Um Novo "Embranquecimento" da História - Maio, 2005

No dia 17 de abril de 2005, o jornal O Globo noticiava a descoberta, na China, de um grupo misterioso de múmias. Apesar das mesmas já haverem sido desenterradas de suas tumbas desde 1977 – a notícia chega-nos, portanto, com quase trinta anos de atraso – o destaque no texto cabia ao especialista americano Victor H. Mair, arqueólogo e literato americano que, tendo realizado recentemente um documentário para a TV sobre o assunto, ficou bastante impressionado com o fato dos corpos apresentarem sinais diversos de uma origem caucasiana – ou seja, seriam cadáveres de “gente branca”, provavelmente européia (ou aparentada) que teriam vivido num período antiqüíssimo da história chinesa.

A surpresa não pára por aí. Os chineses teriam proibido-o de aproximar-se das tais múmias, tratando-as como uma questão de “segurança nacional”. Isso provavelmente se daria – segunda uma teoria proposta por Mair – porque “segundo os especialistas e a própria tradição chinesa, a civilização da China se desenvolveu em isolamento do mundo ocidental. Mas a maioria das pessoas que vivem nas regiões ocidentais da China não se parece muito com os chineses. [...] para elas, as múmias são uma prova de que seus antepassados eram um grupo etnicamente distinto que estava na região bem antes da chegada dos conquistadores chineses” – o que significaria, portanto, que “as múmias louras de Taklimakam podem ser o indicador de que civilizações caucasianas, européias, estiveram em regiões da Ásia antes dos povos chineses, considerados os mais antigos do planeta. Há referências na literatura clássica chinesa e generais altos de olhos claros que batem frontalmente com as características físicas dos chineses. E quem olha as múmias descobertas em Xinjiang a partir de 1977 realmente pode pensar que o passado esconde algo”.

Este tipo de notícia seria realmente interessante e curiosa, tanto do ponto de vista leigo quanto acadêmico, se não estivesse contida em suas linhas uma mensagem bastante sutil, poderosa – e no entanto perigosa – que se resume de modo conciso numa idéia bastante incisiva; a China, desde sua origem, teria "conhecido o homem branco". E talvez, graças a ele, a China seria o que é hoje em dia – uma civilização milenar, desenvolvida, e culturalmente rica.

Se esta última afirmação pode parecer absurda e até chocante, com matizes “conspiratórias”, é provavelmente porque estamos acomodados em nosso “modo de ser” que é, em essência, o do próprio homem branco-ocidental. Não nos incomoda afirmar que os chineses podem descender ou estar fortemente vinculados em sua origem a nossa “raça” – o que seria uma comprovação indireta da força de nosso gênio criativo e civilizatório, que culminou com a dominação do mundo nos séculos XIX-XX. Mas nos incomoda profundamente saber que, talvez, quase todas as etnias do mundo tenham vindo, num passado distante, da África e da Ásia, e que descendemos dos “negros” e dos “amarelos”; que a China foi, durante séculos, a civilização mais avançada tecnicamente em todo o mundo; e que hoje, quando descobrimos que os chineses compõem o maior povo do mundo, a língua mais usada, uma das maiores economias, uma das maiores forças militares, a cultura mais antiga, etc....o Ocidente assusta-se, teme, toma o Oriente como sede de uma grande ameaça (que ele nem sabe bem qual é, senão a de ver ruir o seu próprio modo de vida), revigora os preconceitos, estimula a desconfiança e busca auto-afirmar-se recauchutando uma meia dúzia de antigas teorias sociológicas e históricas que confirmam a sua anuência intelectual, a sua preponderância como sociedade coerente perante esta “gente estranha”.

É neste contexto que a citada reportagem se insere. Com a retomada de seu poder econômico e político, China e Índia são sociedades que têm sofrido uma nova investida por parte daqueles que buscam “embranquecer a história”. “Embranquecer”, no caso, significa tentar provar, de algum modo, que tais civilizações tem algo à dever ao homem branco, e por isso devem buscar situar-se na sua devida posição histórica – a de cultivadoras de uma herança do Ocidente. Seus desenvolvimentos históricos têm de estar intimamente ligado à alguma possibilidade material, tecnológica ou intelectual “branca” – o que lhes teria gerado um certo sucesso - em contraposição aos pontos nos quais são falhas, este sim, autenticamente autóctones.

Esta postura intelectual e acadêmica vem novamente resgatar teorias antigas cujo objetivo fundamental era o de submeter o Oriente a uma série de condições ideológicas desfavoráveis, pejorativas e confusas. O chamado classicamente “Orientalismo”, muito bem analisado por Edward Said (1996), parece estar retomando um certo vigor, principalmente neste caso chinês. Mas para que possamos entender corretamente o caráter destas nossas afirmações, devemos buscar no processo de construção do Orientalismo e da Sinologia a origem desta prática de “embranquecimento” da História, e como ele se aplica a um caso tal atual como o de Mair e das “Múmias brancas da China”.

Alguns casos clássicos do Orientalismo

A análise de Edward Said proposta em seu livro “Orientalismo – a Invenção do Oriente pelo Ocidente” (1996) nos proporciona uma visão adequada do processo de construção da história afro-asiática pelos europeus ao longo dos séculos XIX-XX, e que podemos compreender como a síntese desta proposta de “embranquecer” a história. A teoria sobre o qual se assentava o método de estudo e classificação das civilizações orientais consistia antes de tudo em produzir meios de conhecer, criar e fomentar a aplicação de recursos pelos quais fosse possível subjugar estas sociedades e suas idéias. Tais medidas, de caráter tanto acadêmico quanto prático (pois muitos destes especialistas tornavam-se consultores em assuntos administrativos e coloniais) transformavam o exercício do orientalismo numa “antropologia ao avesso”; as culturas passavam por um processo de investigação relativamente “sério” e direto, mas que não tinha outro objetivo senão o de comprovar uma série de preconceitos já existentes e instaurados, justificando o processo de dominação pela concepção latente de uma superioridade intelectual, racial e moral que a Europa possuiria sobre estas civilizações.

Por conseguinte, o exercício do Orientalismo transformou-se numa grande categorização e hierarquização de grupos culturais, praticando-se os mais daninhos tipos de associação, deturpação e vilipêndio. Todo e qualquer expediente válido para a desconstrução irresponsável da coerência histórica destes povos tomou corpo, e teorias desconcertantes ganharam um espaço inaudito na ideologia ocidental-européia, fortalecendo e corroborando os mais diversos tipos de preconceitos sobre as sociedades africanas e asiáticas. Criou-se, ainda, um imaginário confuso e pouco permeável a mudanças, no qual são estabelecidas fronteiras estranhas as nossas capacidades reais de observação da realidade. Tidos como racionais, nossos padrões não nos permitem enxergar contradições flagrantes em nosso próprio discurso histórico, criando uma barreira psicológica difícil de ser quebrada, e não sem custo. Alguns casos clássicos de deturpação histórica gerada por este orientalismo antigo podem nos dar uma idéia do que estamos afirmando.

- A “desafricanização” do Egito: Qual estudante moderno lembra, realmente, que o Antigo Egito localiza-se, de fato, na África? Ou melhor, qual estudante sente a civilização Egípcia como produto do continente africano? O estudo do Antigo Egito foi construído, desde o início, sob uma tentativa assumida de retirá-lo do contexto africano (uma grande civilização antiga, tão avançada, não poderia estar presente na África) e de desvalorizar a atual sociedade egípcia (de origem árabe), presente neste espaço,que não teria conseguido “dar-lhe nenhuma espécie de continuidade”, encerrando sua riqueza cultural num passado obscuro e ignorado. Por conta disso, o Antigo Egito foi desde cedo trabalhado, fundamentalmente, como uma civilização mediterrânica e oriental, de costas voltadas para o resto do continente africano. Os egípcios foram transformados em pessoas de pele pálida e olhos azuis (tal como aparece nos filmes épicos produzidos por Hollywood), e suas realizações culturais modificadas para um conjunto de conteúdos válidos para consulta (caso contrário, como explicar que alguns notáveis pensadores gregos tenham bebido de sua fonte antes de produzirem seus brilhantes trabalhos filosóficos e científicos?).

Esta contradição flagrante pode ser percebida se realizarmos um pequeno e simples exercício que costuma provocar um ligeiro mal-estar nos ouvintes desavisados; se trocarmos a palavra “Egito” por “África”, como ficaria uma narrativa já bastante conhecida como a da vida de Jesus ou de Moisés? “José, Maria e Jesus fugiram de Herodes e se abrigaram na África”, ou, “Moisés foi criado como filho de um grande soberano africano, dono de um império que havia submetido o povo escolhido...”, etc. Imediatamente alguns leitores irão separar a imagem que possuem do Egito – branco, asséptico e notavelmente desenvolvido – do que eles entendem ser o restante da África – um continente de povos negros, atrasados, primitivos – e afirmar que a narrativa não está correta, ou pouco específica. De fato, as pessoas preferem às vezes acreditar que o Egito não é na África do que acreditar que foi na África que nasceu o Egito.

- As ruínas do Zimbábue; Este tipo de procedimento foi igualmente aplicado quando se descobriram as ruínas do Grande Zimbábue, localizadas numa área próxima ao centro da África. Motivo de controvérsia na transição dos séculos XIX-XX, a impossibilidade de admitir-se que uma civilização tecnicamente desenvolvida houvesse surgido no meio da África – sem nenhum contato com civilizações européias – fez surgirem as mais esdrúxulas teorias, que durante muito tempo foram empregadas, porém, com fins ideológicos claros de dominação. Uma das primeiras - e mais famosa delas - consistia em admitir que aquelas eram as ruínas perdidas do palácio da (branca) Rainha de Sabá ou ainda, a sede das Minas do (branco) Rei Salomão! Outra, ainda, afirmava que as ruínas eram obra de colonos fenícios...E apesar dos inúmeros estudos realizados posteriormente (que provaram a falsidade destas primeiras teorias e, conseqüentemente, a autenticidade de uma cultura negra por trás de sua criação), nas décadas de 60 e 70 produziam-se ainda cartazes turísticos cujo tema principal era o encontro com “mais uma parte da história bíblica”, que comprovava a “anuência e o espírito empreendedor do homem branco” desde tempos imemoriais.

- A Representação de Buda; A Índia, civilização milenar e complexa, sofreu por parte dos europeus os mais diversos tipos de apropriação indébita. Inicialmente, predominou o uso corrente e maciço das teorias indo-européias que buscaram criar todo o tipo de mecanismo para comprovar a idéia de que raças arianas (= brancas) haviam dominado, em um tempo remoto, grande parte da Índia, Pérsia, Rússia e Europa. Onde teriam mantido “sua pureza racial”, vingaram. Onde teriam “se misturado” com populações nativas (como no caso da Índia, com as ditas populações “drávidas”, ou autóctones), elas teriam “degenerado em populações de constituição fraca, inferiores intelectualmente, cultoras de religiões estranhas e possuidoras de ciências primitivas”. Ainda assim, o “potencial ariano” poderia ser vislumbrado nos belos hinos dos vedas, numa acurada e complexa organização social, e num distante parentesco com a língua e com a cultura greco-romana.

Por conta destas interpretações pouco eficazes num entendimento sério da história indiana, alguns disparates foram tomados como medidas sinceras de teoria e explicação para a cultura indiana. A mais famosa delas refere-se a tese da representação imagética de Buda, criada pelo especialista francês Foucher. Foucher afirmava categoricamente que não existia nenhuma representação de Buda antes da chegada da arte grega à Índia (na época de Alexandre, o grande); que esta se devia totalmente ao gênio grego, e que a ausência de uma imagem tipicamente indiana de Buda anterior pautava-se em um sentimento religioso similar ao judaico-cristão-islâmico que os impedia de fazê-lo!!!! Como ficou comprovado posteriormente, Foucher e seus seguidores simplesmente não conseguiram identificar e/ou distinguir várias representações de Buda feitas dentro dos cânones tradicionais da arte indiana, e as ignoraram em suas análises. Hoje, no entanto, ainda encontramos vários autores repetindo essas afirmações sem nenhum receio de estar dando continuidade a um encadeamento de anacronismos berrantes, que colocam a civilização grega no topo de uma revolução oriental antiga. Na verdade, veremos que a questão da leitura artística foi utilizada desde cedo como uma espécie de índice civilizacional e cultural. Hover, por exemplo, afirmava que os indianos tinham uma tendência natural a produção de obras “amórficas” (carência de uma forma definida), apesar de suas produções soberbas (Arte Indio, 1927:18); Martin, que a arte indiana tratava-se de uma “fantamasgoria teatral” [...] “animada por um certo frenesi”, e no entanto, “original” (Art Indien et Art Chinois, 1926). Esses pequenos manuais sintetizam em poucas linhas o tom da análise orientalista do momento.

Creio que estes exemplos que acabei de selecionar podem nos dar uma ligeira idéia do que se passou no processo de constituição da sinologia, que não esteve de modo algum imune a este movimento fantástico de criação que era a fantasia orientalista. Achei necessário construir uma base para que pudéssemos entender que esta era um expediente muito bem articulado dentro da proposta de embranquecer a história e subjugar as culturas africanas e asiáticas a um crivo delimitador de espaços, onde a criatividade autóctone fosse minimizada em prol de um discurso ideologicamente marcado pelo eurocentrismo. Analisemos, pois, o caso da China, de modo que possamos compreender a dificuldades pelas quais o estudo de sua história passa até os dias de hoje.

As Mistificações da Sinologia

O estudo da China sempre foi, particularmente, problemático para os especialistas ocidentais. Fascinados por uma civilização que lhes fornecia produtos diversos cujos métodos de fabricação foram desconhecidos por um bom tempo - como foi o caso da seda, do papel, da porcelana, da bússola e da pólvora - e que possuía uma história razoavelmente bem documentada e organizada, os acadêmicos europeus sentiam-se desafiados a desconstruir uma cultura tão bem articulada em seu imaginário embranquecedor. Como afirmar que esta era uma civilização atrasada ou inferior se algumas de suas descobertas haviam permitido os europeus a conquista do mundo? Como dizer que sua história era falsa, se algumas vezes ela parecia ter sido feita com mais zelo e cuidado que a própria história da Europa? Onde, então, encontrar as brechas para faze-lo?

A verdade é que a sinologia, de início, foi quem propôs tais desafios ao Ocidente. Como se podia explicar, por exemplo, um sábio como Confúcio, que em seus Diálogos (Lunyu) afirmava – seis séculos antes de Cristo – que “não se devia fazer ao outro o que não quisesse que lhe fosse feito”, ou, “que se devia amar a todos sem distinção”? Poderia Deus ter se comunicado com os chineses antes de tê-lo feito com os hebreus? Mas Confúcio sequer falava de Deus! Como sair dessa armadilha? Do mesmo modo, a famosa Querela da cronologia, ocorrida no século XVIII, colocou os estudiosos ocidentais em polvorosa. A Querela surgiu quando foram realizados os primeiros estudos e traduções sérias dos livros chineses de história, que apresentavam uma (aparentemente) sólida cronologia, bastante antiga, que levava o alvorecer da civilização chinesa a um período anterior ao de Adão e Eva! Tal revelação deixou chocados muitos especialistas da época, que acreditavam de algum modo sincero numa mistura de racionalidade de suas próprias ciências com a fé cristã.

Justamente estas dificuldades – oportunamente, geradoras de novas possibilidades – fascinaram autores como Voltaire que afirmava, com entusiasmo, a autenticidade da cultura chinesa e denunciavam as tentativas de enquadra-la num racionalismo eurocêntrico: “Como é que nos atrevemos, nós, cá do fim do Ocidente, a disputar encarniçadamente e com torrentes de injúrias por deslindar se houve ou não catorze príncipes na China antes do imperador Fuxi, e se Fuxi viveu a três mil ou dois mil e novecentos anos antes da era vulgar? Engraçadíssimo que dois irlandeses se pusessem a brigar em Dublin por saber quem foi, no século XII, o dono das terras que hoje me pertencem. Não é evidente que deveriam deixá-lo a mim, que tenho os arquivos em mãos?” pois “Os chineses estão acima de todos os outros povos da terra porque suas leis, seus costumes e a língua falada pelos letrados não mudaram há mais de quatro mil anos. E, no entanto, a China e a Índia foram sempre omitidas de nossas pretensas universais, embora sejam as duas nações mais antigas de todas as que subsistem ainda hoje, as que possuem os países mais belos e mais vastos, as que inventaram quase todas as artes antes que tivéssemos conhecido algumas” (Dicionário Filosófico, verbete China). Tais comentários – em parte precisos, em parte apenas lisonjeiros – deixam entrever, por conseguinte, que nem sempre buscou-se obliterar um estudo aprofundado e menos preconceituoso da Ásia e da África (embora a admiração de Voltaire fosse especificamente sinológica). Mas a atividade colonial prescindia de um outro tipo de produção, e as atitudes contestatórias seriam em breve postas de lado. Era necessário, antes de tudo, embranquecer a história, e justificar o nascente imperialismo. No mesmo século XVIII, afinal, um jovem general chamado Napoleão iria invadir o Egito e revolucionar a idéia de estudar as culturas orientais...

Os modelos criados para a China precisavam ser, portanto, mais específicos e complexos. Um dos mais eficientes mecanismos de desvalorização da história chinesa foi à crítica a autenticidade dos documentos. Num processo exigente de qualificação e análise de fontes documentais – às vezes inexistente na própria Europa – alguns estudiosos iniciaram uma laboriosa exegese (tal como Ernest Renan fez com a Cultura Árabe) de textos chineses, exigindo-lhes certificados de garantia impossíveis de serem obtidos. Indicadores como “proveniência”, “transmissão”, “aparência” eram utilizados mais com fins detratores do que propriamente esclarecedores. Muitos escritos autênticos foram assim desqualificados ou tidos como falsos antes de virem a se tornar relíquias que subverteram sua importância material no início do século XX. Este procedimento, no entanto, aliviou definitivamente os estudiosos de ter que explicar a querela da cronologia. Fossem eles religiosos ou não, uma parte substancial dos trabalhos sinológicos produzidos pelos europeus do século XIX e XX passaram a situar a aurora da civilização chinesa na data específica de –841 como a única realmente comprovável na mais “profunda antiguidade chinesa”. O argumento principal destes trabalhos baseava-se numa afirmação do Shiji (As Recordações Históricas de Sima Qian, do período dos séculos II-I a.C.), onde o autor declarava ter dificuldades em validar a qualidade dos documentos e datas de períodos anteriores. Era a salvação dos orientalistas! Um “nativo” finalmente admitira que os períodos mais obscuros de sua história eram “lendários”. Hiperbolizando a importância desta declaração, justificava-se toda uma construção histórica. Hoje, a Arqueologia tem comprovado que as afirmações de Sima não apenas são verdadeiras no que se refere a data de –841 como o são, também, para uma parte substancial das cronologias anteriores a ela. Mas recorrer ao velho mecanismo de fazer pensar que a China não é a civilização mais antiga do mundo têm, inconscientemente, aliviado muitos leitores de história cujo conhecimento estruturou-se em torno de uma possível antiguidade mesopotâmica (“que é enfadonhamente oriental, enfim - mas é ‘branca’, ao menos”).

Do mesmo modo, foram praticados todos os tipos de associações irresponsáveis, grosserias e superficiais com a arte, ciência e imaginário chinês. A Índia, já subjugada pela teoria indo-européia ariana, serviu de escopo para formulações apelativas que tornavam a China sua “herdeira intelectual” através das mais falhas comparações. Surgiu, assim, o modelo acadêmico que defendia a idéia de como grande parte da cultura chinesa se devia à indiana e – indiretamente – à ariana. Tratava-se de afirmar que tudo vinha da Índia, e fora aproveitado ou transformado pelos chineses.

Encontramos este tipo de modelo claramente em clássicos da sinologia como Histoire generale de la Chine, de Henri Cordier (1921), onde fica demonstrado – como todo o tato e cuidado - as relações profundas entre a cultura indiana e chinesa; idéia essa provavelmente desenvolvida a partir do livro anterior de Guillame Pauthier, Chine ou Description historique, geograpique et litteraire de ce vaste empire aprés les documents chinois (1871), que defende categoricamente não só a conexão entre as duas civilizações como a “herança” que ambas teriam herdado da Caldéia (p.20-22). A idéia da origem mesopotâmica, aliás, seria mais bem trabalhada, ainda, no campo das artes. Como se tratava de ratificar que a arte indiana era devedora dos gregos (e não se podia cair em contradição, apesar de se fazê-lo todo o tempo), afirmava-se conseqüentemente que a China havia não só absorvido os principais caracteres mesopotâmicos através da Índia num tempo remoto como, em seu desenvolvimento particular, ela dava um testemunho próprio de como esta arte poderia ter se desenvolvido se tivesse sobrevivido em sua região original! Se tal afirmativa chega a ser um tanto estarrecedora, em 1963 publicava-se um livro de divulgação de arte chinesa (A Arte Chinesa, de G. Pischel) em que autora – a par de um excelente trabalho de pesquisa, seja dito – repetia o velho bordão de “como a arte chinesa devia sua origens a mesopotâmia, etc”. A novidade consistia na admissão – ao menos – que o “gênio chinês” havia dado a esta arte características autênticas, originais e inventivas, próprias de sua sociedade.

Essa complexa relação Mesopotâmia-Índia-China se desdobrou em vários campos do estudo sinológico, e também foi utilizada para resolver os problemas cronológicos anteriormente citados. No livro Ancient China Simplified (1908), por exemplo, E. Parker inicia o texto introduzindo a idéia de que a “história chinesa começou a partir de –841”, apesar de – numa citação sintomaticamente ambígua – ele afirme, logo a seguir, que o modelo de estabelecimento no espaço empregado pela civilização chinesa, seguindo o curso de um rio, seguiria o mesmo padrão encontrado nas sociedades dos Nilo e do Eufrates...Ou seja, fica a critério do leitor decidir de os chineses fizeram tal como os mesopotâmicos, ou se fizeram o mesmo que os mesopotâmicos. Mas em ambos os casos parecemos nos encaminhar para um referencial que seria “nosso” – o Egito e a Mesopotâmia – em detrimento de um possível modelo chinês que talvez fosse tão ou mais antigo que seus congêneres.

Isso fica ainda mais claro quando lemos alguns outros trabalhos realizados na mesma época. The Ancient History of China, de F. Hirth, por exemplo, foi um dos manuais mais consultados na virada dos séculos XIX-XX. Hirth já dividia seu trabalho em uma história da “Eras fabulosas da China” – época que antecedia a citada data de –841, na qual nada podia ser comprovado (apesar de inúmeros vestígios materiais indicarem a existência ao menos da dinastia Shang e do Período Zhou anteriores a esta data), e as épocas posteriores a –841, já devidamente conhecidas por uma série de documentos previamente autenticados (a época “histórica”, de fato). Herbet Giles, renomado sinólogo da época, repetiria esta informação (tal como Parker) no seu Civilization of China (1911), com um selo de garantia proveniente do seu acurado conhecimento em língua chinesa, o que lhe concedia uma “autoridade ímpar”, neste contexto, para comentar o assunto.

A China, portanto, transformara-se numa “herdeira degenerada” de um vasto saber trazido do Ocidente, via Índia, que lhe havia permitido sobreviver às intempéries do tempo, mas que estancou em sua evolução devido a sua incapacidade de fazer este mesmo saber desenvolver-se. Eis a explicação simplista que é apresentada sobre a origem de diversos saberes chineses. Enquadrando-os numa classificação arbitrária, irreal, e apenas aparentemente coerente, geraram-se os mais diversos exemplos desta prática perversa; a teoria wuxing (a teoria das cinco fases ou agentes, presentes na ciência chinesa) é uma cópia imperfeita da teoria pitagórica, provavelmente por um erro de tradução indiano; a arte chinesa nunca produziu grandes templos ou palácios porque nunca conheceu uma arquitetura desenvolvida como a ocidental; a arte chinesa não sabia reproduzir corpos, nem conhecia a noção de profundidade; a língua chinesa, ideogramática, era primitiva, pois não evoluíra para um alfabeto (apesar de Leibinitz ter defendido o seu potencial universalista); a música chinesa era feia, desarmônica, pois não compreendia uma escala de sete tons como a ocidental...enfim, a lista de preconceitos e desenganos é enorme, e poucos especialistas de dispuseram a se contrapor a ela. Esta idéia pode ser resumida na afirmação de P. Laffite, que traduz a idéia de que a história chinesa (antes de Confúcio) é toda “feitiche e misticismo”, podada assim de um caráter devidamente realístico em seus períodos mais antigos (Considerations generales sur le ensemble de la civilization chinoise, 1900).

Devido a esta aparente incapacidade dos chineses em evoluírem sua “herança branca da Caldéia”, a China tornou-se, por conseguinte, a reprodução de uma grande sociedade imóvel no tempo. Quando Herbert Giles estuda os costumes e hábitos pitorescos destes curiosos orientais em Chineses Skecthes (1875), trata-os literalmente como um povo que parece fazer as mesmas coisas desde sua mais remota ancestralidade. Este ponto de vista é corroborado por outro autor bastante difundido na mesma época, Isaac Taylor Headland, que escreveu Court Life in China e Home life in China. A vida cotidiana chinesa, em todas as suas “esquisitices”, é apreendida pelo olhar atento de um ocidental interessado em “compreender” suas singularidades e provar a sua tese de que estes mesmo chineses, são, de fato, um povo bastante “curioso” e “diferente”, mas nem por isso menos humanos. Apenas um tanto “irracionais e primitivos”.

Estas idéias difundiram-se como uma terrível praga no campo da sinologia. Com a autoridade concedida por este discurso engajado numa suposta supremacia branca do saber, E. Nicola Siri podia afirmar, em seu manual datado de 1944 (La Civilizacion China, p.97) que “pese o transcurso dos séculos, pouco tem variado no aspecto da arquitetura chinesa. Podemos dizer isso de suas cidades, que estancaram em uma etapa da historia sem haver avançado um só passo pelo caminho do progresso urbanístico. As vilas e aldeias vivem em desordem desde a época primitiva [...] onde vivem milhões de seres humanos na mais precária condição social e higiênica que se pode imaginar e sem haver logrado nenhuma daquelas elementares conquistas urbanísticas que fazem das cidades européias centros onde o povo pode levar uma vida cômoda e saudável”. Isso numa China que é “Uma amostra completa do extravagante e do exótico” (p.102), onde, numa dessas cidades, um “velho cego executa uma melodia monótona e horrível [...] em troca de algumas moedas” (p.103). Fiz questão de pinçar estas passagens para que os leitores possam ter uma idéia do tom da obra de Siri. Os detalhes sobre o cotidiano chinês, narrados pelo autor, são de uma terrível carga pejorativa. Não que a China isso fosse totalmente irreal, pois o país estava passando por dificuldades tremendas, que com certeza haviam diminuído a qualidade de vida (lembremos, é a época da segunda guerra); a questão é de como o autor emprega os verbos corretos para designar que a vida dos chineses sempre foi assim, e que desde da escala macro-cósmica (a arquitetura) até o mais simples aspecto do cotidiano (o velho músico cego), tudo estaria em desordem, em caos, em desarranjo.

Deste modo é que V. Barthold, em 1947, se sentirá seguro para escrever seu La decouverte de l’Asie; histoire de l’orientalisme en Europe et Russie, uma longa história de como o Ocidente descobriu e modelou a Ásia segundo seu critério histórico – englobando a China, Índia, sudeste asiático e mundo árabe numa única obra! Poderia ser diferente?

Reações

A questão que se insere neste ponto, pois, é de como se estruturará, dentro da sinologia, um conflito entre aqueles que estavam ideologicamente engajados em submeter à China uma leitura hierarquizante e aqueles que, pautados em critérios cientificamente mais coerentes e racionais, investigavam esta civilização dentro de seus próprios padrões culturais.

A descoberta de novas evidências textuais e arqueológicas não permitia mais ao estudioso tomar uma posição simplesmente eurocentrista e pré-determinada, com o risco de ver falir ou cair no ridículo suas afirmações. Assim - contra aqueles que simplesmente ignoravam a autenticidade da história chinesa, desprezando os novos achados e submetendo-a a uma leitura acachapante - surgem reações acadêmicas conscientes da importância e da antiguidade da cultura chinesa.

O sinólogo Richard Wilhelm, por exemplo, nos dá uma excelente noção sobre esta postura crítica no seu livro História da China (1911), quando afirma; “O início da civilização chinesa está, como o início de toda civilização, envolvida na fábula. Deve-se poupar a narração das velhas lendas, aonde uma época posterior foi buscar as suas próprias origens. Não se deve também discutir o problema, já tantas vezes debatido, se os chineses vieram, com a sua cultura, do leste, como rebentos dos antigos sumérios, ou se eram autóctones, que criaram a sua civilização no próprio 'habitat'. Se se debatesse tudo isso dar-se-ia uma demonstração do desconhecimento da essência da civilização, a qual não é uma mercadoria que possa ser importada pronta de um outro país, e, sim, uma formação orgânica que é profundamente dependente das questões geográficas e climatéricas. Por outro lado, sabe-se também, hoje, que não existe nenhuma civilização autóctone, no sentido em que ela se possa desenvolver dentro de um círculo hermético, sem contato com o resto do mundo, e tendo, ao mesmo tempo, um passado atrás de si. Toda civilização faz-se, como tudo o que tem vida, de uma influência e penetração mútua de duas camadas opostas proto­civilizadoras, da qual uma tem o papel do elemento paterno, vagando livremente no tempo. Como civilização, também a chinesa deve ser vista no seu limiar, pelo choque e pela influência recíproca de formações primitivas matriarcais e patriarcais. [...] Parece, no entretanto, que a idade da pedra na China atinge muito mais as profundezas históricas que a dos outros países. Isto corresponde a um sinal estrutural inato em toda a civilização chinesa, o qual demonstra que as suas origens se voltam para uma era da humanidade muito mais remota que as da moderna cultura européia. Essa idade arcaica se evidência pela História afora, no ritmo dos acontecimentos. Com isto não se quer dizer que a cultura chinesa seja mais primitiva e imperfeita que a cultura oriental. A natureza parece levar certos problemas vitais, por vias diferentes, à mesma solução. E, muitas vezes, acontece que o primeiro caminho formado se completa por um outro mais recente, sem deixar aquele de lado”. Wilhelm, que acompanhava as descobertas arqueológicas chinesas de perto, escreveu seu texto dez anos antes de Cordier, trinta e três anos antes de Siri, cinqüenta e dois anos antes de Pischel, e mesmo assim, até hoje, alguns escritores insistem nesta tese mesmo que a única base sobre a qual possam se assentar seja o seu desconhecimento e a ignorância da evolução de certos campos do conhecimento científico.

O Sinólogo francês Marcel Granet denunciou a dificuldade em estudar a História da China em função das teorias “embranquecedoras” que teimavam em tentar dirigir o problema do passado chinês: [este passado] “depende da concepção geral da história da Ásia. Ela deriva, em grande parte, das teses sustentadas por Terrien de Lacouperie sobre a origem ocidental da civilização chinesa. Essas teses não se fundamentam em nenhum fato de ordem antropológica, mas simplesmente no estabelecimento de identidades sino-elamitas, como, por exemplo: Houang-ti não era outro senão Nakhunte, pois Houang-ti é, às vezes, qualificado de "senhor de Hiong (Yeou-hiong)"; [...] Nenhum sinólogo aceita, hoje em dia, as identidades sino-elamitas de Terrien de Lacouperie. De resto, essas identidades lingüísticas não provariam coisa alguma quanto à raça dos invasores da China. Entretanto, a teoria da origem ocidental dos antigos Chineses ainda domina o ensino. No máximo, limita-se a fazer vir os Chineses do Turquestão e a dar como causa de sua invasão (hipotética) um fato (relativamente hipotético), a saber: o ressecamento progressivo da Ásia central. [...] Como a antropologia e a etnografia, a arqueologia pré-histórica que, na China, ainda está no começo deve desconfiar das hipóteses imaginativas” e segue; “O problema das origens chinesas continua inteiro. Poucas esperanças advêm do estudo dos textos, mas pode-se esperar muito da arqueologia e, sobretudo, da arqueologia pré-histórica. É de se desejar que as escavações se inspirem, de agora em diante, em preocupações unicamente científicas e que sejam abandonados todos os preconceitos que dominam, ainda, as interpretações. Um primeiro fato parece seguro: a civilização no Extremo Oriente é antiga. Um segundo fato parece bastante verossímil: há poucas possibilidades de que essa civilização seja rigorosamente autônoma. A idéia de uma China que teria vivido isolada do mundo nas épocas históricas já caiu em desuso há muito tempo. Mas se falamos muitas vezes das migrações dos primeiros Chineses, temos ainda tendência em acreditar num isolamento relativo da China dos tempos antigos. Se nos fiássemos na história tradicional, esse isolamento somente teria terminado no início da era cristã. Desta época dataria, com a abertura das rotas comerciais, o período dos contatos verdadeiros, das influências ativas, das invasões freqüentes. Até então, a história da China teria sido feita unicamente pelos Chineses. Não há nenhuma razão para se acreditar que a raça chinesa (se pudermos falar de uma raça chinesa) não esteja no mesmo local, desde uma antiguidade muito remota. Não há, inversamente, nenhuma razão para se achar que a China tenha conhecido menos invasões e sofrido menos influências na antiguidade do que nos tempos modernos. A crítica mais grave que se pode fazer às hipóteses relativas a esses contatos é que, até agora, sempre foram procurados nas mesmas direções e concebidos no mesmo modelo. É possível que as levas de povoamento procedentes do oeste, pelo norte e pelo sul, tenham desempenhado um grande papel na história da China antiga. Mas também, poderiam ter-se exercido influências muito diferentes. Nem a estepe, nem a montanha, nem mesmo o mar, eram, nos tempos pré-históricos, intransponíveis. (Civilização Chinesa, 1928). Com coragem, pois, Granet admitia que muito ainda precisava ser buscado, mas que todo e qualquer estudo que tivesse como ponto de partida a idéia pré-concebida de uma anuência ocidental e/ou isolamento chinês seria falha.

Uma das melhores provas desta capacidade crítica acadêmica foi dada pelo estudioso inglês Joseph Needham, que na década de 50 deu início a coleção de livros Science and Civilization in China. Com o único propósito inicial de investigar o que era a ciência chinesa, quais eram suas criações e o seu desenvolvimento histórico, Needham começou a vislumbrar um mundo inaudito para o espírito científico ocidental; a China havia sido, no passado, uma das principias fontes de geração de conhecimento em todo mundo, e uma parte substancial do desenvolvimento alcançado pela civilização européia no período dos séculos XVI-XVIII deveu-se a um sem número de descobertas chinesas. Estas incluíam os mais diversos domínios, desde a física, matemática, química, astronomia, etc. num conjunto que desmontava por completo as esperanças de uma possível origem “branca” da sociedade chinesa, posto que reafirmavam sua originalidade criativa e seu espírito investigativo.

As mudanças promovidas por este debate acadêmico encontraram eco nos movimentos sociais e políticos das décadas de 60 e 70 que apoiavam a idéia de uma igualdade cultural e humana entre as civilizações. Imbuídos de um “espírito coletivista”, as sociedades européia e americana promoveram uma reformulação dos seus procedimentos políticos e ideológicos para com asiáticos e africanos, buscando adequar-se ao dificultoso processo de libertação colonial que gerava a construção de um novo mundo envolvido por disputas entre capitalistas e comunistas.

A experiência da guerra-fria, do pós-colonialismo e a revolução do espírito científico de século XX pareciam ter assentado, por conseguinte, a idéia de que seria possível - até certo ponto – ao Ocidente relacionar-se com a Ásia em condições intelectuais e sociais mais equânimes. Com a derrocada dos sistemas socialistas no final na década de 80, no entanto, a política mundial deu uma nova reviravolta, constatando um contexto de crise na produção, nos empregos, seguida de novos movimentos migratórios em direção as antigas “metrópoles coloniais” e do ressurgimento poderoso das nações asiáticas no plano da economia. Tais condições fizeram com que a Europa e os Estados Unidos revigorassem, novamente, um amplo movimento de rejeição a estas culturas, traduzidas pela ascensão de movimentos neonazistas, do estigma do terrorismo oriental, dos bloqueios econômicos, do resgate da fé cristã, entre outras medidas. A retomada do movimento acadêmico que busca “embranquecer” a história, pois, situa-se dentro deste plano, que abordaremos na parte a seguir.

A elaboração dos “Novos” Paradigmas de Ocidentalização

A década de 90 no final do século passado assistiu este período de transformações com uma certa apreensão. Práticas racistas, sexistas e de intolerância religiosa – que se acreditavam devidamente abandonadas e obsoletas – começaram a ser requentadas em um estranho processo de afirmação do Ocidente sobre a Ásia e a África, transparecendo nitidamente nos primeiros anos do nosso atual século numa série de políticas públicas altamente polêmicas. As escolas da França iniciam, por exemplo, um combate ao uso de lenços e véus que pudessem cobrir os cabelos das meninas islâmicas nas escolas públicas; eminências políticas da América e Europa passam a afirmar, ocasionalmente, que a colonização da América do Sul e Central trouxe uma certa evolução social, material e tecnológica às civilizações indígenas, propiciando-lhes um significativo “bem-estar”, como do mesmo modo recusam-se a pedir desculpas pelos crimes e atrocidades gerados pela dívida histórica da escravidão africana; o governo americano – personificado na figura emblemática do presidente George W. Bush – retoma o discurso de uma “missão divina” de libertação de povos oprimidos e da necessidade de levar a democracia aos quatro cantos do mundo numa cruzada militar e econômica sem precedentes, determinando inclusive a existência de um “eixo do mal” formado por países ameaçadores da liberdade (grande parte deles concentrados na Ásia).

Ora, essas são medidas genéricas deste processo que queremos ilustrar, e que podem ser facilmente acompanhadas na mídia, apesar do seu caráter fragmentário. Importa-nos compreender a estrutura por trás da formulação destas políticas.

Michael Apple, num ensaio recente intitulado A Educação e os novos blocos hegemônicos (2004), identifica claramente a ascensão, nos meios educativos, dos grupos que ele classifica como neoconservadores e populistas autoritários, responsáveis pela releitura de práticas ideológicas ultrapassadas – mas de grande potencial apelativo – que tem sido utilizadas com fins assumidamente políticos e sociais. Com a diminuição da influência teórica da esquerda socialista/comunista nestes meios, e com o desenvolvimento rápido das redes de comunicação, o ressurgimento de uma educação doutrinária – ao invés de crítica e formadora – têm se tornado uma base indispensável para a afirmação da alteridade ocidental perante o fenômeno da globalização e do pluralismo cultural.

Por conta disso, esta educação “ocidentalizante” tenta resgatar como conteúdos básicos de sua constituição problemas considerados como fundamentais em seu processo de formação, tais como a idéia de cor, raça, do livre mercado, dos valores cristãos, das tradições familiares e sociais, etc...enfim, um amplo “mix” de valores que tornam alguém “ocidental”. Um exemplo consistente desta afirmação está na prática do ensino confessional – em detrimento do ecumênico – que têm sido implantado em escolas dos Estados Unidos e do Brasil; se não contarmos, claro, com o abandono do racionalismo científico que se manifesta pela adoção (como conteúdo básico escolar) da teoria criacionista cristã, vulgarmente divulgada como um dogma da fé. Ou seja, após anos de luta e propaganda por um movimento de tolerância religiosa, adota-se uma política governamental que verticaliza o processo de crença e doutrinamento, praticamente excluindo do currículo escolar a idéia de pluralidade. E O eco deste movimento encontra-se, por conseguinte, na construção das idéias que ilustram os que não são “cristãos” para o mundo ocidental; islâmicos (todos eles radicais, intolerantes e potencialmente violentos, dispostos sempre a pegar em armas para lutar contra o “Ocidente Judaico-Cristão”), chineses (gente atéia, sem fé, incapaz de noticiar a morte de um papa querido pelo mundo por serem uma nação que tolhe a liberdade religiosa, que reprime a diferença), africanos (atrelados aos seus primitivismos, que não conseguem aparentemente desenvolver-se econômica e materialmente), etc....a lista é enorme, e toda ela inclui quem faz – e quem não faz – parte deste mundo “coerente e racional” que seria o mundo “branco” ocidental.

Em meio a essas afirmações, tenho insistido na questão da “cor” pois ela é um problema particularmente interessante para a questão do Brasil, um país etnicamente “colorido”, ou misturado, e que no entanto tem buscado, recentemente, demarcar fronteiras de cor, raça e gênero com fins políticos e legais. Sabemos que a nossa sociedade realmente carrega consigo uma forte carga de racismo, mas até onde estes limites estão sendo devidamente investigados, esclarecidos e legislados, ao invés de servirem ao propósito de políticas populistas e conflituosas? Retomaremos este tópico no fim de nosso texto.

O problema em si se constitui, portanto, em como alguns acadêmicos ocidentais têm buscado recentemente criar mecanismos e expedientes para re-interpretar a história das civilizações mundiais, de modo a conceder um lugar de honra e poder ao Ocidente. Mais, estas teorias buscam novamente justificar um papel de preponderância intelectual, material e social por parte da Europa e dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo, rejeitando sistematicamente as contribuições asiático-africanas e colocando-as num patamar secundário na história do mundo. Uma renovação da tradição eurocêntrica, portanto, que exclui a originalidade das culturas.

E aqui, voltamos ao caso de Mair e as famosas “Múmias Chinesas”. O documentário produzido segue uma trajetória nitidamente tendenciosa – porém pouco clara – para alguém que não tenha algum conhecimento sobre a civilização chinesa.

A primeira das contradições flagrantes é a afirmação de que as múmias teriam “4 mil anos de idade” (ou – no seguir do texto - que eram de 1000 a.C., o que nos traz um inexplicável problema de matemática)– as múmias já foram devidamente datadas (por métodos de carbono 14), e são da época da rota da seda, estabelecida gradualmente entre o Ocidente e o Oriente a partir (e principalmente) dos séculos II-I a.C. Um olhar breve sobre o manual Reinos soterrados da China (publicado em 1998 no Brasil) já nos dá um boa idéia sobre o assunto, esclarecendo este “enigma histórico” que simplesmente não existe. Além disso, se Mair foi proibido de examinar as múmias, isso se deve provavelmente a dois motivos: o primeiro, que os chineses fazem questão de resguardar suas relíquias históricas diante de observadores e curiosos ocidentais que já espoliaram de todos os modos a sua cultura; além disso, é um princípio de conservação universal de achados arqueológicos que estes sejam estudados, analisados e manejados com cuidados apropriados. Assim sendo, coloquemo-nos no lugar de alguém responsável pela manutenção das ditas múmias e perguntemo-nos: daríamos amplo e total acesso à esses achados para a primeira equipe de TV que aparecesse querendo fuxicá-las?

Do mesmo modo, as ditas referências a “generais altos e de olhos claros” que apareceriam na literatura clássica são totalmente absurdas. Qualquer um que estude um pouco dos antigos documentos chineses (poesias, livros de história, o que for) descobrirá que o uso da altura é sempre uma criação artística e literária aplicada aqueles que se destacam social ou intelectualmente, tal como as sobrancelhas, a barriga, os olhos e outros atributos físicos. Confúcio, por exemplo, era alto, grande, forte e tinha o cenho sério. Milhões de outros heróis chineses seriam descritos como ele. Quanto aos olhos, encontrem as referências sobre “lindos olhos de jade”, e saberão que a pedra do jade tem – além da cor verde – a cor branca, amarela, amarronzada, negra....ou seja, é impossível afirmar peremptoriamente que alguns desses “generais” (aliás, quais são?) poderiam ser ocidentais. E dizer que tais características “batem frontalmente com as características físicas chinesas” é supor, pois, que os chineses são necessariamente baixos e fracotes? Resgatamos o conceito de “raça inferior” e não sabemos?

Mas as múmias são, de fato, de origem provavelmente caucasóide. O que isso significa? Uma explicação simples é de que estas múmias são de conhecidas comunidades de comerciantes persas e/ou ocidentais que vieram habitar em determinados pontos da rota da seda para melhor executar suas atividades de troca com os chineses e os habitantes da Ásia central. Há documentação e vestígios arqueológicos sobre este processo. O Hou Hanshu (Anais da Segunda dinastia Han, capítulo 88) narram até a vinda de mercadores ocidentais à corte chinesa em 166 d.C.. Mas esta explicação, por ser simples, é inaceitável? O maravilhoso da questão perde-se, apenas, por ela ter uma resposta coerente e já conhecida no meio sinológico? Ou há uma outra razão para se afirmar a presença deste “povo branco” na China?

Como comentamos anteriormente, para se “embranquecer” uma história como a da China, é necessário apelar para recursos de ordem teórica e especulativa que podem induzir-nos a uma visão fantasiosa – e por isso mesmo, atraente – da análise histórica. Quando se afirma, na mesma reportagem, que tais múmias poderiam “ser um indicador de que civilizações caucasianas, européias, estiveram em regiões da Ásia antes dos povos chineses, considerados alguns dos mais antigos do planeta”, estamos a querer representar que tipo de idéia? Que modelo podemos esperar construir com esta concepção – tão carente de base como as múmias de vida – senão o de que “haviam brancos” na China antes mesmo dos chineses! O que isso significa? Que estávamos lá (o Ocidente) e que a China nos deve algo e não quer admitir?

Consciente ou não de sua proposta um tanto capenga, o documentário acaba por fomentar mais uma base para o discurso ocidentalista de uma “raça branca antiga e empreendedora” cuja ancestralidade e inventividade se justifica pela sua atual posição no mundo. É esta mesma “raça” que irá, tempos depois, criar, realizar, construir a ciência, inventar a religião cristã, enfim, que irá dominar o mundo – ainda que esta dominação só tenha acontecido nos últimos três séculos, de fato – mas cujo objetivo é criar a impressão de que sempre foi assim. E o grande problema é que Mair, mesmo a par das descobertas científicas da academia, promove um discurso notadamente parcial utilizando suas credenciais de pesquisador para dirigir ideologicamente uma proposta de análise.

A importância deste problema para o Brasil

O caso das múmias chinesas, torna-se, portanto, um exemplo emblemático do desconhecimento das questões que envolvem o “embranquecimento” da história no Brasil e ainda, o nosso despreparo acadêmico para lidar com tais problemas. Engajados numa proposta acadêmica, que com dificuldades enormes avança quase sempre para um rumo indefinido, recebemos como fonte de informação sobre a China (ou a Ásia, podemos dizer) uma reportagem que poderia ter sido novidade apenas há vinte ou trinta anos atrás. Mas o que sabemos da China ou da Ásia? Quantos sinólogos ou indólogos temos no país? Quantas pessoas estão capacitadas a discutir as famosas questões de comércio internacional, cultura ou arte sobre uma civilização que praticamente desconhecemos? Até onde temos nos deixado levar pela ideologia de “embranquecer” nossa própria história relegando a um plano totalmente secundário a história da Ásia e África, continentes que representam mais da metade do mundo? De que modo, pois, poderíamos empregar nosso “apurado senso crítico” para deglutir a informação vinculada – se é que nos interessaríamos em analisar o fato, pois em geral tomamo-lo como certo apenas por fazer parte de um mundo estranho ao nosso e vir da boca de um especialista?

O Brasil tem, recentemente, embarcado em políticas racistas, religiosas e culturalistas bastante problemáticas se não forem lidas com um extremo cuidado metodológico. Temos escolas defendendo o “criacionismo”, políticos defendendo o “salvacionismo”, o “populismo” e outros “ismos” que sempre deixam uma margem bastante pequena para o respeito e para igualdade. Logo nós, brasileiros, que temos uma diversidade étnica e religiosa tão rica, estamos adernando perigosamente no mar da intolerância e dos “achismos”, importando teorias, informações e notícias que nos incapacitam por completo de desenvolver uma idéia mais concreta sobre temas tão atuais como a história da China, Índia e África. Ao invés de buscarmos estudar tais assuntos por conta própria, desdobramo-nos numa postura quase caipira de assentar nossa realidade como se existisse uma única forma de ver o real – a de ser “ocidental”, o que é um grande engodo. Existem, sim, outras formas de conhecer a realidade, mas é do contato direto com elas que podemos nos enriquecer – e não através de traduções deturpadas que estimulam nossa animosidade e afastamento das culturas asiáticas e africanas. Confiamos tanto nas academias ocidentais européias e americanas que esquecemos que elas podem se enganar ou não entender o mundo como nós, brasileiros, podemos de certa forma entendê-lo. De fato, nossa postura intelectual não têm sido a de conquistar uma autonomia, mas sim a de negociar sua dependência dos grandes centros.

E no momento em que a Ásia bate as nossas portas, torna-se mister, pois, buscar entende-la de um modo inovador e autêntico. Ou corremos o risco de sermos novas “múmias brancas” na China – gente que pouco pode se pronunciar sobre o que sabe, o que é, o que entende ou o que vê – e lembremos, até mesmo as antigas múmias foram, um dia, pessoas instigadas pela busca do outro que foram até lá, ao oriente, conhecer algo que hoje nós sintomaticamente desprezamos porque acreditamos, sem razão nenhuma, que uma história “branca” é muito mais segura e certa do que todo o mundo que existe além do nosso saber usual.

Bibliografia

Para embasar este trabalho, busquei fazer uma recolha de fontes disponíveis na rede que fossem, ao mesmo tempo, livros de renomada importância em sua época. Assim, os livros de Giles, Parker e Headland podem ser encontrados em Online Books Page; os de Pauthier e Cordier em Gallica; o de Granet e Wilhelm, em Chine Ancienne.

Outros títulos utilizados:

Aldrovandi, C. E. V. O Aniconismo Revisto: As diferentes abordagens na interpretaçao da iconografia primitiva budista. in Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12, 2002: 177-203.

Apple, M. “Educação e novos blocos hegemônicos” in Tosi, A. Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

Barthold, V. La decouverte de l’Asie. Paris: Payot, 1946.

Hover, E. Arte Indio. Madrid: Labor, 1927.

Laffite, P. Considerations generales sur le ensemble de la civilization chinoise. Paris: Societe Positiviste,1900.

Martin, J. Art Indien et Art Chinois. Paris, 1926.

Pischel, G. A Arte Chinesa. Arcádia: Lisboa, 1963.

Said, E. Orientalismo: a invenção do Oriente pelo Ocidente. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996.

Thorp, R. Reinos Soterrados na China. São Paulo: Abril-Time Life, 1998.

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