UMA BREVE ANÁLISE DA
HISTORIOGRAFIA CLÁSSICA CHINESA
André Bueno
RESUMO: Neste breve texto,
faremos uma apresentação sucinta do conceito de História no pensamento
tradicional chinês. Para tal, acompanharemos o seu desenvolvimento, a
formulação dos conceitos fundamentais e sua dinâmica de funcionamento.
Observaremos, ainda, como se estrutura a criação de uma teoria histórica
diferente das ocidentais, assente numa continuidade milenar desconhecida para
nós.
Palavras –Chave: Historiografia, Sinologia, História da
China
Em contraste com outras civilizações asiáticas (e com o
próprio Ocidente), os chineses possuem desde a antiguidade um senso histórico
singular e bastante aprofundado. A história chinesa é, para estes autores
antigos, um objeto de referência e reverência - os tempos passados não narram
apenas o que aconteceu, mas toda uma experiência que nos serve agora, no
presente, e que se projeta em nossas construções futuras.
Assim, o historiador chinês se coloca sempre no ponto axial
de uma transição contínua entre o tempo, a matéria e a sociedade. Não tem
ilusões de recriar perfeitamente o passado, mas intui o poder advindo de uma
leitura esclarecida sobre o mesmo. Desde cedo, fugirá da gaiola textual e
buscará também em relíquias materiais as informações que precisa para comprovar
sua tese. Ele o sabe - seu trabalho é apenas um parecer metafórico sobre o
passado. No entanto, a mesma metáfora é uma leitura sobre o real; então, como
dizer que ela não é igualmente real?
O primeiro destes ilustrados historiadores que a tradição
chinesa nos legou foi o grande mestre Confúcio (ele mesmo um divisor de águas
da sua civilização), do século -6 (datas tradicionais -551-479). Costumam os
chineses afirmar que outros "pensadores-historiadores" vieram antes
dele, mas nenhum nome relevante chegou até nós senão pelas mãos do mestre.
Confúcio via na história um dos caminhos para a redenção moral. O passado - ainda
que não possa ser reconstituído em sua totalidade - está repleto de exemplos
dignificantes de como o ser humano deve proceder. Não são apenas grandes
soberanos, mas também pequenos heróis, importantes discursos, eventos
marcantes...uma plêiade de referências que embasam e ilustram o discurso ético
da escola dos letrados. Confúcio tinha consciência de que seu resgate dos
tempos antigos era incompleto e possivelmente problemático - não foi o mestre,
pois, que reclamou da insuficiência de textos, objetos e tradições das
dinastias antigas? "Posso falar sobre o ritual Xia? Seu herdeiro, o país
de Qi, não preservou suficientes evidências. Posso falar sobre o ritual Yin? Seu
herdeiro, o país de Song, não preservou suficientes evidências. Não existem
registros suficientes e tampouco homens sábios suficientes; caso contrário, eu
poderia obter evidências a partir deles" (Lunyu 3 e Zhongyong, 28). Mesmo
assim, fragmentos desta antiguidade garantem subsídios mínimos para o estudo do
presente. Confúcio capta com grande excelência a idéia desta “decadência
contínua” que todas as sociedades sentem, e que gera a idéia do passado sempre
como uma “época melhor”. O Mestre nos mostra que os tempos antigos estão
repletos de bons e maus exemplos, e o que nos cabe é escolher em qual iremos
nos inspirar. Queremos ser como o sábio Shun ou o tirano Zhou, de Shang?
Lega-nos ainda dois livros importantes; o Shujing (O Tratado dos Livros, recolha
de discursos e eventos históricos importantes da antiguidade) e o Chunqiu
(Primaveras e Outonos, uma longa cronologia de eventos históricos desde -781).
Depois de Confúcio, outros tantos historiadores anônimos dedicar-se-iam
a escrever a história de suas regiões em meio aos tempos claudicantes dos
Estados Combatentes. Vestígios esparsos destas obras sobreviveram, e mesmo
assim só podem ser encontrados em obras posteriores. Apenas os comentários do
Chunqiu (nomeados como as tradições Zuo, Guliang e Gungyang) mantiveram-se
intactos, além dos ‘Anais de Bambu’ (Zhushu jinian). A China teria que esperar
um pouco para ver surgir o grande luminar de sua historiografia, Sima Qian
(-145-85).
Sima foi o Taishi (historiador e astrólogo oficial) da
primeira dinastia Han. Seu livro, o Shiji (Recordações Históricas) é uma grande
antologia comentada dos tempos antigos, trazendo novas luzes sobre o passado
chinês. Fruto de uma longa pesquisa material e textual feita em todo o império,
Sima inova nas técnicas de datação. Verifica as tabelas astronômicas para
afirmar a autenticidade de certos eventos. Realiza uma exegese nos textos,
vestígios materiais e epigráficos para analisar as possíveis inferências, as
interpolações e adulterações. Assume suas dificuldades em reconstituir certos
momentos desta história, e busca argumentar de forma coerente ao defender um
ponto de vista (realização rara em todos os tempos). Cria ainda o “parecer do
Taishi”, uma análise crítica apresentada ao final do texto como uma espécie de
“veredicto” sobre determinada figura ou circunstância histórica, com fins de
possibilitar a reflexão moral sobre o tema. Sima têm perfeita consciência - tal
como Confúcio - de que sua produção intelectual é fruto de um tempo, uma
releitura do passado. Como se afirma num comentário do Zuozhuan, "a história
serve para interpretar e conhecer o passado", mas o próprio Sima afirma, diante
desta perspectiva, que "a história busca compreender as mudanças dos
passado e do presente". Esta perspectiva influenciará decididamente os
historiadores chineses posteriores, que nunca se iludirão com a idéia de
possuir uma “opinião isenta”; verificar-se-á a história pelos modelos
construídos, pelas “evidências”, enfim, pela possibilidade que uma
interpretação tem de ser lógica, profunda e fundamentada. Ainda assim, venera a
história como caminho de ilustração moral; “ela distingue o que é suspeito e
duvidoso, elucida o certo e o errado, e decide o que é incerto. Classifica o
que é bom como bom e o que é ruim como ruim, honra o que é digno e condena o
que não é merecedor. Preserva existências perdidas e restaura as famílias em
deterioração. Esclarece o que foi negligenciado e restabelece o que foi
abandonado” (Shiji, 130).
Sima cria um novo modelo de como a história deve ser
produzida. Banbiao, historiador do séc. +1 comentará esta obra fazendo-lhe
adendos com “novas descobertas históricas” no Shiji Lun. Seu filho Bangu se
conduzirá por esta trilha aberta, redigindo a história oficial da Dinastia Han.
Segue os mesmos procedimentos de pesquisa, recolha, análise e compilação. Não
termina sua obra, porém. Quem lhe sucederá no encargo é sua irmã, Banzhao (+32
+92), talvez a primeira historiadora reconhecida da humanidade. Intelectual
confucionista, finda o texto e recebe a benção da imortalidade de seu nome, tal
como o irmão. É também a época do filósofo Wang Chong (+27 +91), o cético que
assumi definitivamente a materialidade da história - um momento no espaço-tempo
que já findou, e do qual nos restaria apenas uma herança.
Seguem-se as dinastias, e o trabalho individual do
historiador é substituído pela formação de equipes de pesquisadores (com Taishi
assumindo um papel diretor). Gradualmente estas comissões - que tinham por
objetivo ampliar o espectro do estudo histórico - perdem o sentido crítico e
terminam por criar versões da história que tendem geralmente a conciliar visões
divergentes através de inúmeros artifícios teóricos. Liu Zhiji (+661 +721)
denunciará esta perda da capacidade crítica, sobre a qual se estabelece o
processo de discernir. Luta contra os malabarismos metodológicos, e não aceita
tão simplesmente o consenso como uma forma de resolução dos problemas históricos.
Seu Shitong (Observações sobre História) será um dos melhores manuais teóricos
sobre “fazer história” após a obra de Sima Qian. Para Li, estava mais do que
claro que a história era uma metáfora, vinculada por uma linguagem coerente
através de fragmentos do real (fontes, vestígios, epígrafes, etc.). Mas nem por
isso ela perde sua objetividade; um discurso falacioso sempre carece de base e
possui falhas, contudo, a história deve precaver-se de acreditar que se encerra
numa visão "verdadeira" do real. O que ela constrói são hipóteses, na
medida do possível, válidas.
Seguir-se-á o trabalho de Sima Guang (+1019 +1086), o Zizhi
Tongzhian (Espelho para um bom governo), que aprofunda o problema da crítica
histórica. Guang achava imprecisas as datações pautadas nas referências
dinásticas. Defendia um descompasso entre as “impressões” do tempo que os
segmentos sociais percebiam, e aprovava o uso de versões históricas contraditórias,
que deixassem o sabor do juízo ao leitor. Constrói um modelo cronológico de
“espaços temporais”, e não de períodos dinásticos. Valorizava alguns personagens
históricos, mas também perspectivas coletivas. Estudou as leis da história,
aspectos do Direito, da política e dos costumes sociais. Todavia, neste momento
fértil da história chinesa Zhu Xi (1130+1200), o grande comentador
confucionista, escreveria também o seu Tongjian gangmu, inspirado no estilo
taciturno do Chunqiu (Primaveras e Outonos) e comentando as passagens
históricas tal como feito no Zuozhuan. Num átimo, os historiadores chineses
olham para o passado e futuro simultaneamente: a marca distintiva de uma
civilização que se calca igualmente na alternância do mutável e do imutável.
Assim, pois, o desenvolvimento do prisma teórico assenta-se
gradualmente em camadas, influenciando o trabalho destas comissões de histórias
dinásticas. Livres de amarras teológicas que pudessem criar entraves ao
problema da transgressão lógica, a história chinesa dá passos calmos e
vagarosos - porém seguros - para desenvolver-se.
Guyenwu (+1613 +1682) trará para campo a necessidade de
avaliar a importância da diversidade cultural na constituição histórica social.
Em período próximo, a escola Kaozheng (do qual fazem parte Guyenwu e Huang
Zongxi (+1610+1695), alertará contra os perigos da “valorização da evidência”
como “prova da verdade”. Eles acreditavam apenas em testemunhos históricos, e
não na “reprodução” da realidade pelo documento. Retomam a antiga consciência
de Confúcio e Sima sobre a dificuldade em tomar a fonte por ela mesma, e indicam
a necessidade constante de renovar o papel crítico do historiador.
Já nos fins do séc. 18, Zhang Xuecheng (+1738 +1801)
desenvolve o aspecto das histórias locais e do relativismo cultural proposto
por Guyenwu. A história conquista definitivamente o campo do estudo ético
transcultural e ganha dimensão extra-temporal. Espraia-se na possibilidade de
transcender a fronteira chinesa, consolidando um arcabouço teórico adaptável à
diversidade de civilizações. Mas esta experiência durará pouco tempo, e algumas
décadas depois as invasões européias minarão gradualmente a capacidade criativa
desta historiografia, que terminará alijada a uma posição secundária na
modernidade.
Ler o passado, para inferir o futuro: a história como um
fundo moral, a base sobre a qual se assenta a sociedade; eis os princípios que nortearam
a construção da história tradicional chinesa, definida sempre pelo mister de
aperfeiçoar o ser humano. Trata-se, pois, de uma história ética, avaliativa e engajada
- e oportunamente bastante consciente de sua posição. Se não pode prever
completamente o futuro - posto que este é construído agora - a história faz o
sábio. Ou, como disse Confúcio; “aquele que por meio do antigo descobre o que é
novo, este pode ser um mestre!” (Lunyu, 2).
Alguns conceitos da
História Chinesa
Tendo em vista esta apresentação sobre a historiografia
chinesa e seus principais autores, é interessante que passemos, agora, à
análise de alguns conceitos presentes no pensamento histórico chinês.
O Tempo
A "ação humana ao longo do tempo"- uma definição
mais que sucinta para a história. Pertinente, porém, para o que significa o
estudo sobre o passado feito pela civilização chinesa. A ação humana é o
domínio da moral. O tempo é o campo onde ela evolui, se renova e se repete.
Todos estes aspectos estão presentes no contexto da eterna mutação da matéria e
da sociedade. Assim sendo, é a história também um elemento do círculo cósmico
que tudo açambarca; ela é um fragmento do real que traduz o próprio real.
No entanto, o tempo chinês é diferente do nosso. Repete-se
em ciclos, ciclos de mutação. Ou seja, engendram-se numa espiral de ascensão e
queda, tal como a dinâmica de yin e yang - as duas grandes energias do universo
que se completam por sua natural oposição. O tempo é, portanto, o vazio onde se
realiza a transformação. Ele é construído sob a forma material num determinado
contexto - o passado - e dissolve-se no inexorável processo de degradação do
físico.
Se este é seu padrão, supuseram então os chineses que o
tempo se repete, e se repetem os acontecimentos históricos - mas estes
acontecimentos nunca serão os mesmos! Como se explica esta noção tão complexa?
O tempo é uma impressão, como afirmou Sima Guang (+1019
+1086). Uma impressão de vários aspectos; mental, material, circunstancial... No
tempo, reproduz-se o ciclo de criação e destruição de yin e yang, eis o que não
pode ser mudado, o padrão de repetição. Mas, se a realidade é definida
justamente pela mutação, então o padrão se repetirá, mas nunca da mesma forma.
Esta é a chave para entender o avanço das técnicas, e a diferença entre os
contextos históricos.
Sima Qian (-145 -85) já havia alertado que o tempo
organiza-se nestes ciclos, que podem ser observados pela manifestação dos cinco
agentes (ou elementos, o wu xing - madeira, terra, fogo, água e metal) na
matéria. Até mesmo o movimento das dinastias podia ser interpretado pela
sucessão destes agentes na natureza, tal como foi o caso de Qin (-221-206), do
elemento água, que foi suplantado pelos Han (-206 +220), do elemento terra.
Estaríamos inclinados a acreditar que esta suposição seria
fantasiosa, se Sima não fosse um astrônomo (ou astrólogo, na época tanto fazia)
de capacidades notáveis. Calculando o tempo de transposição destas forças nas
dinastias passadas, e comparando-as com eventos astronômicos importantes
citados nos documentos, este historiador conseguiu traçar uma cronologia histórica
precisa até o século -10, quando afirma não ter mais segurança sobre as datas
que propõe. Se a arqueologia ocidental é nossa referência para validar tal
afirmação, saibamos que ela o comprovou. E mais: atualmente, esta mesma
arqueologia tem observado que datas anteriores ao período do século -10 estão
bem próximas de serem iguais as propostas por Sima. Diante do nosso
desconhecimento acerca da ciência chinesa, poderíamos afirmar credulamente que
isso seria quase místico, se não fossem os chineses bastante cônscios do
funcionamento do seu sistema de interpretação da natureza.
Assim, podemos compreender que a espiral de Sima Qian é
ascendente; o que ela demonstra é que os eventos do passado são similares aos
do presente, mas não são exatamente os mesmos. Tem causas parecidas, dão-se de
forma semelhante, e podem mesmo descambar numa conclusão próxima da que
tradicionalmente conhecemos. Mas há a variabilidade! E é este fator que gera a
descoberta, a invenção, a transformação. A mutação é que faz dar o passo além
na história. Ela quem modifica as estruturas, a sociedade, a cultura. Muda,
para manter-se a mesma. E nunca o será.
Diante desta consideração sobre o tempo que os chineses
tomam a história como um arcabouço de ilustração intelectual; nela estão
contidos os arquivos da experiência humana, uma biblioteca formada por
fragmentos do saber temporal e atemporal que, conjugados, formam a base da
realidade atual. É, pois, o fundo infinito da sapiência humana.
A Verdade Histórica
Disse o legista Hanfeizi (séc. -3): “A dificuldade em falar
a uma pessoa não está em saber o que dizer, nem no método de argumentação que
torne claro o que se pretende. Também não está na dificuldade de ter coragem
para expor total e francamente o que se tem no espírito. A dificuldade está em
conhecer a mentalidade da pessoa a quem se fala e em adotar o meio mais
adequado a atingi-la”. Lubuwei, contemporâneo de Hanfei, afirmou igualmente; “É
indispensável submeter toda a informação a um exame preliminar. Após muitas
transmissões, ela é deformada a ponto do branco virar preto e o preto virar
branco”.
Tendo em vista estas duas afirmações, podemos constatar
claramente a consciência dos antigos chineses acerca do problema da “verdade”
histórica. Esta é (e sempre será) determinada pela intenção de quem a faz ou de
quem a interpreta. Confúcio (séc. -6) aconselhava seu discípulo; "Recolhe
muita informação, põe de lado o que é duvidoso, repete cuidadosamente o resto;
então, raramente dirás algo errado. Faz muitas observações, deixa de lado o que
é suspeito, dedica-te cuidadosamente ao resto; então raramente terás do que te
arrepender. Com poucos erros no que dizes e poucos arrependimentos pelo que
fazes, tua carreira está garantida" pois “Busco transmitir, não inventar. Confio
no passado e o amo” (Lunyu, 7). Eis aqui a noção que parece permear a concepção
de verdade na história chinesa. Se ela é uma criação pessoal (ou não), tente
fazê-la da forma mais consciente e esclarecida possível. “Estudar sem pensar é
inútil, pensar sem estudar é perigoso” (Lunyu, 2), afirmava o grande mestre.
Esta é a base do discernimento sobre a qual uma “verdade histórica” se impõe - sua
articulação lógica com a impressão do passado.
Por esta razão é que Liu Zhiji (+661 +721), no capítulo 22
"Xushi", nos dirá que "quanto mais se fala, mais caótica e
complexa se torna a História" - o uso das palavras deve ser mais do que
cuidadoso, no sentido de expressar aquilo que realmente se quer dizer.
Tendência, Propensão
Zisi, retomando Confúcio, explana ainda sobre uma outra
possibilidade, a do sábio adquirir a capacidade da vidência sobre a sociedade, sobre
a política e sobre si mesmo (Zhong Yong, 24). Devemos esclarecer que esta não é
um “poder sobrenatural”, tal como usualmente se considera no Ocidente. Esta
tendência é a disposição e a sensibilidade de acompanhar, inferir e presumir os
movimentos do fluxo criativo que concretiza o contínuo processo de geração da
natureza, tal como proposto na estrutura do pensar chinês. Tendo conhecimento
das tensões que permeiam um objeto de análise, o sábio pode definir, ou
inferir, a direção do contexto em função de sua aproximação (ou afastamento) da
centralidade – ou ainda, para que ponto a centralidade se desloca. Seu método é
basear-se na experimentação consigo mesmo e com os outros seres humanos, o que
lhe dá o arcabouço necessário a reconhecer os padrões de movimento das coisas e
elucubrar as probabilidades. É assim que ele pode “prever” o movimento de
pessoas, de governos ou sociedades. Sua “vidência” é uma análise profunda dos
seres, fundamentada em sua experiência íntima com os limites e a moderação.
Métodos oraculares como as carapaças de tartaruga e o Yijing (Tratado das
Mutações) são recursos a sua investigação; mas o perfeito desdobramento de sua
“vidência” se dá por uma capacidade própria, interna, independente destes
mesmos meios: “a perfeição moral é, num estágio avançado, como a dimensão do
próprio espírito” (Zhong Yong, 24). Tal consideração pode resumir-se numa
passagem em que o discípulo Zizhang pergunta a Confúcio; "é possível
predizer o que será dos próximos dez reinados?", ao que o Mestre responde:
"Os Shang herdaram os ritos de Xia; nós, Zhou, herdamos os de Shang. Ora,
sabemos o que cada um dessas dinastias acrescentou e suprimiu. E o mesmo
acontecerá com todos os reinos que sucederem Zhou, sejam eles em dez ou em
cem" (Lunyu, 2).
A Investigação
Escrutinar o passado significa utilizar todos os recursos
disponíveis para reconstituí-lo. Aqueles que se dispuseram a narrá-lo fizeram
uso do pincel ou da memória oral, constituída por um milenar processo de
condicionamento e repetição de poesias e histórias. Os historiadores chineses
não abriam mão, porém, dos objetos materiais para avaliar as transformações de
uma cultura. Confúcio constatava a desarticulação da linguagem pictórica
chinesa com o processo de representação do real quando reclamava “hoje, um vaso
não é mais um vaso” (ou seja, a forma estilística dos vasos rituais já não
possuía mais uma relação direta com a representação gráfica da palavra “vaso”.
Lunyu, 6).
Sima Qian (séc.-2) visitou a terra de Confúcio em busca de
informações, e ficou vivamente impressionado com a velha carroça da família do
mestre a apodrecer num canto. Indignou-se igualmente por haver tão poucos que
conhecessem mais sobre as tradições. Ambos, portanto, pareciam desconfiar
seriamente que apenas os textos pudessem lhes gerar as informações que
precisavam.
Na verdade, uma fonte de informações já utilizada na época
baseava-se em inscrições epigráficas e oraculares, muitas vezes presentes em
vasos das dinastias Shang e Zhou. Esta tradição seria retomada no período Han
(séc -2 +2), Tang (séc. 7 +10) e Song (960 + 1279). Este último foi um período
extremamente importante para o desenvolvimento da arqueologia chinesa, tendo em
vista o início de escavações com fins claramente historiográficos que visavam
formar coleções de vasos e cerâmicas representativas sobre as épocas passadas.
Tais coleções foram agrupadas em classificações estilísticas e funcionais até
hoje conhecidas, embora grande parte das listas e objetos tenha se perdido nas
transições dinásticas. Muitas seriam analisadas por artistas da época que
buscavam traduzir o “espírito das culturas antigas”, investigando um possível
processo de evolução das formas estéticas.
Buscava-se ainda correlacionar estes vestígios materiais e
textuais com as datações astronômicas existentes em eficazes tabelas de
registro do movimento dos corpos celestes. Como tal movimento podia ser
calculado num ciclo relativamente regular, algumas datações poderiam
verificar-se exatas, enganosas ou posteriores. Nestes casos, uma análise
comparativa das fontes favorecia o enquadramento de um determinado contexto e a
dissecação de possíveis contradições. Sima Qian organizava sua cronologia
através de um sistema que articulava o movimento de determinadas constelações
com o chamado “ramo terrestre” - um ciclo de doze anos que hoje conhecemos
através do horóscopo chinês. Desta correlação formava-se um grande ciclo de
sessenta anos que espaçava razoavelmente bem a possibilidade de determinados
eventos históricos mesclarem-se numa confusão cronológica. Sima ainda
aperfeiçoou este sistema através da inserção das “marcas dinásticas”, períodos
de duração do reinado de cada soberano que delimitavam um espaço-tempo.
Apesar da razoável precisão deste sistema, Sima Guang (+1019
+1086) criticou-o posteriormente por ele ser preciso apenas em termos
quantitativos. Os tempos de transformação ou de transição dos segmentos
culturais de uma sociedade podem estar em descompasso com estas marcações. A
crítica de Guang é bastante pertinente se aplicada ao contexto das histórias
locais e do relativismo cultural. Afinal, o "tempo" do camponês que
trabalha a terra da mesma forma há séculos pode basear-se numa percepção
completamente diferente do "tempo" que acompanha a esfera política.
Tais transformações devem ser investigadas.
Conhecer e investigar, aliás, é a base da história e da
ética; “[os antigos] Desejando cultivar suas pessoas, primeiro corrigiram seus
corações. Desejando corrigir seus corações, primeiro trataram de ser sinceros
em seus pensamentos. Desejando ser sinceros em seus pensamentos, primeiro
ampliaram ao máximo o seu conhecimento. Essa extensão do conhecimento baseia-se
na investigação das coisas” (Daxue, 1).
Conclusão
A história chinesa apresenta-se como um excelente
contraponto à nossa realidade historiográfica. Calcada num processo de
construção e continuidade desconhecidas no Ocidente, ela serve como referência
para um debate profundo sobre os modos de se “fazer” história. Além disso, a
história chinesa rompe (para os chineses) o paradigma da cientificidade, posto
que para eles ela representa tanto uma ciência quanto um gênero literário cujos
objetivos parecem ser definidos, mas os procedimentos e teorias, variáveis.
Esta condição, totalmente contraditória ao nosso modo de ver, encontra-se
resolvida na oposição complementar do pensamento desta civilização. Logo, sua
versatilidade e potencial devem ser investigados mais profundamente, a fim de
construirmos uma perspectiva historiográfica mais abrangente e rica através de
sua compreensão
Referências
As fontes primárias aqui utilizadas (Lunyu, Daxue,
Zhongyong, Shiji, etc.) podem ser encontradas no original em www.guoxue.com
Último acesso em novembro de 2006.
BEASLEY, W
& PULLEYBLANK, E. Historians of China and Japan. Londres:
Probstain,
1961.
DAWSON,
R.(org.) El Legado
chino. Madrid: Revista del Ocidente,1969.
GARDNER, C.
Chinese traditional historiography. Cambridge: CUP, 1938.
HARD, G.
Worlds of bamboo and bronze. Columbia: CUP, 1999.
JULLIEN,
F. (org.) La référence a l’histoire / Extreme Orient - Extreme Occident.
Vincennes: PUV, 1986 n.9
JULLIEN,
F. La propension de las cosas. Madrid: Antrophos, 2003.
LARRE, C. A percepção empírica do tempo e a concepção da
história no pensamento chinês em RICOEUR, P. (org.) As culturas e o tempo. São
Paulo: Vozes-USP, 1975.
MESKILL, J. (org.) The pattern of chinese history. Lexiton: D.C. & Heath company, 1965.
VANDERMEERSCH,
L. Reflexions sur l’histoire en Chine in Etú des sinologiques.
Paris: PUF,
1994.
WATSON, B.
Ssu Ma Chien, Grand Historian of China. Columbia: CUP, 1958.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.