Sobre os “Sábios do Oriente”


O desejo de escrever este texto começou há algum tempo atrás, quando estava ouvindo uma apresentação (não lembro bem onde ou sobre o quê) em que o responsável da noite, já de início, disparou três clichês amarrados pelo fatídico epíteto de “dizem os sábios do oriente”:

“uma caminhada de um milhão de passos começa com o primeiro passo; por isso, não devemos lamentar o passado, nem se afligir com o futuro e não antecipar preocupações, mas viver sabiamente e seriamente o presente momento; pois uma andorinha só não faz verão, e assim devemos ir em frente e enfrentar os desafios”

Vocês podem perguntar: como eu me lembro destas três partes do discurso? Porque a primeira frase (da caminhada) é de Laozi, um velho autor chinês; a segunda é de Buda, sábio indiano; e a terceira, da andorinha, é de Aristóteles!!! O que podemos constatar é que este apresentador nada sabia sobre “sábios do oriente”, colocando todos numa mesma sacola. Isso me incomodou bastante, tanto quanto saber que até Aristóteles não foi perdoado.

Assim sendo, quem são os “Sábios do Oriente”? O clichê é antiqüíssimo, genérico e vago. Tomemos a Bíblia como outro exemplo: em Mateus (Cap. 2), “eis que vieram magos do Oriente” visitar Jesus. Em nenhum momento seus nomes, número ou características são citados. A tradição que os nomeia é posterior, e não aparece no texto sinótico; mesmo o fato deles serem três parece estar mais ligado aos presentes que trazem (três, ouro incenso e mirra) do que a qualquer informação mais completa que possamos extrair de Mateus. Fora isso, nenhum outro evangelista faz menção a eles. As informações só melhoram nos textos apócrifos (como o Evangelho Armênio da Infância de Jesus), escritos negados até hoje pela ortodoxia, o que mostra certa confusão entre uma tradição que se preserva (a dos Três Reis) e o cânone religioso (católico e protestante), que nega o conteúdo dos mesmos apócrifos.

Esta menção inicial tem como objetivo mostrar a imprecisão com que o Oriente é mentalmente tratado pelas culturas ocidentais, tanto num nível popular quanto acadêmico. O espaço circunscrito entre a Palestina e o Japão é visto como uma entidade única, curiosa, cujas semelhanças tornam suas culturas familiares e homogêneas. O próprio termo “Oriente” deriva do grego “oriri” – ou simplesmente “onde nasce o sol” (como no Latim, onde “oriens” – “entis” tem o mesmo significado), o que dá a dimensão de sua amplitude enquanto noção intelectual e geográfica.

Por conta disso, o estudo das civilizações “orientais” ainda é bastante recente entre nós (brasileiros). Mesmo na Europa, o estudo sistemático da Ásia continua sendo um problema relacionado a outras questões fundamentais, tais como colonialismo, imperialismo, culturalismo e agora, a questão da globalização. Em termos temporais, pois, quase tudo ainda é novo. Como bem disse Jean Riviere,

Para o homem ocidental, o Oriente é uma palavra que evoca as mais diversas e contraditórias imagens; provoca nele sentimentos de uma curiosidade freqüentemente pueril, de sonhos românticos que não correspondem à realidade, ou então imagens de miséria social, de repulsa, de piedade e de um temor irracional. Os juízos sobre a Ásia são geralmente elementares, parciais e definitivos; há, em resumo, uma curiosidade simpática ou uma incompreensão desconfiada, segundo o estado de espírito de cada um. Na realidade, o Ocidente ignora o Oriente e por isso o historiador francês René Grousset (1885-1952) pôde escrever que "A revelação do pensamento indiano e do pensamento chinês equivale, para nós, à descoberta de diferentes seres humanos, de diferentes habitantes de outros planetas. (Riviere, 1979).

Recentemente, Wang Hui afirmou, igualmente, que:

Na verdade, a idéia da Ásia não é uma noção asiática, mas européia. Nos séculos XVIII e XIX, as ciências sociais (lingüística, história, geografia moderna, filosofia dos direitos, teorias do Estado e das raças, historiografia e economia política) desenvolveram-se rapidamente na Europa, ao mesmo tempo que as ciências naturais. Juntas, esboçaram um novo mapa do mundo. As representações da Europa e da Ásia integraram-se à noção de “história mundial”. Montesquieu, Adam Smith, Hegel e Marx, entre outros, elaboraram a idéia da Ásia por contraste com a da Europa, e a integraram a uma visão teleológica da história. Podemos resumi-la assim: oposição entre os impérios asiáticos multiétnicos e o Estado monárquico/soberano europeu; entre o despotismo político asiático e os sistemas políticos e jurídicos europeus; entre o modo de produção asiático, nômade, agrícola e a vida urbana e o comércio europeus (Wang, 2005).

Outro exemplo pode ilustrar bem a nossa atitude prepotente diante das culturas asiáticas; Edward Said (1996) nos conta em seu fabuloso livro “Imperialismo e Cultura” a tragicômica história da ópera “Aida”, de Verdi. Apresentada pela primeira vez no Egito muçulmano do século 19, ela causou estranheza ao público local não tanto pela sua musicalidade, mas pela trama aparentemente banal e sem sentido. A história gira em torno das dúvidas de um príncipe entre casar-se com uma nobre egípcia ou com uma escrava etíope, escolha dramática e apaixonante para os românticos europeus da época, mas absolutamente estúpida para os muçulmanos polígamos, que admitiam com naturalidade a hipótese do príncipe ficar com as duas! Há uma atitude cultural fundamental que deve ser apreendida aqui – a questão que a ópera, enquanto manifestação artística ocidental, é entendida como um referencial de “civilidade e racionalismo”, e a não apreciação por parte dos egípcios implicava na sua “falta” de capacidade em aceitar e entender o tema da peça. Objetivamente, o procedimento é o mesmo até nosso dias: continuamos a achar que um lugar é “desenvolvido” e “civilizado” se possuir alguns ícones da sociedade moderna e capitalista ocidental, tal como um Mac Donalds, mas muitos continuam achando intolerável comer com pauzinhos.

A lição aqui é a seguinte: a imposição de elementos delineadores para uma investigação intelectual que tenha por base, somente, o conjunto de conceitos ocidentais, redundará inevitavelmente em fracasso. Mas é necessário inverter a afirmação e transformá-la em pergunta: como estudar o Oriente sem partirmos de conceitos ocidentais (ou seja, que nos sejam próprios)?

Podemos retomar a noção de “ocidental” para elucidarmos esta consideração. Afinal, os ocidentais entendem-se, por exemplo, “cristãos”, quando eles mesmos sabem que esta noção é inexata e pouco explicativa para as inúmeras igrejas cristãs que existem na Europa, EUA e América Latina. O mesmo vale para a Filosofia, cujo alicerce pode ser greco-romano, mas que só se desenvolveu graças aos esforços de inúmeros outros povos (inclusive “orientais”, como no caso das contribuições árabes a filosofia medieval). O que é, pois, ser ocidental? Tomando este parâmetro, podemos compreender que a idéia e a constatação da multiplicidade equivalem, necessariamente, a um estudo mais aprofundado de quaisquer civilizações – e isto se aplica diretamente ao caso “oriental”:

Assim, é incorreto considerar um sistema filosófico oriental como a filosofia oriental em conjunto; igualmente incorreto é ver num período da Filosofia oriental todo o curso do seu desenvolvimento. [...] Se percorrermos toda a história da Filosofia oriental, encontraremos muita variedade e mudança, de modo que o antigo período, embora muito importante, de maneira alguma é a história completa. (Chan, 1979).

O “sábio do Oriente” não existe; existem sábios sim, mas seus conhecimentos filosóficos, científicos e religiosos variam de acordo com a paragem. O trânsito do budismo e do islamismo pela Ásia não foi o suficiente para lhe dar uma face única, e uma análise pelo viés da religiosidade não pode nos dar também uma idéia precisa da variedade de pensares “orientais”. Um simples estudo calcado na teoria histórica das mentalidades, por exemplo, mostraria o quão falaciosa é qualquer afirmação no sentido de dar um caráter único o “oriente”:

Uma das características fundamentais do pensamento indiano é a sua tendência para a introspecção. Imediatamente deduz-se daqui uma atitude passiva e habitualmente tímida e tranqüila. A vida interior, contemplativa, ocupou sempre um lugar de primeira ordem entre os indianos, povo eminentemente inclinado à filosofia, à especulação intelectual, às atividades religiosas, à vida cenobítica e monástica, à renúncia, fator que colocam acima de tudo. O pensamento é metafísico, não cientifico, no sentido ocidental do termo; [...] A psicologia chinesa é muito diferente da indiana; pode se resumir a importância do concreto, do particular, na exaltação da antiguidade e dos antepassados, na busca do sentido prático, na conformidade formal e na ausência de sentido metafísico. O chinês vive num mundo de percepção sensorial, de imagens, de símbolos visíveis, de tabelas de concordância. Não se sente em conformidade com idéias abstratas, com os conceitos de caráter geral, as definições aristotélicas. [...] Todas as explicações filosóficas se baseiam em experiências concretas; a ciência descritiva chinesa é a do particular, do excepcional, do extraordinário que, com sua presença, perturba a ordem natural [...] Esta tendência explica o aspecto materialista da religião, que não é mais do que um simples comportamento adaptado ao código social. O bem e o mal são relativos, como todo o resto; na China nunca houve uma guerra civil por divergências religiosas, como já aconteceu na Europa, porque o chinês crê que em qualquer religião ou filosofia se encerra sempre algum elemento da verdade” (idem Riviere, 1979).

Como foi demonstrado, a questão é antiga e não podemos esperar resolvê-la de modo imediato, mas o problema é sua constante reciclagem. Na passagem do século 19-20, um renomado orientalista, René Guenon - cuja obra é incensada pelos esoteristas, mas que na verdade foi um profundo estudioso da religiosidade asiática, (e seus trabalhos não devem ser menosprezados, apesar da necessidade de serem lidas com cuidado extremo para que se evitem confusões comuns aos orientalistas iniciantes) – apontava em 1924 uma condição inequívoca da “civilização” ocidental em relação à maneira como construía a sua idéia de “oriente”:

A verdade é que existem múltiplas civilizações a desenvolverem-se em rumos muito diversos e que a do ocidente moderno apresenta características que a tornam uma exceção muito particular. Não se deveria jamais falar em superioridade ou inferioridade de modo absoluto, sem precisar sob que aspectos estão sendo abordados os elementos que se quer comparar isto, claro, se admitirmos que eles sejam de fato comparáveis. Não existe uma civilização de sejam superior à outra sob todos os aspectos porque é impossível ao homem exercer suas atividade de modo igual e ao mesmo tempo em todas as direções – e também porque há desenvolvimentos que se apresentam como verdadeiramente incompatíveis. Pode-se apenas observar que há uma certa hierarquia a ser observada e que as coisas intelectuais valem mais que aquelas de ordem material; deste modo, uma civilização que se mostre inferior sob o primeiro aspecto mesmo sendo incontestavelmente superior sob o segundo, encontrar-se-á, no conjunto, em desvantagem, quaisquer que sejam as aparências exteriores. Tal é o caso da civilização ocidental numa comparação com as civilizações orientais. Bem sabemos que esta maneira de ver choca a grande maioria dos Ocidentais, por ser contrária a todos os seus preconceitos. No entanto considerações de superioridade à parte, que eles ao menos admitam que as coisas às quais atribuem a maior importância não interessam forçosamente a todos os homens no mesmo grau; que alguns podem até mesmo considerá-las perfeitamente supérfluas - e que se pode demonstrar inteligência de outros modos que não necessariamente a construção de máquinas. Seria já alguma coisa conquistada se os europeus conseguissem compreendê-lo e agissem de acordo; suas relações com os outros povos seriam a partir de então bastante modificadas - e de modo muito vantajoso para todo o mundo. No entanto, este é o lado mais exterior da questão: se os ocidentais reconhecessem que nem tudo deve ser necessariamente desdenhado nas outras civilizações pela simples razão de diferirem da sua, nada mais os impediria de estudar estas civilizações tal como devem ser, sem a intenção prévia de as denegrir e sem hostilidade.Quem sabe então alguns dentre eles logo se apercebessem, através deste estudo, de tudo aquilo que lhes falta, sobretudo do ponto de vista puramente intelectual. Naturalmente, supomos, conseguiriam, pelo menos até certo ponto, chegar à compreensão verdadeira do espírito das diferentes civilizações, o que requer muito mais que um simples trabalho de erudição. [...] A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: dentre todas aquelas que conhecemos mais ou menos completamente, esta civilização e a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e este desenvolvimento monstruoso, cujo início coincide com o que se convencionou chamar Renascimento, foi acompanhado, como fatalmente o deveria ser, por uma correspondente regressão intelectual; não dizemos equivalente, pois se trata de duas ordens de coisas entre as quais não poderia haver qualquer medida em comum. Esta regressão chegou a tal ponto que os Ocidentais de hoje não sabem mais o que possa ser a intelectualidade pura, e nem mesmo suspeitam de que possa haver algo semelhante. Resulta disto seu desprezo, não apenas pelas civilizações orientais, mas até pela idade média européia, cujo espírito igualmente lhes escapa por completo. [...] Mas o que há, talvez, de mais extraordinário, é a pretensão de fazer desta civi1ização anormal o modelo de todas as civilizações, de tomá-la como "a civilização" por excelência, até como a única merecedora de tal nome. É também, como complemento desta ilusão, a crença no "progresso", considerado de maneira igualmente absoluta, e identificado naturalmente, em sua essência, com o desenvolvimento material que absorve toda a atividade do ocidental moderno. É curioso constatar como certas idéias conseguem rapidamente disseminar-se e impor-se, mesmo correspondendo pouco, e evidente, às tendências gerais de um meio e de uma época. É o caso das idéias de "civilização" e de "progresso", que tanta gente acredita serem universais e necessárias quando, na realidade, foram de invenção bem recente, e quando ainda hoje pelo menos três quartas partes da humanidade persistem em ignorá-las ou não as consideram em absoluto (R. Guenón, “Oriente e Ocidente”, 1924).

O próprio Guenón, porém, insistia no erro fundamental de crer numa “mentalidade” oriental, projetando sobre a Ásia uma heterotopia filosófica, um anseio de encontrar no “pensamento oriental” as raízes de uma sabedoria profunda, que negassem por vez o racionalismo materialista ocidental.

Mas será possível, também, separar e classificar o “Oriente” em divisões que nos afastam de uma total possibilidade de entendimento acerca dos que são as civilizações asiáticas? As demarcações são necessárias (M. Sproviero, 1998), e úteis para iniciar um estudo sobre este lado do mundo, mas devem ser usadas com cuidado – uma taxionomia do “oriental” o enquadra, acidentalmente, numa categoria, e novamente repetimos o erro de iniciar um trabalho de investigação por meio de um falso pressuposto. Como bem afirmou Emir Sader, comentado a obra de Edward Said, “As teses de Edward Said sobre o orientalismo se tornaram clássicas, com as ambigüidades dessa projeção: são consolidadas, legitimadas, difundidas, mas ao mesmo tempo são domesticadas, tem seu poder subversivo neutralizado e passam a repousar tranqüilamente nas bibliografias e nas bibliotecas” (Sader, 2005). Ou seja, até mesmo um “orientalismo crítico” pode ser usado num sentido legitimador ou superficialmente explicativo, dando sentido às diferenças culturais e justificando as suas separações (e não aproximações).

Voltamos novamente ao “sábio do oriente” para terminar este breve texto: empregado como auto-ajuda, desconhecido em seu sentido mais profundo e antigo, analisado de modo contextual, isolado e deficiente, os pensadores asiáticos não podem ser tidos como resultado de uma “cultura oriental”, sem o que qualquer construção intelectual minimamente interessada em analisar o Outro não será bem sucedida. Mas talvez um dos melhores resultados deste processo de busca seja uma relativização do conhecimento que temos sobre nossa própria cultura (ou culturas, se as entendermos como “ocidentais”). A Filosofia mesmo, por exemplo, é tido pelo vulgo como um monólito de propriedades desconhecidas, ameaçadoras e irritantes – embora ela seja o fundamento do nosso jeito de pensar. Vê-se nisso a reprodução da própria intolerância que criamos e que projetamos sobre nós mesmos e os outros. Uma fábula zen ilustrada pelo cartunista Tsai Chih Chung (“O Zen em Quadrinhos”, 2001) serve-nos como perfeito fecho para o que queríamos discutir.





Referências
CHAN, W. O espírito da filosofia oriental em MOORE, C. (org.) Filosofia: Oriente, Ocidente. São Paulo: Cultrix-Edusp, 1979.
GUENON, R. Orient et Occident. Paris: s/e, 1924.
NEMO, P. O que é o Ocidente? São Paulo: Matins, 2005.
PANIKKAR, R. El Dialogo intercultural. Espanha: Esteban, 1993.
RIVIERE, J. Oriente e Ocidente. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.
SADER, E. O Orientalismo Hoje – CMI, 2005 http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/07/324707.shtml - acessado em março, 2008.
SAID, E. Imperialismo e Cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SPROVIERO, M. Oriente, Ocidente – uma demarcação em Mirandum 4, 1998 http://www.hottopos.com/mirand4/orientee.htm - acessado em março, 2008.
TSAI, C. O Zen em quadrinhos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
WANG, H. A re-invenção da Ásia em Le Monde Diplomatique, 2005 http://diplo.uol.com.br/2005-02,a1068 acessado em março, 2008.

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