Seria hipócrita da minha parte não reconhecer que o fumo prejudica a saúde (apesar de não saber o quanto, de fato), mas pensei se essa não seria uma excelente oportunidade para colocar em questão e analisar algumas velhas práticas sociais de preconceito, presentes de forma reincidente no discurso dos não fumantes, e se o próprio hábito de fumar não incomoda tanto, justamente, por fazer pensar.
Disse um amigo meu, uma vez: "não confio em quem não fuma e nem bebe". Pode parecer apenas uma piada, mas - salvo em casos em que a saúde o exigiu - estou propenso a aceitar que aqueles que não tem nenhum dos dois hábitos (não falo de um vício, ou dependência estrita, mas apenas de praticar a coisa com regularidade) tem uma chance muito grande de se transformarem em chatos encrenqueiros que não conseguem relaxar, que vêem o mundo todo da mesma forma radical e que insistem em vigiar aos outros para descarregar a angustia de não vigiarem a si mesmos.
Toda esta argumentação é apenas um "achismo" se, como eu disse, não puder apresentar alguns elementos que façam as pessoas pensarem no que estou dizendo. Assim sendo, vamos iniciar apresentando algumas idéias de âmbito geral.
Em primeiro lugar, somos (ou supomos ser) uma nação democrática. Onde fica, então, o nosso direito de fumar num espaço reservado? Aliás, um fumante não se incomoda porque tem não-fumantes bebendo no mesmo espaço que ele. Além disso, a reclamação sobre a fumaça é mais uma dessas histerias plantadas na mente das pessoas (exceto os alérgicos, claro, mas que são poucos) dado que o dia todo respiramos fumaça das fábricas e carros (não-fumantes possuem carros e compram produtos feitos nestas indústrias), respiramos fumaça de churrasco e frituras (não-fumantes comem isso também!) mas principalmente, faz com que o não-fumante se sinta um cidadão ativo, zeloso da sua sociedade, que reprime aquele que faz mal e intoxica os outros. É um típico caso de "síndrome do pequeno poder", que ocorre quando alguém sabe que não pode (ou não consegue) fazer nada por si mesmo e pela sociedade, então se arvora numa medida legal e passa a defender a antipatia moral pelos fumantes. Vale notar que a maior parte dos carros que batem, hoje, se deve a pessoas alcoolizadas (que os não-fumantes admitem tranquilamente), e que dificilmente ouvimos dizer de alguém que se acidentou por que fumava.
Deste modo, podemos nos perguntar se proibir o fumo, portanto, não se trata de uma medida totalitária. Com certeza que sim, principalmente quando começamos a constatar que o discurso médico preventivo sobre o assunto aproxima-se cada dia mais da tendência de associar cigarro as "drogas". Mas o que são as drogas? Este é o segundo problema fundamental sobre o qual podemos discorrer.
Para um cidadão comum, "drogas" significam apenas um apanhado de substancias, ao qual ele relacionara com nomes que ouviu na mídia ou na escola, e que "causam mal a saúde", alem de dependência. Ao tratar o tema como uma coisa só, ele já começa então a cometer um erro fatal para qualquer debate - o que ele sabe de fato sobre as "drogas" para poder opinar sobre elas? Isso nos remete a duas condições subseqüentes:
1) O cidadão comum discute o problema sem ter a mínima consciência do que se trata. Ele repudia o cigarro mas permite o álcool; ingere remédios no dia a dia que causam dependência; come carne a acha inaceitável ser vegetariano, mesmo que isso custe florestas que vão virar pastagem, e a destruição dos ecossistemas, além de causar dependência (2º !); é viciado em café, mas acha que maconha e cocaína são a mesma coisa, e que são um problema porque causam dependência(3º !). Ou seja, ao invés de buscar algum tipo de lucidez sobre as coisas, separando os temas (e substâncias) para uma análise mais consciente e embasada, ele repete como um papagaio de pirata aquilo que lhe é apresentado na mídia, nos programas de saúde e pelas suas personagens artísticas e intelectuais preferidas. Ele insiste em dizer que o fumo faz mal a saúde, e esquece de que os impostos recolhidos dos cigarros não são repassados, muitas vezes, para os hospitais (o que quer dizer que um fumante, mesmo sem querer, pode tanto enviar alguém intoxicado pela sua fumaça malévola ao hospital como pode, paradoxalmente, ajudar a salvá-la!). Quem, algum dia, já buscou realmente estudar o assunto para saber até onde fumar faz mal? Quem já parou para pensar na quantidade de coisas do qual é dependente? Algumas pessoas (como eu, por exemplo), bebem bastante água todos os dias e mesmo assim tem cálculos renais, por uma incapacidade genética dos rins. Alguns seres humanos, pois, são com certeza mais suscetíveis ao álcool, gordura, fumo ou mesmo leite e queijo....deveríamos proibi-los todos, então?
2) Há um problema de autoridade presente na argumentação não-fumante. Se vivemos numa sociedade em que nossos argumentos valem tanto quanto podemos comprová-los pela nossa experiência no assunto, logo, apenas um não-fumante que já tenha sido fumante inveterado pode afirmar alguma coisa sobre o tema "parar de fumar'. De fato, um não-fumante nunca poderia opinar sobre algo que não experimentou ou vivenciou para saber se isso e bom ou não - enquanto os fumantes nasceram, todos, não-fumantes. Além disso, o argumento do exemplo também não é eficaz: não-fumantes afirmam, por exemplo, que um pai que fuma na frente dos filhos os incita a fumar - mas podemos nos perguntar, pois, se o fato de alguém gostar de cerveja leva outro a ter o mesmo paladar. Um pai pode ser professor; o filho o seguirá por que isso é inevitável? Ele beberá apenas porque os amigos bebem? Ele cometerá os mesmos erros que alguém cometeu na sua frente, apenas porque isso ocorreu? Afirmar este tipo de coisa é negar a capacidade individual do ser humano de optar, por si mesmo, em seguir um caminho que ele escolheu. Mas o receio faz todo o sentido para os não-fumantes engajados, posto que eles reproduzem, exatamente, os comandos que lhes foram impostos por uma sociedade repressora e intolerante. É deste modo que eles conseguiram – e comemoram, até hoje - o sumiço dos cigarros de chocolate das prateleiras de doces, afirmando que isso incitava ao fumo. Quem fuma sabe que nunca entrou nessa por causa de chocolates! Mas é o que dá, quando alguém que não entende nada de cigarros (e chocolates) se põe a opinar sobre o assunto. Na próxima, os não-fumantes serão obrigados a refletir se, no processo de salvação da cultura indígena, eles devem permitir ou não o cachimbo do pajé!
Por conta disso, podemos observar que uma breve apresentação sobre o hábito de fumar já nos possibilita fazer algumas apreciações sobre como as pessoas pensam, no geral. Estranho pensar que um "mal" como esse possa nos ensinar sobre as fraturas existentes no discurso do senso comum. É comum que, muitas vezes, um cigarro só acompanhe as mãos do seu dono; mas existem momentos também em que o ritual leva contemplação, como no caso da cerimônia do chá ou da arqueria. Quando alguém pára tudo o que faz para fumar um pouco, estabelece um intervalo na sua própria rotina, no qual ele pode se dedicar pura e simplesmente a si mesmo.
Visto assim, fumar também tem o seu ritual, concretizado individualmente na figura do cachimbo e, coletivamente, no naguile. Ambos exigem tempo, uma leve dedicação, um clima agradável - sem conturbações - e criam aquele espaço único para um breve ócio criativo, tão necessário ao pensamento, como afirmava Domenico Masi. Lin Yutang, outro fumante inveterado, gostava de dizer que um adepto do cachimbo dificilmente briga, pois para gritar ele precisaria tirar o cachimbo da boca; e no entanto, o que faz ele quando fica tenso? Põe justamente o cachimbo na boca!
Tal como várias outras atividades humanas, fumar é, enfim, algo que tem o seu lado bom e ruim; e se há algo que caracteriza a Filosofia, é este estimulo infindável a experimentação e vivência que proporciona um conhecimento maior sobre as coisas. Descubra quem quiser se existe uma relação entre fumar e ser sábio: mas é inevitável pensar no assunto....
"O cachimbo extrai a sabedoria dos lábios do filósofo, e cerra a boca do tolo"
Thackeray
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