum em busca do extraordinário, e inventam para apoiar seus argumentos. Os que as velhas histórias não tem, recorrem aos "livros que eu li". Esta é uma fonte de mentiras e exageros; constitui-se na verdadeira sina dos escritos sobre o passado.

Quanto aos escritos de nossa época, ainda que sejam precisos em relação ao tempo, contém muitos enganos. Os escritos de Confúcio sobre Ding e Ai são críticos mas possuem uma linguagem sutil e equilibrada; no entanto, a tendência atual é se deixar levar pelo interesse. Se alguém faz parte de uma família de prestígio e honra, ainda que seja medíocre, será adornado ao extremo. Se trata-se de um cavalheiro derrotado, por mais que sejam grandes suas virtudes, ele será esquecido e deixado de lado. Maltratar os virtuosos, adular acriticamente as fontes, ser frio ou quente demais com a ponta do pincel; estas são as injustiças dos contemporâneos que mais devemos lamentar.

Ao escrever sobre o passado se induz ao erro; ao registrar-se o presente, distorce-se a realidade; já citamos todos estes casos. Analisar a razão e dar refúgio a verdade, somente um coração sincero pode intentar fazê-lo. Mas ocultar os erros de homens respeitáveis e sábios, como assinala o sábio Nifu, é uma pequena mancha que deprecia uma pedra preciosa. O bom historiador usa seu pincel para apontar e criticar os vícios excessos, como o campesino quer ver uma má erva arrancada. Esta é uma regra para Dez Mil gerações. É a técnica para desembaraçar um emaranhado de fontes, esmerar-se em dar importância ao acontecimento e abandonar o estranho, compreender a ordem do começo e do fim, e valorizar os princípios que regem os acontecimentos. Se forem compreendidas estas grandes linhas, se poderá penetrar em todas as razões.

Assim, a tarefa do historiador é falar sobre todos os aspectos de uma Dinastia (contexto histórico), abordar tudo que acontece entre os quatro Mares. Sobre seus ombros cai a responsabilidade de decidir o que é falso e verdadeiro. Nenhuma outra tarefa é tão laboriosa quanto a dos que manejam o pincel. Sima Qian e Bangu abriram caminho, mas as gerações posteriores os criticaram. Se se deixam levar pelos sentimentos e perdem de vista o que é correto, a literatura histórica correrá perigo.

“As Histórias começam com o Imperador Xuan,

seu corpo foi preparado por Zhou e Kong

As gerações passam e se entrelaçam,

o bom e o mau, ambos se reúnem

Se transmitem elogios, se fazem censuras

Dez Mil Almas do passado se comovem.

Na História, o Modelo foi Qiuming

cuja retidão se remete a Nan e Dong”



(Nan e Dong foram dois historiadores considerados como exemplos pela determinação em narrar os acontecimentos de sua época, mesmo sob risco de vida. Suas biografias são citadas no Zuo zhuan).

Traduções do texto;

Wenxin Diaolong. Versão em chinês por Chen Yu Fu

El corazon de la literatura y el cincelado de dragones. Granada: Comares, 1995. (trad. Alicia R. Eleta)

The Literary Mind and the Carving of Dragons . New York: Columbia Univer. Press, 1959 - 2a edição revisada: Hong Kong, 1993. (trad. Vincent Shih).

Il tesoro delle lettere: un intaglio di draghi. Roma: Luni, 1996 (trad. Alessandra Lavagnino).

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