Na estrutura do pensamento chinês, o conceito de Céu (Tian), Terra (Tu) e Ser Humano (Ren) formam uma tríade inseparável. O próprio ideograma Céu representa um firmamento sobre a figura de um homem de braços abertos; Terra, do mesmo modo, o faz com um traço representando o chão, do qual nasce uma rama; por fim, a palavra Wang (rei) é constituída por um traço vertical que faz a ligação entre Céu, Terra e Homem (que é a figura do soberano cósmico). Combinados, eles formam o Taiji, o ciclo completo dos opostos (yang e yin), que tudo gera. A afirmação de Laozi “o um gera o dois, o dois gera o três, e o três gera as dez mil coisas” torna-se clara aqui: o universo do Taiji engendra o Céu e a Terra, que engendra o Ser humano e assim, consequentemente, o universo. Todos alimentam-se e reproduzem-se incessantemente, constituindo e existência um do outro.
O que me proponho neste breve texto é tentar entender se, por trás disso que aparentemente é uma crença religiosa, não existiria uma concepção primitiva de ecologia – e neste caso o Céu, entendido como o organizador de todas as coisas, poderia vir a ser um princípio ordenador da realidade e da natureza, muito mais do que uma divindade ou entidade sobrenatural. Se admitirmos que o termo “ecologia” engloba um conjunto de regras pela qual a natureza se auto-organiza e administra, veremos que o conceito “Céu” pode vir a ser compreendido como um equivalente homeomórfico de “ecologia”, apesar de esta noção ser relativamente moderna na ciência ocidental.
Devemos, pois, começar por rastrear quando surgiu esta noção de Céu como conceito. Após a ascensão da Dinastia Zhou, as concepções de religiosidade dos Shang passam a cair em desuso, e seus deuses são transportados para a religiosidade popular de maneira espontânea e pouco coerente. Esta plêiade politeísta seria gradativamente substituída por uma noção abstrata de “Céu” – inicialmente, uma entidade fomentadora do mundo, inalcançável na sua extensão, um conjunto de princípios inteligentes que organizam o mundo e regulamentam seu funcionamento, o qual os missionários cristãos identificaram rapidamente como uma idéia primitiva de monoteísmo. O conhecido tradutor James Legge, do século 19, não tinha grandes preocupações em traduzir “Céu” como “Deus”, e no Brasil algumas traduções de textos chineses repetem a mesma idéia.
No entanto, o grande estudioso das instituições chinesas antigas, o sábio Confúcio (dos séculos -6 -5) notavelmente não se dirigia ao Céu enquanto um “ser”, de propriedades absolutas. As razões pelas quais podemos acreditar que Confúcio entendia o Céu como um conjunto de operações e princípios inteligentes que ordenavam o mundo reside justamente em que toda a operação do ser humano realizada contra ou a favor da natureza tem algum tipo de repercussão – mas este processo tem com fundamento, a princípio, o próprio ser humano, e não necessariamente parte de uma vontade instável do “Deus Céu”. Busquemos entender: no politeísmo antigo, os deuses possuíam a imagem de seres humanos (ou o contrário), e sua lógica operava dentro de padrões próprios, que seriam a vontades divinas. Os sacrifícios, oferendas e demais operações mágicas tinham por mister agradá-los, ensejando uma troca de favores, um tipo pragmático de comércio espiritual.
O Céu dos Zhou, porém, necessita ser cortejado, mas por outras razões. Os ritos existem para manter a ligação com a natureza, mas esta não deixa de existir sem os ritos; suas leis, aliás, continuam a operar, e cabe ao ser humano conhecê-las e manipulá-las. Os ritos então servem para dar a continuidade a esta ligação, e ensinar as pessoas a aprendê-las, reproduzi-las e administrá-las.
O Céu se torna, portanto, uma designação genérica para o cosmos (incluindo aí a Terra e o Ser humano), e na seqüência, suas manifestações (benéficas ou não) podem ser entendidas como um conjunto de processos naturais que precisaríamos compreender e manipular. A percepção de Confúcio neste ponto começa a ficar clara: o Céu administra a existência da vida, e a possibilidade fundamental do ser humano é poder acessar a estrutura deste sistema, escapando da irracionalidade animal. A culminância deste processo é a teoria do “Mandato Celeste”; uma pessoa, escolhida (ou determinada) por uma propensão natural assume o poder, o controle da sociedade, coordenando as atividades necessárias ao seu desenvolvimento e reprodução. Este é o soberano, o Rei (Wang), cuja função então é organizar a vida humana junto da vida natural. Mas se este soberano investe contra a natureza (atingindo de modo maléfico a Terra, o Céu ou o Ser humano), surgem então as calamidades e ele perde o seu “Mandato Celeste”.
Se observarmos bem, a questão então não se trata de uma “revanche divina” contra um mau imperador: a questão é que se ele agride estas regras da natureza, logo ele não é um bom administrador; não é, muito menos, alguém que compreenda o seu funcionamento, e consequentemente ele causa danos a sociedade e a natureza, ensejando o surgimento das calamidades e aflições que, quase todas, são danos ambientais. Do mesmo modo, o soberano deve instruir o povo para que este não agrida a natureza, e saiba aproveitar seus recursos com sabedoria e parcimônia. No Tratado dos Livros (Shujing), coligido por Confúcio, uma passagem é bem explicita neste ponto, apesar de sua linguagem figurada:
“Tian inspeciona o povo cá em baixo, tomando nota da sua retidão, e regulando conseqüentemente o seu arco da vida. Não é Tian que destrói os homens. Estes, pelas suas más ações, encurtam as suas próprias vidas”. (Shujing, Gaozong, 3)
Do mesmo modo, seguir as regras da natureza é dar continuidade ao próprio ciclo da vida:
“Sede reverentes! Sede reverentes! Tian revelou a sua vontade. O seu mandato não é fácil de conservar. Não digais que Tian está distante. Ele desce e sobe, interessando-se pelos nossos afazeres, e examina diariamente todas as nossas ações”. (Shujing, 4)
Para Confúcio, o ser humano, como único ser inteligente capaz de modificar e prolongar sua existência no mundo, pode também – pelo fator intrínseco ao pensamento chinês de que tudo tem o seu oposto – destruí-la. Ao observar o modo como a realidade é constituída, vê-se que o conjunto de regras da natureza, representadas pelo Céu, tenta justamente amarrar – mas de modo bem flexível – o processo de continuidade das coisas.
“Tian criou as gentes e deu-lhes as suas aptidões. [...]Ao dar origem a todas as pessoas, T’ien ordenou que as suas naturezas fossem independentes. Algumas começam bem, mas poucas se conservam boas até à morte”. (Shujing, 3)
Por conta disso, Confúcio percebeu que a retificação da sociedade pautava-se em seu conhecimento sobre como conservar as próprias estruturas de funcionamento. Uma agressão à natureza se revertia num processo de “punição” indistinta, que afetava a sociedade como um todo, posto que esta integra, inevitavelmente, a razão ecológica no qual se integra.
“O vasto, extensivo Tian não estende a sua virtude mas envia cá para baixo morte e fome para destruir a terra. O compassivo Tian agora aterroriza sem tom nem som. É verdade que os incorretos deviam ser punidos pelos seus crimes, mas porque havia o povo inocente de ser oprimido com a desgraça?” (Shujing, 2)
Ocasionalmente Confúcio fazia afirmações personalistas sobre o Céu - que não sabemos até onde podem tratar-se de suas próprias palavras ou de comentários posteriores - mas a questão é que o mestre aceitava esta lógica celeste como algo claro, explícito, que cabe a nós conhecer como um conjunto de regras naturais – neste momento, o ser humano não passa somente a conhecer o Céu, mas a ser “conhecido por ele (Céu)”.
“O que realmente interessa é que um homem seja conhecido pelo céu (Lunyu [Diálogos], 14), e que “O céu dê origem ao poder que há nele” (idem, 7) pois “Se é da vontade do céu que o Caminho prevaleça, então o Caminho prevalecerá”, (idem, 14).
Isso fica ainda mais claro no texto do Zhong Yong (“A Justa Medida”), quando o mestre afirma que:
“Só os que são absolutamente sinceros podem desenvolver completamente a sua natureza. Se eles podem desenvolver completamente a sua natureza, podem desenvolver completamente a natureza dos outros. Se podem desenvolver completamente a natureza dos outros, então podem desenvolver completamente a natureza das coisas. Se podem desenvolver completamente a natureza das coisas, então podem ajudar na transformação e nas operações substanciais do céu e da terra. Se podem ajudar na transformação e nas operações substanciais do céu e da terra, podem formar uma trindade com o céu e a terra” (Zhong Yong, 22).
Mas onde aparecem estas regras naturais? Como Confúcio as apresentava aos seus discípulos? Em que parte dos escritos (além das passagens apresentadas), podemos visualizar estas teorias sobre uma concepção ecológica da natureza?
Os escritos de Confúcio deixam entrever que a absorção e a compreensão destes conteúdos se dariam, enfim, pelo processo educativo. O estudo seria responsável pela aquisição desta cosmovisão, e da compreensão das hierarquias e condições ecológicas pelas quais a natureza se auto-administra. Como afirmamos, a construção de idéia de “viver em sociedade” é, antes de tudo, um atributo do animal “ser humano”, e para tal ele deve aprender, estudar e buscar alcançar as grandes teorias que regeriam o universo. Parte dos ritos existentes no pensamento confucionista buscava claramente propiciar este experiência com a natureza, tentando inculcar esta razão ecológica na mentalidade da época:
“O filho do céu envia ordens aos próprios oficiais e sacrifica aos (espíritos que presidem os) quatro mares, nos rios grandes com as suas famosas fontes, nos lagos profundos, nos pântanos, poços e fontes” (Liji, 4), “O sábio forma um ternário como o céu e a terra, e fica lado a lado com os seres espirituais, para a boa ordem do governo” (idem, 7), “Quando o Grande Homem (o sábio governante) usar e exibir as suas cerimônias e música, o céu e a terra prodigalizar-lhe-ão, em resposta, as suas brilhantes influências. Eles agirão em união feliz, e as energias (da natureza) ora expandindo-se, ora contraindo-se, procederão harmoniosamente. O ar procriativo de cima e a ação correspondente de baixo espalhar-se-ão e alimentarão todas as coisas. Então as plantas e as árvores crescerão luxuriosamente; os rebentos e os botões desenvolver-se-ão; os animais cobertos de penas e com asas ficarão ativos; chifres e armações crescerão; os insetos chegar-se-ão à luz e reviverão, os pássaros criarão e chocarão; os animais cobertos de pêlos acasalar-se-ão e darão à luz; os mamíferos não terão abortos e nenhum ovo será quebrado ou gorado, e tudo será imputado ao poder da música” (idem, 17).
Este último trecho nos mostra, inclusive, um fator importante no pensamento confucionista: a natureza é tal como a música, depende dos seus próprios acordes (energias), composições e harmonia. A interrupção ou a má prática de um destes elementos inevitavelmente leva à ruína, tal como uma canção dissonante ou mal executada.
A integração como Céu, portanto, é a condição final da harmonia. No Tratado das Mutações (Yijing), um comentário de Confúcio reproduz, novamente, a concepção da razão ecológica como este processo de integração:
“O grande homem, nos seus atributos, está em harmonia com o céu e a terra; no seu brilho, com o Sol e a Lua; no seu procedimento ordenado, com as quatro estações; e na sua relação com as boas e más decisões, em harmonia com os agentes espirituais. Ele pode anteceder o céu e o céu não agirá em oposição a ele; pode seguir o céu, mas só agirá como o céu quando o tempo chegar. Se o céu não agir em oposição a ele, muito menos o homem o fará, e muito menos os seres espirituais” (Yijing, anexo 3).
Apesar de tudo o confucionismo não foi, de imediato, aceito pela fértil intelectualidade chinesa que, na mesma época, dividia-se entre várias escolas diferentes. Pensadores como Mozi e os Daoístas faziam pleno eco as estas considerações, mas por perspectivas diferentes. A China teve que esperar até o período Han (sécs. -3 + 3) para que a concepção de Confúcio fosse retomada, sendo associada e desenvolvida numa concepção ecológica ainda mais abrangente. O mentor desta análise foi Dong Zhongshu (séc. -2), responsável pela reestruturação da estrutura do pensar chinês através de uma síntese de várias teorias, mas cuja orientação fundamental era confucionista. Dong entendia que
“Nada é mais perfeito do que os éteres (Yin e Yang), mais ricos do que a terra, ou mais espirituais do que o céu. Das criaturas nascidas da essência refinada (jing) do céu e da terra, nenhuma é mais nobre do que o homem”. (Chiunqiu Fanlu, 56) pois “O que produz o homem não pode (ele próprio) ser homem, porque o criador do homem é o céu. O fato dos homens serem homens deriva do céu. O céu é naturalmente o supremo antepassado do homem. É por isso que o homem deve ser associado com o céu” e “O céu, a terra e o homem são a origem de todas as coisas. O céu dá-lhes nascimento, a terra alimenta-as, e o homem aperfeiçoa-as”.
Estas considerações derivam da idéia, por ele defendida, que havia uma influência direta do aspecto biológica na existência humana. Não determinante, mas fundamental, o ciclo da natureza seria administrado por uma série de tensões energéticas que se manifestavam no chamado Wuxing, ou “ciclo dos 5 agentes”:
“Dentro do universo existem os éteres (qi) de Yin e de Yang. Os homens estão constantemente imersos neles, tal como o peixe está constantemente imerso na água”. (idem, 81), “O céu tem cinco elementos: o primeiro é a madeira, o segundo o fogo, o terceiro a terra, o quarto o metal, e o quinto a água. A madeira é o ponto de partida de (o ciclo de) os cinco elementos, a água é a sua conclusão, e a terra é o seu centro. Esta a sua seqüência celestial... Cada um dos cinco elementos circula conforme a sua seqüência; cada um deles exercita as suas próprias capacidades na realização dos seus deveres oficiais” (idem, 42) e “Juntos, os éteres (qi) do universo constituem uma unidade; divididos constituem Yin e Yang; divididos em quatro, constituem as quatro estações; (ainda mais) divididos, constituem os cinco elementos. Estes elementos representam movimento. O movimento deles não é idêntico. Por isso não chamamos os cinco motores (Wu xing). Esses motores constituem cinco poderes oficiantes. Cada um, por sua vez, dá origem ao seguinte e é submetido pelo que se lhe segue”. (idem, 13)
O fecho dado por Dong recuperou a concepção de uma ação ecológica na existência natural e humana, que reproduz-se até nossos dias no modo como a China realiza sua medicina tradicional, sua filosofia e sua concepção de harmonia com o espaço e a natureza. Harmonia, este conceito basilar para os chineses, só se dá na realidade quando se conhece o Céu, suas regras e a tudo que ele permeia. Imersos que estamos nesta realidade, devemos conhecer as regras do jogo natural e saber emprega-las - sem o que, a catástrofe anunciada dos efeitos da poluição, guerra e interferência na natureza irão inevitavelmente efetuar-se, como já havia avisado o mestre.
O Céu só envia calamidades quando o desconhecemos!
Leituras:
Para compreender os ideogramas chineses, podemos consultar em português o livro de Tai Hsuan-Na, “Ideogramas” (São Paulo: Realizações, 2006) e - em francês ou inglês - Wieger, L. “Caracteres chinois” (1932); fundamental, no entanto, é o livro de Zhang Dainian, “Key concepts in chinese philosophy” (Yale, 2003), onde os conceitos são analisados filosófico e historicamente; outro livro importante é “Confucianism and ecology” (Harvard, 1998), no qual são apresentados vários ensaios relacionados ao tema; no livro de Ames, R & Hall, D. “Thinking Through Confucius” (New York, 1987), a seção das páginas 201-209 apresenta uma boa discussão sobre o conceito do “céu” (Tian); quanto as citações, empreguei em grande parte aquelas já traduzidas no texto de Smith, D. “Religiões chinesas” (Lisboa, 1971).
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