Por uma vida sossegada


O Senhor Cinco Salgueiros
Não se sabe de aonde veio, nem se sabe exatamente qual o seu nome. Como há cinco salgueiros ao lado da sua casa, deram-lhe essa alcunha. É refinado e tranqüilo, fala pouco, e não o impressionam a glória ou os privilégios. Aprecia os livros, sem todavia procurar entendê-los em pormenor. Quando capta o seu significado essencial fica tão feliz que se esquece de comer. É amigo do vinho, mas como a sua família é pobre, nem sempre o pode obter. Parentes e velhos camaradas, apercebendo-se da situação, às vezes preparam-lhe vinho e convidam-no para suas casas. Quando chega, bebe-o até à última gota, pois gosta de se embriagar. Porém, mal se embriaga, despede-se, não se obrigando à tarefa mesquinha de fazer cerimônia. A sua casita é humilde e nua, ao desabrigo do vento e do sol. As suas vestes apertadas, de tecido grosseiro, estão cheias de remendos. As vasilhas da comida e da água, sempre vazias. No entanto, ele parece em paz com esta situação. Escreve textos para sua própria diversão, nos quais expressa com veemência as suas aspirações. Indiferente a ganhos e perdas, vai assim findando os seus dias.
por Tao Yuanming


Foi o “Senhor Cinco Salgueiros” um homem sábio? A despreocupação é um atributo da sabedoria? Na busca de um ideal de bem viver, os chineses sempre tiveram consciência da preciosa noção de não apertar demais o nó da vida. Lin Yutang gostava de dizer que o ser humano ideal é o vagabundo universal – o mundo é repleto de preocupações que surgem sabe-se de onde, e nos contaminam impunemente – daí que o sábio verdadeiro sabe escarnar delas, tirando proveito dos problemas em função de arranjar uma solução.

“Só aquele que encara despreocupadamente as coisas com que se preocupam os homens pode preocupar-se com as coisas que os homens encaram despreocupadamente”, disse Zhang Chao com grande chance de estar certo. A vida, para ser bem vivida, só poderia ser aproveitada se devidamente amada com esforço, preocupação e humor. Disso decorre que o “vagabundo ideal”, como disse Lin Yutang em seu “A importância de viver”, não é em absoluto alguém totalmente improdutivo ou acomodado, ao contrário: ele sonda a vida, estuda-a, analisa-a em seus contornos e relaxa. O sábio atua no vazio, e deixa as coisas correrem por elas mesmas, só interferindo quando necessário. Afinal, disse Confúcio, nesta máxima inesquecível: “para que ensinar para quem não quer aprender”?

Disso resulta que a apreciação da vida, segundo este antigo modo chinês de encará-la, exige acidentalmente a experimentação bem medida das coisas. Uma anedota vulgar pode ilustrar de maneira brilhante o que queremos afirmar:

Um homem vai ao médico e pergunta: “será que viverei até os cem anos? O médico lhe responde: “Você fuma”? “Não”, foi a resposta. “Bebe? Come bem? Se arrisca de vez em quando? Faz amor sempre, todo dia? Viaja? Se cansa”? “Não”, era a resposta. Ao que o médico encerra o diálogo: “então, para que você quer viver até os cem anos”?

A jocosidade mostra o quanto é fundamental este envolvimento com a vida. Para os chineses, sempre tão comedidos, fumar, beber e sair depois da meia-noite não são circunstâncias, são necessidades da vida prática que levam à verdadeira sabedoria de viver. Só quem experimenta algo pode negá-lo. Para isso, tudo então deve ser lido, visto e vivido, sem o que isso se torna a pior das teorias.

Mesmo Confúcio, conhecido por uma tradição posterior de ser sisudo (grande injustiça! – quem ler o capítulo 7 do Lunyu verá que o mestre era sereno e alegre em casa, e que adorava uma pescaria) não era contra uma boa farra. Afinal, no texto “Contra a Embriaguez” presente no Shujing, após reproduzir longamente um discurso contra a desmedida, o sábio solta esta frase mais do que significativa: “quando houverdes cumprido amplamente o vosso dever na atenção de vossos maiores e no serviço de vosso governante, podereis comer e beber livremente até saciar-vos”. O que isso significa? Que, e tão somente, as coisas tem a sua hora para serem feitas. Numa historieta (confucionista ou daoísta, não se sabe), um dos discípulos de Confúcio uma vez lhe perguntou também: “Mestre, qual o segredo de ter uma vida correta”? Ao que ele respondeu: “comer quando se tem fome, dormir quando se tem sono, pensar quando é necessário” – “isso é óbvio”, disse o pobre, trouxa e imaturo aprendiz antes de levar a sua lição diária para casa; “sim, é óbvio, mas quem consegue fazer isso?” arrematou o mestre.



Viver envolve, pois, um compromisso com dois elementos fundamentais – saber viver (ou seja, “estudar” a própria vida, atributo central da concepção filosófica chinesa) e a partir disso, vivê-la (pois de nada adianta saber o que é ideal para si se não se consegue fazer o que é este ideal). Zhuangzi foi um daqueles amáveis sábios que acachapou alguns desses zumbis da existência - que entendem a vida como uma eterna rede de dívidas, envolvimentos e deveres – com suas incríveis e desprendidas atitudes em relação à vida:

Zhuangzi estava pescando no Rio Pu quando o Príncipe de Chu mandou que dois altos oficiais o fossem ver e disse - "Nosso príncipe deseja encarregá-lo da administração do Estado Chu".
Zhuangzi continuou a pescar sem virar a cabeça e disse - "Ouvi dizer que em Chu há uma tartaruga sagrada que morreu quando tinha três mil anos de idade. O príncipe conserva essa tartaruga cuidadosamente fechada numa arca no templo de seus ancestrais. Ora, essa tartaruga preferiria antes estar morta e ter seus restos venerados, ou preferiria estar viva e abanando o rabo na lama?"
- "Preferiria estar viva," replicaram os dois oficiais, "e abanando o rabo na lama"
- "pois então saiam daqui", disse Zhuangzi, "também prefiro abanar minha cauda na lama".

A enromidade de compromissos que arrecadamos na vida muitas vezes nos faz pensar que podemos estar sendo de algum modo úteis a ela, mas será mesmo isso? Não estaremos sendo escravos dela? Não estaremos insistindo num erro? Em uma de suas músicas, Raul Seixas manifestou isso melhor do que nunca ao dizer “sou tão egoísta que o cúmulo do meu egoísmo é querer ajudar a alguém”. Se bem interpretado, isso não significa abandonar o mundo de todo, mas significa ter consciência do que realmente fazemos de modo altruísta ou, do que realizamos pura e simplesmente por conta do interesse de “viver” de modo adequado.

Séculos depois, Su Dongpo emendou esta idéia dando-nos uma visão bela de arte de viver: “Não há ninguém no mundo com menos capacidade para beber vinho do que eu. Gosto, porém, de ver as pessoas beberem. Quando vejo meus amigos erguerem o copo e vagarosamente sorver o líquido, sinto o espírito animado e minha alegria é maior que mesmo a dos meus amigos”.

O Sábio ideal busca então a justa medida nas coisas, e esta se dá pela eterna reconstrução do ato de viver inteligentemente. Sem tanto forçar, como nem tanto ceder de todo, o sábio se estica aos limites e acha seu meio. Como disse LimiAn,

É mais destro em beber quem só meio ébrio fica, e a flor a se entreabrir mais linda se revela; mais firme é o navegar do barco a meia vela; melhor trota o corcel a meia–rédea; quem tem meios demais somou-lhe ansiedade; quem tem de menos ganha o desejo da posse; como a vida é doçura e amargor, quem só prova o ideal é o mais arguto e sábio.

Sua percepção sobre a realidade vai para além das aparências. A verdadeira vida e amizade não se dão somente no seio da sociedade, mas na vivência da vida como um todo. Disse o Yuanzi: “Nos tempos antigos, quando não havia amigos cavalheiros na aldeia, o letrado fazia amizade com as nuvens e montanhas. Não havendo amigos nas vizinhanças, divertia-se com vinho e música. Quando porém ia a uma cidade, procurava companhia de gente sábia. Achei isso em um mendigo, e honra-me sua amizade”.

Esta breve apresentação documental é, de fato, mais uma análise sobre a vida, talvez uma das partes que compõe o caminho em busca da sabedoria. Se nos bastam as palavras dos sábios, encerro este breve texto com o indefectível Li Bai (Li Po):

O universo é um albergue para miríades de coisas, e o próprio tempo é um hóspede dos séculos, em viagem. Esta vida flutuante é como um sonho. Quantas vezes podemos ter prazer conosco mesmo? Por esta razão é que os antigos empunhavam velas para celebrar a noite.

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