A Vocação para Confúcio

A idéia de “vocação” já existia na China Antiga, e era uma idéia inseparável do conceito de Shi, (que podemos traduzir como propensão), fundamental para compreender as estruturas do pensamento chinês. Apesar das inúmeras escolas filosóficas que a China vivenciou em sua antiguidade, o pensar chinês assenta-se (até hoje) numa série de conceitos que são comuns a todas estas linhas, e a concepção de “propensão” é uma delas.

Mas do que se trata a idéia de propensão? Os chineses acreditavam que todas as coisas na natureza (objetos, seres vivos e não vivos) possuíam propriedades em sua constituição que lhes garantiam um modo de manifestar-se em particular, diferenciando-se umas das outras. Esta propensão favorece um meio específico de agir, transformar-se e realizar-se, não importando qual seja a condição do ser. Tomemos um exemplo para ilustrar isso:

A madeira, como substância, pode ser talhada, mas não derretida. Qualquer objeto que venha a ser feito de madeira deve ser confeccionado, portanto, a partir das possibilidades que este material oferece de maneira específica. A madeira não pode cumprir as mesmas funções do barro e do metal. Ela pode incendiar-se, logo, é mais adequada a um determinado uso do que outro. Este conjunto de características que permitem a nós denominarmos algo como “madeira” existe, assim, em função das propensões que este determinado elemento possui.

O conceito de propensão permeia a existência de todas as coisas, portanto. Mas o pensamento chinês dispõe ainda de uma outra teoria que regula o funcionamento da propensão, a concepção de “oposição complementar”. Para os chineses, todas as coisas existem por meio de um processo dialético, composto por yang e yin. Yang e Yin não devem ser entendidos apenas como uma dualidade simples entre “macho” e fêmea”, “rápido” ou “lento”, etc. Eles representam coordenadas da realidade, que indicam que, se uma coisa existe, logo, deve existir algo contrário que a comprova e a regula. Assim sendo, se existe “luz”, esta só pode ser comprovada pela sua ausência, por exemplo, que é a “escuridão” ou “sombra”. Se existe a idéia de “macho”, é porque existe também a idéia de “fêmea”, e assim sucessivamente. Não se trata pois de apenas classificar, mas descobrir que uma coisa existe em função de estar associada a outra.

Deste modo, se a propensão é um conceito universal, logo, ela deve ser regulada pelo processo de manifestação particular. Se todas as coisas tem uma propensão, cada coisa o tem de um modo singular, seja mais evidente ou não, mais ou menos intenso, etc.
Como não poderia deixar de ser, ocorre o mesmo com os seres humanos. Tomemos dois alunos de piano: eles iniciam no mesmo período, cumprem o mesmo número de aulas, mas depois de um certo período, um demonstra um talento incomum e o outro continua desempenhando apenas o básico. Porque um é melhor que o outro? Para os chineses, porque um deles tem uma propensão maior para tocar piano. Isso não impede o outro aluno de aprender através de um esforço contínuo, mas a cada pessoa tem uma propensão que a favorece, como forma de talento especial ou tendência.

Este foi um dos alicerces que fundamentaram o pensamento de Confúcio sobre o ser humano. No entanto, veremos que Confúcio não pensava na propensão de forma fatalista, mas sim realizante.

Para Confúcio, o que é a vocação?
Para Confúcio, a vocação é a manifestação humana da propensão individual. Todos os seres humanos têm uma propensão, e por causa disso, nenhum talento é melhor do que o outro: na verdade, é o uso e a habilidade que alguém alcança em aproveitar seu próprio talento que dá importância a ele. Isso significa que a sociedade pode até buscar privilegiar determinados talentos (como é o caso de grandes músicos, guerreiros, atletas, etc.), mas não existe uma propensão melhor que outra: as propensões, na verdade, são importantes pelo que elas são em si. Vejamos o caso de um pescador; de sua habilidade, provém o alimento que sustenta a população. Em situações normais, esta capacidade não é considerada uma das mais importantes (apesar da sociedade não perceber que, sem ele, ela passa fome e o todo não funciona); numa situação de crise, no entanto, seu talento torna-se ainda mais evidente, pois é a ele que os outros precisam recorrer. Isso não modificou, na verdade, a propensão de alguém em conhecer o mar a arte da pesca, bem como não afeta o seu “talento nato”; a relevância social pode até ser contextual, mas a propensão deve ser atingida com um outro fim: a realização pessoal e a felicidade.


- Por que é importante reconhecê-la?
Para Confúcio, deveríamos buscar nossas propensões para nos realizarmos interiormente, e não para obter riqueza, honraria ou poder. Estes valores podem até ocorrer, mas devem ser conseqüências, e não um fim. Buscar a propensão é buscar aquilo que o ser faz melhor; fazendo isso com graça, arte e perfeição, a pessoa obtém satisfação interna, e disso resulta uma vida realizada. Sem uma vida realizada, não se pode alcançar a felicidade virtuosa. Confúcio conclamava as pessoas a fazerem, de certo modo, aquilo que mais as agradava: do que adiantaria um diploma ou um título para ser pendurado na parede? Do que adianta trabalhar em algo que não o satisfaz? Embora as sociedades costume identificar o ganho monetário com a realização pessoal, Confúcio alertava que isso não era o caminho de uma felicidade verdadeira. Afinal, alguém pode ser feliz num emprego em que ganha menos, mas faz o que gosta; quantos músicos, por exemplo, já não passaram fome antes de alcançar qualquer sucesso, pelo simples amor a música? Diz uma passagem do Liji (o Manual dos rituais), antigo texto resgatado por Confúcio:

“No final do primeiro ano, procedia-se a uma tentativa de verificar até que ponto os alunos sabiam pontuar seus escritos e descobrir suas vocações. No fim de três anos. procurava-se determinar os hábitos de estudo dos alunos e de sua vida em grupo. No fim de cinco anos investigava-se até onde iam os conhecimentos gerais dos alunos e até que ponto eles haviam acompanhado os preceptores. No fim de sete anos, observava-se como se haviam desenvolvido as idéias dos alunos e que espécie de amigos cada qual escolhera para si. {...} Ao cabo de nove anos era de esperar-se que o aluno dominasse as várias matérias estudadas e tivesse uma compreensão geral da vida, tendo assim firmado o próprio caráter em bases de onde não pudesse retroceder”.


- Como fazer para reconhecê-la, Confúcio diz algo a respeito?
Mas para que isso pudesse ser atingido, Confúcio propunha que as pessoas trilhassem um caminho de experimentação, baseado na educação. Sim, seis séculos antes de cristo Confúcio já dizia que uma pessoa só pode se realizar de buscar algum tipo de educação. A pedagogia de Confúcio não buscava ser condicionante, porém: o mestre defendia que as pessoas na época deviam aprender atividades tão diversas como caligrafia, música, arco e flecha para encontrarem aquilo que mais gostavam de fazer. É neste momento, quando se percebe que um aluno parece ter potencial especial para algo que se pode constatar a idéia de propensão: e se ele sente um prazer especial no que faz, e o faz de maneira que isso beneficia não só a si mas tudo a sua volta, então ele está encontrando o caminho certo para sua vida, ele está encontrando uma via (o seu Dao, outro conceito chinês que pressupõe a idéia de que pode ser encontrada uma via realizante). No mesmo Liji, ainda capítulo18, Confúcio dizia:

“Os preceptores de hoje limitam-se a repetir coisas, a aborrecer os alunos com perguntas freqüentes e a repetir-se incessantemente. Não procuram descobrir a inclinação natural de cada um, e assim os estudantes são levados a fingir amor aos estudos, sem que nada se faça por explorar o que há de melhor em seus talentos. O que se fornece aos estudantes é errado, e não menos errado é o que deles se espera. Resultado: os alunos aprendem às escondidas as coisas de que gostam e detestam os professores, exasperam-se com as dificuldades do curso e não reconhecem nele o bem que lhes traz. Ainda que passem regularmente por todas as séries, uma vez completado o período de colégio, já se apressam em deixá-lo. Eis por que falha a educação em nossos dias”.
Mais moderno, impossível!

- Para Confúcio, a vocação está ligada apenas à profissão? Caso não, em que outros setores ela se manifesta e por que costumamos ligá-la diretamente à profissão? No tempo de Confúcio isso já ocorria?
Como foi dito, a realização profissional é conseqüência da manifestação da propensão. Uma pessoa só pode ser feliz, realmente, se realizar sua propensão, na visão confucionista. Isso implica dizer que uma pessoa pode até obter ganhos desempenhando bem seu papel profissional, mas o ideal é que ela se realize plenamente naquilo que lhe é mais natural, naquilo que mais se aproxima do seu talento. Se for feliz, então até mesmo na mais humilde das profissões (numa visão cultural, claro) ela pode se realizar. Uma pequena fábula chinesa, muito popular entre todas as escolas de pensamento, ilustra bem esta visão chinesa da realização:

“Um mestre quis mostrar ao seu discípulo o que era realização. Foram até um jogador de xadrez e perguntaram: o que você faz? E ele respondeu: - jogo xadrez. O que faz para viver?, perguntaram novamente: – Jogo xadrez, ele respondeu. E o que gosta de fazer? disseram- Jogar xadrez!, disse finalmente o velho. Ao saírem dali, encontraram um estudioso e lhe perguntaram: você que é estudioso, o que sabe fazer? Ele respondeu – sei várias coisas: poesia, musica, história, caligrafia...- mas o que você sabe BEM?, perguntou o mestre; ao que o estudioso respondeu “bem, sei de tudo um pouco, mas acho que não sei nada tão profundamente”. O mestre se virou para o seu discípulo e disse: - viu? Temos que experimentar de tudo, pra encontrarmos a nós mesmos; e tudo se resume em fazer uma coisa só: aquilo que nos torna felizes”.

Entrevista concedida para a Revista "Filosofia" (Edição especial da "Ciência e Vida"), Editora Escala, Janeiro de 2008.

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