O que nos torna iguais... - Novembro, 2004



Para os chineses antigos, os seres humanos sempre foram iguais e diferentes ao mesmo tempo. Sua criação é regida por um mesmo princípio universal (Li), mas sua manifestação no mundo material se dá pela imutável regra da variabilidade e da transformação contínua - já tão conhecida no mais antigo de seus clássicos, o Yijing (o Tratado das Mutações). Zhuxi dizia que “nunca se criam duas coisas iguais”, mas que “a menos que haja similaridades e diferenças, expansões e contrações, começos e fins, para revelar suas características a individualidade não pode "sobressair", e a coisa não é realmente uma coisa”.

O ser humano é, pois, um ser dado aos mesmos sentimentos, inclinado aos mesmos princípios. Pensa igual, mas reage diferente de acordo com o contexto, a cultura ou a experiência. Seu corpo é único, e no entanto, situa-se nesta categoria que torna-o o que ele é, esta definição tão clara que é ser humano. Cada um está condicionado por uma propensão (shi) a possuir uma série de virtudes e defeitos que lhe conduzirão a vida, e saber utilizar-se deles é o caminho para a sabedoria. A mente, no entanto, não escapa ao princípio ordenador (Li), e assim segue as trilhas que se abrem para obter o conhecimento que lhe faz transcender. É a busca do Dao, o Caminho, a Via.

Disse o pensador Lu Xiang; "O universo é idêntico à minha mente, e a minha mente é idêntica ao universo”; por isso, "qualquer acontecimento dentro do universo é assunto meu, e qualquer assunto meu é um acontecimento no universo" já que “a minha mente, a mente do meu amigo, a mente dos sábios de gerações passadas e a mente dos sábios de gerações futuras são todas uma só”. Pensamos iguais, portanto? Ou pensamos diferente sobre algo que nos é comum, o sentimento? E esta forma de pensar, que é diferente para cada um, não nos torna acidentalmente iguais?

Esta seria uma armadilha conceitual perigosa, se não fosse uma idéia tão intrigante, que responde bem ao problema de sermos iguais (ou não). Mas posso prová-la? Ou ainda, posso sentir de alguma forma que isso é real?

Então, olhem para a imagem no início deste texto. Ela é uma pintura proveniente da gruta 431 de Dunhuang, norte da China, e foi feita provavelmente entre 618 –712 d.C. (segundo período da dinastia Tang). O que vocês verão é um cavalheiro abaixado, abraçando os joelhos, com a cabeça posta entre as pernas. Ao seu lado, um cavalo calmo vislumbra-o, como se dele compadecesse. De que sofre este homem? Que tormento lhe abate? Não há tempestade, os animais estão calmos (há outros que cercam a figura, mas este trecho da pintura é que me interessa). Ele está só, diante do fundo verde. Para ele, nada existe ao seu redor. Creio que até o cavalo o sabe, e fita-o com o doce olhar de compaixão e amor que os animais lançam aos seus donos queridos. Mas mesmo isso não posso afirmar, pois não sou um cavalo; e duvido muito que o pintor o fosse. Mas ele sabe dizer a nós, através de um cavalo, aquilo que sabemos ser o que ele sente; a solidão.

Esta solidão e a melancolia que transparece no cavaleiro solitário (será ele o próprio pintor?), lança-o a introspecção da forma menos contida que existe. Assume sua dor, e apenas busca no meio das pernas esquecer o mundo- ou, enfrentar o fato de que o mundo o esqueceu. Quanta coragem ele precisa para fazer isso? Disse Mêncio; “O grande homem é o que não perde o seu coração de criança”. Sim, chorar como uma criança. Eis o que o pintor não faz na nossa frente, mas diz de uma outra forma que o faz. Ainda que não chore, pinta a dor, de maneira que possamos entendê-la.

Mêncio parecia estar certo sobre algo; “O modo como o homem perde a sua alma assemelha-se ao modo como se abatem árvores à machadadas. Devastada dia a dia, pode ela conservar a sua excelência? Revivendo dia e noite, no ar sereno da manhã, entre o dia e a noite, a alma sente em certo grau os desejos e aversões peculiares da humanidade; mas essas sensações não são fortes; desvanecem-se, porém, subjugadas pelas ações do homem durante o dia. Isto repete-se continuamente; a influência benéfica da noite não basta para preservar a bondade; e, quando se manifesta essa tensão, a natureza humana torna-se pouco diferente da dos irracionais. À vista disto, pode-se pensar que nunca existiram as qualidades que eu apregôo [a bondade inata da natureza humana]. Mas representará essa condição os sentimentos próprios da humanidade?”. Sim, quem pode resistir a melancolia, a solidão? E, no entanto, não é justamente por senti-las (assim como prazer) que o ser humano é humano? Não é esta a sua humanidade, sua universalidade? Sentir, de um jeito que apenas nós podemos sentir; em maior ou menor grau, intensidade ou importância, mas ninguém a escapa. Nem mesmo o mais frio dos homens- que por sentir renega o sentimento, e tenta trancafiá-lo numa existência “racional” (pois até onde conter o natural é absolutamente racional?).

Há um limite, sim. O excesso do sentir também nos destrói. Nos perde. Este é o clímax do momento. Foi aqui, para não se perder, que o artista imprime na parede sua dor. Transfere para a pedra que lhe serve de painel aquilo que ela - pedra, não sente - mas guarda, que é a energia de sua melancolia.

Segue assim o artista uma máxima lançada por Confúcio que lhe devia ser tão familiar quanto o era por letrados, budistas e daoístas; "Firmeza, resolução, simplicidade, silêncio - isso nos aproxima da humanidade". Ele transmite em silêncio suas idéias, e usa do pincel não para escrever, mas para representar. Manifesta o princípio da dor que é comum aos seres humanos, e imprime-o na parede. Livrou-se dela? Talvez. Mas olhando o triste cavalheiro, lembramos como ela é.

Eis porém a virada que todo o pensar chinês tanto aprecia, em sua eterna razão dialética que nos clama olhar sempre por outra perspectiva...ver o cavalheiro nos faz saber, conseqüentemente, que não estamos sós, que somos iguais, e sentimos o mesmo. Haveria de ser uma razão para acreditarmos na “universalidade da tristeza”, se isso não significasse que aceitar esta envolve admitir também a “universalidade da alegria”, sua oposição complementar natural? Então, há que existir o que há de bom, e isso é universal. Cabe-nos, pois, procurá-lo.

O sempre otimista Mêncio diz-nos: "Considerando positivamente este caso, veremos que carecer do senso da aflição não é humano, como não é humano ser destituído do senso da vergonha e do desdém, do senso da modéstia e da condescendência, do senso da aprovação e da reprovação. O sentimento de angústia é o princípio de clemência; o senso da vergonha é o princípio de justiça; o senso da modéstia, e da condescendência é o princípio da correção; e o senso de aprovação e reprovação é o princípio de discernimento".

Ser sábio, portanto, consiste em sofrer de vez em quando justamente para buscar o que é melhor para todos...ou apenas para si mesmo. Não importa. Fundamental mesmo é a busca. Daí porque nosso cavalheiro (pintor) - ainda que dilacerado - situa-se no ponto exato de onde ele pode mudar tudo a sua volta. Pode encher de cor o vazio do verde a sua volta. Amar pessoas como talvez deseje ser amado, tal como seu cavalo (alter-ego) o ama e o vela.

As Conversações (Lunyu) de Confúcio não nos deixam saber se foi o mestre ou um de seus melhores alunos, Zixia, que afirmou; “Escutei isto: vida e morte são decretadas pelo destino, riquezas e honrarias são conferidas pelo Céu. Desde que um cavalheiro se comporte com reverência e diligência, tratando as pessoas com deferência e cortesia, todos os habitantes dos Quatro Mares são seus irmãos. Como poderia um cavalheiro queixar-se de não ter irmãos?". Creio que não é necessário saber quem disse isso. Apenas busquemos sentir nesta afirmação o elemento básico deste pensar confucionista sobre a melancolia; somos, sim, um só; e no entanto, como podemos achar que estamos sozinhos?

Se o que nos torna iguais - seres humanos - é a melancolia, o que nos traz a redenção é a sabedoria da felicidade e a coragem de querê-la. Este é o caminho de Confúcio, a sabedoria, ao que ele aconselhava; “Retende-a firmemente e ela ficará convosco; se a soltardes, é certo que a perdereis”.



Sugestões de Leitura;

As citações que aqui utilizo estão no Lunyu (Conversações) de Confúcio (séc. vi a.C.) e no Livro de Mêncio (séc. iv a.C.); Zhuxi e Lu Xiang são citados no artigo de Chan, História da Filosofia Chinesa, 1979. Sobre a Arte e o Pensar chinês, ver meus outros artigos O Mundo nos Veios de um Jade - a Arte Tradicional Chinesa e O Dao está no Torno do Oleiro ). O resto (creio) nós podemos compreender por sermos simplesmente humanos (ou não?).

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