Pode parecer paradoxal, mas os chineses consideram-se como integrantes de uma sociedade pacífica, ordeira e trabalhadora. No entanto, esta mesma cultura foi capaz de produzir os monges guerreiros de Shaolin, os filmes de Kung-Fu, descobrir a pólvora, construir a maior fortificação defensiva do mundo (a Grande Muralha) e possuir - por vezes - o maior exército armado, em número, do planeta. O que isso significa para nós, ocidentais? Porque temos uma imagem deformada da civilização chinesa? Qual destas perspectivas se aproximaria mais da realidade?
Devemos ter em mente que a maneira como os chineses enxergam o mundo é bem diferente da nossa. O que para nós representa uma contradição lógica, para a China se trata tão somente de uma condição da realidade. Guerra e Paz coexistem, como uma circunstância inerente a natureza. É o sistema de oposição complementar – yin e yang – que rege toda compreensão científica do cosmo (BUENO, 2005). Obviamente prefere-se a Paz, a Conservação, mas os momentos de conflito e de desagregação da sociedade (tal como na natureza) são inevitáveis para uma renovação das antigas estruturas. Repetem-se, pois, em ciclos infindáveis - mas que podem ser atenuados, dirimidos ou mesmo evitados através do uso da sabedoria.
Neste ponto, começamos a perceber que para melhor compreendermos o modo como os chineses conceituam a Guerra e a Paz, até os dias de hoje, devemos antes de tudo recorrer à filosofia chinesa antiga, alicerce indelével das formas de pensar desta sociedade. Por meio do que os chineses entendiam ser a sabedoria (Sheng), buscava-se traduzir o cabedal de experiências humanas numa teoria que pudesse explicar a realidade e produzir um método eficaz de resolução dos problemas humanos (Dao). Tais tentativas redundaram num número extenso de escolas e doutrinas (Jia) cujas contribuições ajudaram a construir, paulatinamente, a visão chinesa sobre o problema em questão.
Por isso, é impossível tentar entender a aceitação ambígua dos chineses sobre a naturalidade do conflito se não recorrermos aos sábios antigos. O que faremos neste texto é uma breve apresentação sobre o que as escolas filosóficas chinesas propuseram, enfim, para elucidar estas duas condições da realidade: a Guerra e a Paz.
A trajetória das primeiras dinastias
Os primeiros períodos da história chinesa são relativamente confusos em termos cronológicos. A divisão tradicional das três primeiras dinastias (Xia, Shang e Zhou) que se estende dos primórdios da civilização chinesa (23-18 AEC? ) até o século 12 AEC parece ser bem menos precisa do que aparenta (FAIRBANK, 2006). No entanto, estes tempos antigos legam para a cultura chinesa alguns exemplos dos primeiros libelos contra a Guerra, surgidos no seio das classes populares e salvos na coletânea de poemas e canções coligida por Confúcio no século 6 AEC, o Livro das Poesias (Shijing). Parte substancial destes textos provém de épocas bem anteriores (alguns podem ser datados do século 12 AEC), mas, no geral, demonstram uma sensibilidade ímpar sobre a questão da Guerra:
Ministro da guerra, nós somos as garras e os dentes do rei.
Por que você nos atirou nesse sofrimento,
de modo que nós não temos nem lugar para ficar?
Ministro da guerra, nós somos aguerridos soldados do rei.
Por que você nos atirou nesse sofrimento,
que nunca finda e nem abranda?
Ministro da guerra, você agiu certamente sem discriminação.
Por que você nos atirou nesse sofrimento,
de modo que nossas mães têm que fazer todo o trabalho de cozinha?
(Shijing, 185)
E também;
Vou até o alto daquela colina coberta de árvores,
E olharei em direção à casa paterna,
Até que com os olhos do espírito possa divisá-la,
E com os ouvidos do espírito possa ouvir meu pai dizer:
- Pobre de meu filho que está em serviço fora de nossa terra!
Ele não descansa de manhã até o anoitecer.
Possa ele ser cuidadoso e voltar para meus braços!
Enquanto está longe, como eu sofro!
Subo até o alto daquela colina estéril,
E olho pensando em minha mãe,
Até que com os olhos do espírito diviso suas feições
E com os ouvidos do espírito ouço o que ela diz:
- Ai! Meu pobre filho está em serviço longe de mim!
Ele nunca fecha os olhos num bom sono.
Que ele tenha cuidado consigo e que volte a meus braços!
Que seu corpo não fique no meio das selvas!
As mais altas cadeias de montanhas eu, com esforço, subo
E olhei pensando em meu irmão.
Até que com os olhos do espírito divisei sua silhueta,
E com os ouvidos do espírito ouço o que ele diz:
- Ai de mim! Meu irmão mais novo está servindo fora do país.
O dia inteiro deve vaguear com seus camaradas.
Que ele tenha cuidado consigo e que volte para perto de mim
E que não morra longe de nosso lar!
(Shijing, apud YUTANG, 1957)
O clamor dolorido deste jovem soldado repete-se também na lamúria triste de uma esposa apaixonada a espera de seu amado:
O meu senhor partiu para servir ao rei.
As pombas voltam ao pôr do sol
Estão ao lado uma das outras sobre o muro do pátio,
E de lá bem distante ouço o pastor chamar
As cabras que estão pela colina, quando o dia termina.
Mas eu não sei quando ele voltará para casa.
Passo os dias sozinha.
O meu senhor partiu para ir servir ao rei.
Ouço uma das pombas que se ajeita no ninho.
E no campo um faisão grita ainda.
Daqui a pouco estará perto da companheira.
Há uma saudade que não me deixa descansar.
Os dias formaram meses e os meses formaram anos,
E não tenho mais lágrimas.
(Shijing, apud YUTANG, 1957)
No entanto, uma ativa nobreza de caráter guerreiro não compartilhava destes mesmos valores. Até onde pode-se entender, a guerra tornou-se neste período uma atividade intensamente praticada pela aristocracia, fosse por motivos econômicos, políticos ou mesmo por meras questões de prestígio. Durante a época dos Zhou, as atividades administrativas chegam a confundir-se com as atividades militares:
A predominância da ordem militar manifesta-se por uma regra significativa. O recenseamento que determina, detalhadamente, as posições e os tributos das terras e dos homens é uma necessidade militar. Precisamente por isto ela parece uma obra temível e quase sinistra. Compromete os destinos do país. [...] A responsabilidade de um ato tão temerário deve normalmente ser entregue a um homem que devotou sua vida à guerra. O Ministro da Guerra é encarregado de regular as contribuições, de contar as couraças e as armas. Com este fim, ele registra o número dos terrenos aráveis, as florestas de montanha, os pântanos e os lagos, os montes e as colinas, as terras baixas ou salgadas, as fronteiras inundadas, os escoadouros de água. Ele divide os terrenos planos compreendidos entre os diques, faz a partilha dos pastos e das terras cultiváveis. Ele determina, então, as contribuições a serem fornecidas. Fixa o número de carros e de cavalos, assim como o de guerreiros transportados por carros, dos soldados de infantaria que os escoltam, das couraças e dos escudos. As operações do cadastro e do recenseamento confundem-se. O dever militar estende-se sobre as terras como sobre os homens. Recai sobre os homens na proporção de suas terras e em razão da natureza e do valor destas. Os lavradores só fornecem peões ao exército. Os vassalos, detentores de um domínio compreendendo caças e pastagens, devem equipar um número regular de carros de guerras. Este número dá a medida de seu feudo e de sua dignidade. (GRANET, 1978)
Do mesmo modo, a formação do exército compreende um ritual em que a Guerra e o Conflito ensejam uma atmosfera temível de morte:
O exército compõe-se, por um lado, de pessoas a quem se perdoa uma pena com a condição de que se dediquem às obras mortíferas, e, por outro lado, de vassalos que são guerreiros natos e ligados ao chefe por uma fidelidade total. Quando se reúne o exército, abrem-se os arsenais e distribuem-se as armas. Estas, em teoria, pertencem ao senhor que as conserva, cuidadosamente guardadas, não por uma simples precaução: as armas exalam uma virtude nociva. Ninguém se mune sem se preparar antes, para este contato perigoso; com um período de abstinência. O jejum realiza-se no Templo ancestral e provoca tal emoção que se acredita entrar em comunicação com os antepassados. Os pressentimentos da vigília das armas parecem comprometer a sorte da campanha. Aquele que sente então seu coração agitado sabe estar destinado à morte. (Ibidem)
Mas a batalha e o conflito são atributos cavalheirescos de uma nobreza determinada:
O combate é uma mistura confusa de bravatas, de generosidades, de homenagens, de insultos, de devotamentos, de imprecações, de bênçãos, de malefícios. Bem menos do que um choque de armas, é um torneio de valores morais, é um encontro de honras, que se medem. Procura-se qualificar, desqualificando os outros, não somente os adversários mas também, do mesmo modo, aqueles da mesma facção. A batalha é o grande momento em que os guerreiros provam, cada um, sua nobreza, demonstrando a todos, também, a nobreza de seu príncipe, de sua causa, de sua região. Muitas vezes agressivo e sempre marcado pela ambição de se avantajar, o espírito de solidariedade que anima um corpo de vassalos manifesta-se na prova da batalha, como nas provas que preparam para o combate. (Ibidem)
O caráter excessivo destes conflitos levou a China Antiga, no entanto, a um contexto de crise eminente. A disputa de territórios, as lutas constantes entre príncipes e o desgaste do campo incitaram um período cataclísmico para a história chinesa, que se iniciou timidamente no século 6 AEC (a época dos mestres antigos Confúcio e Laozi), mas que tomou o caráter de guerra declarada em 481 AEC, quando os estados chineses lançaram-se numa disputa aberta pelo poder dinástico. A dissolução da guerra aristocrática em prol de uma eficácia plena em combate quebrou as poucas barreiras que impediam um total dilaceramento do campesinato, e determinou um desregramento total dos costumes antigos. Foi, igualmente, um momento de incrível avanço técnico na produção de armas, que tornaram a guerra ainda mais mortífera.
Foi sobre este conjunto de problemas que o pensamento chinês debruçou-se, a partir de Confúcio, para tentar resgatar um conceito de Paz durável. Quase todas as escolas – com exceção do Legismo, como veremos – atinou-se na proposta de reconstruir uma sociedade pacífica e organizada, visando sua auto-preservação. O resultado deste processo de discussão é que culminaria, por conseguinte, com a formação da mentalidade chinesa sobre os conceitos de Guerra e Paz.
As propostas das Cem Escolas
Do advento de Confúcio (551-479 AEC) até o século 3 AEC, quando o Estado de Qin volta a reunificar a China, seriam muitas as propostas surgidas para esclarecer as reais motivações da Guerra. Tal período, de extensa duração, é usualmente classificado como período das “Cem Escolas”, devido grande número de autores e teorias. De todas, parecem ter sobrevivido somente aquelas que deram algum tipo de contributo definitivo ao pensamento chinês.
O primeiro deles, o Mestre Kong (cujo nome latinizou-se em “Confúcio”), acreditava que a Paz era resultado de uma sociedade ordenada e harmoniosa, fruto de uma formação cultural e educativa sólida e abrangente. Num mundo educado, as pessoas não necessitavam lutar, e podiam recorrer a expedientes racionais para a resolução de seus problemas. Ainda assim, o mestre considerava a Guerra como uma realidade, decorrente fosse de uma agressão externa, ou da necessidade de retomar a ordem em um país. Daí por que suas considerações sobre a Guerra diferem bastante da concepção de vitória militar absoluta:
O Mestre disse: "Para meu lugar-tenente, não escolheria um homem que luta com tigres ou que atravessa os rios a nado sem temer a morte. Ele deveria estar cheio de apreensão antes de entrar em ação e sempre preferir uma vitória alcançada por meio da estratégia". (Lunyu, 7:11)
Eis porque seu modelo de guerreiro virtuoso calcava-se no passado, como o do rei Wen e Wu, que venceram a antiga Dinastia Shang e deram o poder aos Zhou. Confúcio tratava deste conflito como uma “expedição punitiva”, a necessidade de retomar o curso da vida cotidiana e retirar do poder um rei temerário:
No primeiro mês, o dia Zankhan seguiu-se imediatamente ao final da lua minguante. O dia imediato seria quando o rei de Zhou iria, pela manhã, sair para atacar e castigar Shang. No quarto mês, à primeira aparição da lua, o rei chegou de Shang à Fang, finalizou todos os movimentos guerreiros e pôs-se a cultivar as artes da paz. Enviou novamente seus cavalos ao sul do monte Hua e deixou em liberdade seus bois na região aberta de Shaolin, mostrando a todos sob o céu que não queria utilizá-los novamente. No dia Ting-wei sacrificou no templo ancestral de Zhou, quando os príncipes do domínio real e dos domínios de Tien acudiram pressurosos levando os utensílios do sacrifício. O terceiro dia depois era Kang-xu, quando ofereceu um holocausto ao Céu e se inclinou, em adoração, para as colinas e os rios, anunciando solenemente o afortunado término da guerra. Depois que a luz começou a minguar, os príncipes hereditários dos diversos Estados e todos os funcionários receberam suas nomeações de Zhou. (Shujing, apud YUTANG 1957)
E o povo nunca deveria ser convocado em vão diante de uma atividade tão nefasta: “O Mestre disse: "O povo tem de ser instruído por homens bons por sete anos antes de poder pegar em armas". (Lunyu, 13: 29) e O Mestre disse: "Enviar para a guerra um povo que não foi propriamente instruído é desperdiçá-lo". (Lunyu, 13:30)
Os valores que compõe uma sociedade harmônica passam longe da necessidade, real, do conflito:
Zigong perguntou sobre governo. O Mestre disse: "Alimento suficiente, armas suficientes e a confiança do povo". Zigong disse: "Se tivésseis de chegar a bom termo sem um desses três, qual descartaríeis?" - "As armas". - "Se tivésseis de chegar a bom termo sem um dos dois restantes, qual descartaríeis?" - "O alimento; em última instância, todo o mundo acaba morrendo um dia. Mas, sem a confiança do povo, nenhum governo se mantém". (Lunyu, 12:7)
Por fim, a constância da Guerra informa, de fato, que o Estado e a vida social não tem sido bem administrados, por tratar-se de uma circunstância anômala, resultante da perda do propósito maior do governo que deveria ser o bem estar público:
Confúcio disse: "Quando o mundo segue o Caminho, os ritos, a música e as expedições militares são todos determinados pelo Filho do Céu. Quando o mundo se afasta do Caminho, os ritos, a música e as expedições militares são todos determinados pelos senhores feudais. Quando são os senhores feudais que determinam esses assuntos, a autoridade deles raramente dura por dez gerações; quando são seus ministros que determinam esses assuntos, a autoridade deles raramente dura por cinco gerações; quando os assuntos do país caem nas mãos dos camareiros dos ministros, a autoridade deles raramente dura três gerações. Num mundo que segue o Caminho, a iniciativa política não pertence aos ministros; num mundo que segue o Caminho, os plebeus não necessitam discutir sobre política". (Lunyu, 16:2)
Já Laozi - autor cuja biografia é bem menos conhecida que a de Confúcio, mas que provavelmente lhe foi contemporâneo ou um pouco mais antigo – a Guerra significava também, em última estância, um desperdício de vida. Favorável a um modo de vida naturalista e anti-social, Laozi entendia que a morte corporal era um processo inexorável, mas nem por isso fatal. Assim, a Guerra na verdade se trataria da afirmação de um materialismo fátuo, desgastante e, por isso mesmo, desnecessário. Sua validade residiria somente na sobrevivência, na defesa própria:
De um estrategista a máxima:
eu não ouso ser o senhor, mas o hóspede
não ouso avançar uma polegada, recuo um pé
isto se diz:
avançar, sem avançada
rechaçar, sem braços
repelir, sem hostilizar
capturar, sem armas
maior desastre: desconsiderar o inimigo
desconsiderar o inimigo seria perder minhas jóias
portanto
exércitos antagônicos em confronto
o que for compassivo vence
(Daodejing, 69)
Algumas décadas depois de Laozi e Confúcio, um outro pensador, Mozi, iria escrever uma das páginas mais brilhantes da história chinesa acerca do problema da Paz. Preocupado em defender o povo contra as arbitrariedades do poder aristocrático, Mozi pregava uma política pacifista, que entendia que as razões de qualquer conflito em larga escala residiam em disputas cujas motivações não teriam qualquer ligação direta com as necessidades da população mais pobre:
Mozi disse: "O propósito do magnânimo consiste em outorgar benefícios ao mundo e libertá-lo das calamidades". Mas quais são os benefícios e calamidades do mundo?
Mozi disse: "Os ataques recíprocos entre os estados, a mútua usurpação entre as dinastias, as injúrias recíprocas entre os homens, a intolerância e a deslealdade entre governo e governados, o desamor e a ausência de piedade filial entre pai e filho, a desarmonia entre o irmão mais velho e o mais novo! Eis as maiores calamidades do mundo."
E donde derivam essas desgraças?
Diz Mozi: "Elas nascem da falta de amor ao próximo. Hoje, os senhores feudais aprenderam tão somente a apreciar os seus estados e não os dos outros. Não tem o menor escrúpulo em atacar os estados limítrofes. Os chefes de família habituaram-se a gostar apenas de sua casa e não da casa alheia; nem se envergonham de usurpar o lar do vizinho. Quanto aos indivíduos, a norma é estimarem-se a si mesmos e não aos outros. E não têm escrúpulos em se injuriarem mutuamente. Sempre que os senhores feudais não se estimem reciprocamente, haverá guerra. Quando os chefes de família não se apreciarem uns aos outros, acabarão usurpando a autoridade alheia. Se os homens não se estimarem, fatalmente hão de se injuriar uns aos outros. Entre governo e súditos que não se apreciem reciprocamente, não pode haver indulgência nem lealdade. Se pai e filho não se quiserem um ao outro, não haverá amor paterno nem sentimento filial. Faltando afeto entre irmãos, surgirá a desarmonia. Se ninguém no mundo quiser amar ao próximo, é claro que o forte sobrepujará o fraco, a maioria oprimirá a minoria, os ricos zombarão dos pobres, os poderosos desdenharão os humildes, os espertos enganarão os ingênuos. Todas as calamidades, as lutas, as queixas, o ódio, que infestam o mundo, nasceram da falta de amor ao próximo. Por isto, os bons reprovam esse desamor."
(Mozi, 15)
Falemos agora dum só país em pé de guerra. Se for no inverno, agravar-se-á o frio. Se for verão, o calor será excessivo. Se for na primavera, a peleja inibirá os camponeses de semear e plantar; se for no outono, tornará impossível a colheita e a segadura. Em qualquer dessas estações, desde que os homens sejam arrancados aos campos, inúmeras pessoas morrerão de fome e de frio. E, quando os exércitos partem, com setas de bambu, flâmulas de penas, barracas, armaduras, escudos e cabos de punhais...inúmeras dessas coisas serão quebradas, destruídas e jamais voltarão. As lanças, as adagas, as espadas, os punhais, os carros, as carroças...serão destruídos em grande número e nunca voltando. Numerosos cavalos e bois, que partiram bem nutridos, se voltarem, voltarão descarnados. E inúmeras pessoas morrerão à míngua, por lhes serem tirados os mantimentos e não receberem - devido às grandes distâncias - novas provisões. Inúmeros seres adoecerão e perecerão, em virtude do constante perigo e da irregularidade com que comem e bebem, dos extremos da fome ou dos excessos. Então o exército será dizimado em grande parte, ou aniquilado na sua totalidade; noutros casos, o número das vítimas pode ser incalculável. Isto significa que os espíritos perderão os seus adoradores, e o número destes também seria incontável.
Por que, então, o governo priva o povo de oportunidades e benefícios em tamanha extensão? A resposta será: "O motivo é: Ambiciono a fama do triunfador e as possessões que se obtém pelas conquistas".
Mozi diz: "Se considerarmos a vitória, sob esse ponto de vista, ela não terá nenhuma utilidade. E as possessões obtidas a tal preço não compensam os danos. Ora, se o sítio duma cidade de três lis, ou dum estado de sete lis, fosse efetuado, sem o uso de armas ou sem perda de vidas, tudo estaria muito bem. Mas, pelo contrário, contam-se dezenas de milhares de mortos, de viúvas, de desamparados, antes que uma cidade de três lis, ou um estado de sete lis, sejam capturados. Mais ainda: os estados de dez mil carros contam milhares de cidades desertas, que se poderiam conquistar sem luta, e milhares de mus de terras incultas, que se poderiam cultivar sem conquista. Assim, abundam as terras, mas a população escasseia. Ora, impelir os homens à morte, e agravar o perigo temido por superiores e subalternos, para obter uma cidade deserta, equivale a renunciar ao necessário e a conservar o que sobra. Tal empresa não se coaduna com o interesse do país".
Os que timbram em atenuar o verdadeiro aspecto das guerras ofensivas dirão:
"Esses estados perecem, porque não foram capazes de unir e empregar as massas populares. Eu posso arregimentar e utilizar os meus homens a sustentar com eles a guerra: quem então ousaria rebelar-se?"
Mozi diz: "talvez sejais capaz disso, mas podeis comparar-vos ao antigo Ho Lü de Wu? Ho Lü de Wu treinava outrora os soldados sete anos. Equipados com armas e couraça fazia-os percorrer cem lis num dia, antes de acampar à noite. [...]
Não ouvimos dizer que um país em guerra, aprestando-se para uma expedição, deve contar com centenas de oficiais, milhares de civis e dezenas de milhares de soldados e de prisioneiros, antes que o exército se tenha posto em marcha? Isto pode durar muitos anos ou no mínimo muitos meses. Ora, os governantes não terão assim lazer para cuidar de suas obrigações; os fazendeiros não poderão semear nem colher; às mulheres, não sobrará ensejo para tecer e fiar; logo, o estado perde os seus homens e os cidadãos descuram seus afazeres. Além disso, os carros ficarão destruídos e os cavalos estafados. Quanto às tendas, às provisões do exército, ao equipamento dos soldados, se restarem, depois da guerra, um quinto de tudo, já o resultado excederá a expectativa. Entretanto, inúmeros homens ficarão dispersos, adoecerão em conseqüência das marchas fatigantes, das rações escassas, da fome e do frio e morrerão na penúria. A calamidade para o mundo e para os homens é tremenda. Entretanto, os governantes insistem em fazer guerra. O que equivale a dizer que desejam a desgraça e o extermínio dos povos; não é perversidade?
(Mozi, 18)
A ambigüidade do pensar chinês fica clara, porém, quando descobrimos que Mozi foi autor de algumas das melhores técnicas de guerra defensiva da época! Ou seja, mesmo para um pacifista a Guerra pode ser inevitável...ou, justamente por isso, ele se torna um pacifista.
Mas a visão destes pensadores não impediu que surgisse, em meio a mesma filosofia chinesa, quem defendesse a idéia de que a Guerra era um mal necessário e talvez, o único meio de concentrar a força do povo e centralizá-la numa mesma direção. Esta era a visão da escola dos Legistas e dos Estrategistas, que entendiam que a organização militar, a ênfase na Lei e o controle marcial da sociedade erma os meios ideais para suprimir as sedições e garantir a sobrevivência do Estado. Shang Yang, um dos representantes do legismo no século 4 AEC afirmava que:
Geralmente, no método aplicado nas campanhas militares, o principio fundamental consiste em tomar as medidas governamentais supremamente prevalecentes. Se tal for alcançado, então as pessoas envolvidas não terão disputas; e, não tendo disputas, não terão pensamentos sobre interesses próprios, mas sim sobre os interesses do governante. Por conseguinte, um verdadeiro rei, através das medidas adotadas, tornará as pessoas receosas nos combates entre várias cidades, mas valentes nas guerras contra os inimigos externos. Se as pessoas forem treinadas para atacar os perigos com vigor, estas não darão tanto valor à morte. Se, porventura, o inimigo for perseguido assim que o combate se iniciar e não cessar a sua retirada, abstende-vos de alcançar mais longe. (Shang Yang, 3)
E também
No domínio dos assuntos externos relacionados com as pessoas, não há nada mais difícil do que as campanhas militares, daí uma lei fácil não as poderem induzir a integrá-las. O que se chama de uma lei fácil? É quando as recompensas são poucas e a autoridade é fraca e quando as doutrinas depravadas não são obstruídas. Um país de mil bigas é capaz de se preservar pela defesa e um país de dez mil bigas é capaz de se completar satisfatoriamente pelos combates - até [um mal governante como] Xieh não seria capaz de deturpar uma palavra desta declaração de modo a subjugar os seus inimigos; e, se no estrangeiro, se é incapaz de empreender a guerra e, na pátria, se é incapaz de zelar pela defesa, então até [um bom governante como] Yao não poderia subjugar, por qualquer má conduta, um país que [normalmente] não fosse excepcional. Sob este ponto de vista, concluir-se-á que o que conduz o país a ser importante e o governante a ser honrado é a força. Sendo a força a base de ambos, como pode ser que nenhum governante na Terra consiga desenvolver-la? Originai uma situação em que as pessoas considerem terrível não cultivar a terra e perigoso não combater. Estas são duas coisas que, embora do seu desagrado, os filhos filiais fazem em nome dos pais e, embora com desagrado, os ministros fazem em nome do soberano. Atualmente, se se desejar incitar a multidão de pessoas a fazer aquilo que nem os filhos filiais e ministros leais gostam de fazer, acho que será inútil qualquer tentativa, a menos que os instigue pela via de punições e os incentive pela via de recompensas. (Shang Yang, 5)
Como afirmou o sinólogo Ricardo Joppert,
Por sua natureza, acreditavam os legistas, o homem só está interessado em procurar recompensas e ganhos e em evitar danos a si mesmo. Para que se governe o mundo, é mister reconhecer a real natureza humana, sintetizada nos sentimentos de “gostar” e “não gostar”. Portanto, se o homem foge às punições e procura recompensas, a máquina do Estado deve ser eficaz em administrar sanções pelos crimes contra o desejo real (fonte da Lei) e prêmios por ações que beneficiem o Soberano. Esse último favorecia unicamente a guerra e as conquistas. Assim, os melhores combatentes seriam as pessoas de maior mérito no Estado. (JOPPERT, 1979)
Da mesma maneira, a Escola dos Estrategistas consagrou Sunzi como um de seus principais autores (apesar desta escola ter-se expandido para bem além de sua obra), privilegiando a razão da eficácia sobre o aspecto moral e intelectual da política e da filosofia:
Sunzi disse: a guerra é de vital importância para o Estado; é o domínio da vida ou da morte, é o caminho para a sobrevivência ou a perda do Império: é preciso manejá-la bem. Não refletir seriamente sobre tudo o que lhe concerne é dar prova de lastimável indiferença no que diz respeito à conservação ou à perda do que nos é mais querido; e isso não deve ocorrer entre nós. (Sunzi, 1)
No entanto, mesmo Sunzi entendia que a Guerra possuía um objetivo concreto de conquista e dominação, e nisso incluía-se que o objetivo maior da Guerra que seria conservar o inimigo intacto;
Como regra geral, é melhor conservar um inimigo intacto do que destruí-lo. Captura seus soldados para conquistá-los, e domina seus chefes. Um General dizia: "Pratica as artes marciais; calcula a força de teus adversários; faz com que percam o ânimo e a orientação, de maneira que ainda estando intacto, o exército inimigo fique imprestável: Isto é ganhar sem violência. Se destruíres o exército inimigo e matares seus generais, assaltas suas defesas disparando, reúnes uma multidão e usurpas um território, tudo isto é ganhar pela força." Por isto, os que ganham todas as batalhas não são realmente profissionais; os que conseguem que se rendam impotentes os exércitos alheios sem lutar, são os melhores mestres do Arte da Guerra. Os guerreiros superiores atacam enquanto os inimigos estão projetando seus planos. Logo desfazem suas alianças. (Sunzi, 3)
Chegamos a um momento definitivo do pensamento chinês: mesmo na antiguidade, convencionou-se pensar que o objetivo máximo do conflito é manter a paz. No século 3 AEC, quando Qinshi Huangdi volta a unificar o império chinês – ainda que sob influência dos legistas – as melhores de suas medidas foram tomadas em relação a conservação do poder e da economia: unificar pesos, medidas, moedas, regular e estimular o campo...todas estas decisões beneficiariam sobremaneira a qualidade de vida da sociedade, se não viessem acompanhadas de medidas restritivas e conflituosas que mantinham o caráter marcial da Lei e da administração pública. Seus excessos, sua paranóia constante com segurança (que o levou a construir a imensa muralha que separa a China dos povos das estepes), sua desmedida nas pretensões de poder, construindo um imenso exército de terracota para conquistar o mundo do além... O resultado foi um desgaste prematuro desta efêmera dinastia, que em breve cederia lugar aos Han (206 AEC). Ciosos da experiência de seus predecessores, os Han adotaram um confucionismo de características austeras (quiçá influenciadas pelo próprio Legismo), que, no entanto, mostrou-se durável ao entender que a manutenção da Paz era o melhor meio de cuidar da vida cotidiana.
Conclusão
A recolha destes autores indica que o processo pelo qual os chineses antigos construíram os seus conceitos sobre Guerra e Paz encontra um fundamento direto na estrutura ambivalente de seu pensamento dual e complementar. Embora a Paz fosse uma condição fundamental na conservação da sociedade, a Guerra era uma realidade que se fazia presente no momento em que as percepções da realidade se fracionavam. O conflito reajusta as diferenças: e uma paz constante acaba trazendo-as à tona. Tal como yin e yang, que se engendram mutuamente, Guerra e Paz fazem parte do imaginário chinês como objetos equivalentes, dentro de seus sentidos específicos, sobre os quais somente a sabedoria poderia trazer alguma espécie de luz.
Uma fábula das Anedotas dos Estados Combatentes (Zhanguoce) ilustra bem uma concepção final com a qual os chineses compartilham:
O Grou e a Ostra
Zhao ia invadir Yen. Su Tai foi falar ao Rei Huei de Zhao em favor de Yen.
- Esta manhã. - disse Su Tai, - quando eu vinha pelo meu caminho, passava pelo Rio Yi. Vi ali uma ostra aquecendo-se ao sol, e um grou aproximou-se para picá-la na carne, e a ostra fechou firmemente a sua concha sobre o bico do grou. Disse o grou: “Se não chover hoje e se não chover amanhã, haverá uma ostra morta”. E disse também a ostra: “Se não puderes soltar-te hoje e se não puderes amanhã, haverá um grou morto”. Nenhum dos dois queria largar, quando um pescador se aproximou e apanhou a ambos. Ora, se fores atacar Yen, os dois países ficarão presos na luta por muito tempo até que o povo de ambos esteja esgotado. Temo que o forte Estado de Qin venha a ser o pescador. Pensa nisso cuidadosamente.
- Bem. - disse o Rei, e abandonou a idéia. (apud YUTANG, 1957)
Bibliografia
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CLEARY, T. Sabedoria do Guerreiro. São Paulo: Record, 2000 (recolha de textos dos tratados militares chineses antigos)
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CHENG, A. Historia del Pensamiento Chino. Madrid: Bellaterra, 2003
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GERNET, J. O mundo Chinês. Lisboa: Cosmos, 1979.
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