Devo dizer, antes de tudo, que existem bons teóricos para o tema. Umberto Eco dedicou um livro inteiramente ao assunto, intitulado "Apocalípticos e integrados". No Brasil, Moacir Cirne e Álvaro de Moya, autor de "Shazam!" forneceram excelentes contribuições para o estudo dos quadrinhos. A grande estudiosa do assunto, atualmente, é Sonia Luyten, especialista em Animes e Mangás, fazendo um trabalho crítico rico e seríssimo destes gêneros textuais japoneses.
Creio que um fator fundamental, para se ter alguma empatia pelos quadrinhos, é de se ter algum tipo de espanto com eles. Lembro que as histórias de Sandman, de Neil Gaiman, me impressionaram bastante, me deixando às vezes sem dormir. Quando Sandman encontra com Lúcifer logo no primeiro arco de histórias, a revista quase foi proibida nos Estados Unidos por representar o demônio na forma de um anjo, e não animalizadamente. Os puritanos acharam aquilo uma ofensa, e este tipo de detalhe me chamou a atenção para como os quadrinhos poderiam ser mais sérios do que pareciam.
O mesmo pode ser dito de "Camelot 3000" onde, num futuro em que a Terra de encontra ameaçada por uma invasão, o Rei Artur volta para salvar o planeta, mas Tristão e Isolda voltam a reencarnar em corpos femininos, tendo que viver uma relação lésbica que incomodou profundamente o moralismo dos americanos. "V" também significou uma crítica profunda a Inglaterra de Margareth Teacher, bem como "O cavaleiro das trevas", de Frank Muller, destruiu a inocência dos super-heróis. Não devemos esquecer ainda as histórias de J. Crumb (atualmente relançadas pela editora Conrad), que causam um incômodo total aos conservadores por seu conteúdo totalmente explícito, ofensivo e sem pudores. Crumb é um crítico ferrenho e inteligentíssimo da sociedade moderna, e sua vida tem acompanhado os movimentos hippies, a guerra fria e as indecisões do mundo contemporâneo. Temos Will Eisner, autor de “Spirit” mas principalmente, de “Protocolos do Sábio do Sião” – uma versão em quadrinhos do controverso livro, com uma análise crítica de como foi construída esta falsificação, e de como a mesma se perpetuou ao longo do século 20. Outro que vale comentar é Joe Sacco, autor de um novo gênero, os "quadrinhos-reportagem"; Sacco viajou para lugares conflagrados como a Bósnia e a Palestina, escrevendo histórias em quadrinhos sobre o que presenciou e documentou. Seu estilo, impiedoso consigo mesmo e com os outros, é seco, duro e absolutamente coerente.
Mas o que proporcionou a existência deste texto? Como informo no título, meu ensejo aqui é apresentar, mesmo que brevemente, um autor pouco conhecido no Brasil, infelizmente. Falo do cartunista chinês Tsai Chih Chung, e sua fabulosa coleção de obras sobre clássicos chineses em quadrinhos.
Boa Filosofia em quadrinhos
Tsai é um cartunista consagrado de Taiwan, cuja produção destaca-se profundamente dos gêneros asiáticos mais conhecidos, como no caso dos mangás japoneses. O que difere sua obra é a escolha dos temas, calcados principalmente na filosofia clássica chinesa. Embora sejam bem humorados, seu quadrinhos são profundos e realizam o difícil trabalho de transformar o pensamento filosófico em algo palatável.
Isso envolve também uma hábil escolha de histórias e trechos a serem adaptados, denotando um conhecimento razoável das obras trabalhadas. Tsai conseguiu um feito admirável com isso; criar um gênero de quadrinhos que não fosse propositalmente didático, nem de auto-ajuda ou que se tratasse de mera vulgarização do pensamento chinês. Sua obra consiste numa avaliação consistente e consciente de filosofia, como se a mesma fosse uma recolha de textos fundamentais desses autores, mas devidamente ilustrada.
Seus quadrinhos tiveram um sucesso inesperado na Ásia, sendo largamente difundidos em todos os níveis da sociedade. A recepção de sua obra se deu em escolas, empresas, nos leitores comuns e propiciou uma espécie de "renovação" no modo de abordar o pensamento chinês tradicional.
Pode parecer que essas colocações são, em certo ponto, exageradas, mas isso não é verdade. O trabalho de Tsai foi recebido como uma obra de arte, cujo conteúdo não é de forma alguma vulgar ou menor. A dificuldade em se aproximar das várias formas de pensar asiáticas (budismo, daoísmo, confucionismo, etc.) tem afastado, inequivocamente, os leitores de um conhecimento mais profundo sobre as mesmas. No Ocidente, principalmente, muitas dessas obras são trazidas pelo seu caráter de auto-ajuda (como foi dito), o que constitui muitas vezes uma deturpação de seus propósitos diversos.
A obra de Tsai consegue propiciar uma aproximação calma, simples, e ao mesmo tempo honesta, destas filosofias. Ela pode ser lida, sem contra-indicações, no contexto cotidiano ou escolar, servindo como um interessante contraponto aos quadrinhos usualmente difundidos.
Lamentavelmente, porém, só três obras de tsai foram traduzidas para o português: "Zen em quadrinhos", "Tao em quadrinhos" e "A Arte da guerra em quadrinhos", de Sunzi. "Zen" e "Tao" são, no entanto, fantásticas, e merecem um olhar atento. "Tao" conta, ainda, com uma excelente introdução histórica de Michel LaFargue sobre as escolas de pensamento chinesas da antiguidade. Um erro grotesco de tradução foi cometido neste texto inicial, mas isso não compromete o resto do livro (a tradutora confundiu os moístas, seguidores de Mozi, do séc. - 4, com maoístas, os comunistas seguidores de Maozedong!). De fato, isso só comprova o quanto uma obra dessa é significativa e necessária em termos de conteúdo.
O que fizemos aqui foi uma breve nota, pois, sobre o tema. É possível que outras obras ainda surjam, e Tsai continua em atividade. Uma obra interessante de citarmos é "Buda", uma criação japonesa de Osamu Tezuka, que conta uma versão romanceada da vida de Sidartha Gautama até sua transformação na figura mítica de Buda. Embora este último livro não se baseie nas tiras rápidas de Tsai, investindo no enredo epopéico, o seu surgimento está ligado diretamente às possibilidades abertas pela obra do cartunista chinês.
Tais materiais são, sobremaneira, interessantes para uma educação mais completa e abrangente. Acredito que já passou o tempo em que os quadrinhos eram perseguidos por pais e educadores como uma forma menor de gênero textual, mas é verdade também que muitos grupos de personagens estão estagnados, com suas temáticas esgotadas e sofrendo adaptações que os enterram mais ainda. Os quadrinhos estão passando por uma crise de identidade, e ao mesmo tempo, é isso justamente que renova o gênero. A obra de Tsai encaixa-se, neste contexto, justamente como uma demonstração de que o gênero está longe de morrer, e que pode ser ricamente re-inventado com propósitos e temáticas ricas e férteis.
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