Deixei de ser aquele que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.
A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.
Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.
Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.
(Deixei de ser aquele que esperava, de Fernando Pessoa)
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.
A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.
Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.
Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.
(Deixei de ser aquele que esperava, de Fernando Pessoa)
Dificilmente encontramos nas culturas antigas noções consolidadas sobre o que seriam o “Bem” e o “Mal”. Tais concepções, arraigadas em nosso imaginário como se fizessem parte da própria natureza humana são, de fato, construções ideológicas judaico-cristãs – que receberam, posteriormente, o adendo de alguns filósofos.
Mas, enquanto conceitos que delineiam as separações “necessárias” para o ato de viver em sociedade, “Bem e Mal” se tornam imediatamente um problema diante das necessidades cotidianas, tais como dilemas morais ou situações da vida privada. Do mesmo modo, recusamos sistematicamente qualquer tentativa em aceitar que as civilizações do passado podiam conviver com noções absolutamente vagas desse dualismo básico de “Bem e Mal” (ou, neste texto, BML), embora elas tenham sobrevivido por milênios dessa maneira. O senso comum refuta, inclusive, qualquer possibilidade de ler o passado que NÃO seja por meio dessas classificações que ora se consideram ancestrais (e são imputadas aos povos antigos), ora se afirmam modernas e resultantes da clarividência de um único sistema religioso.
Creio que o conceito mais adequado de formulação ética que podemos utilizar para classificar o processo pelo qual algumas dessas sociedades antigas operavam seria o de “apropriado” ou “Correto” e “inapropriado” ou “errado” (doravante ANAP, para simplificar as coisas). Não quero com isso justificar uma aceitação tácita e ingênua das antigas ideologias religiosas: afinal, em casos como o da mesopotâmia, por exemplo, temos deuses passionais, violentos e possessivos, que estão longe de representar um modo de vida ideal para os dias de hoje. Ainda assim, contudo, os mesmos mesopotâmicos conceberam a 1ª grande evolução da lei no Oriente Médio por meio da escrita do Código de Hamurábi – tido, inclusive, como uma ratificação de leis anteriores – que determinava o que poderia ser entendido como um crime e qual o castigo apropriado. Bem, este exemplo isolado apenas ilustra o cerne do problema: pode uma noção de BML se acertar com a noção ANAP? Se as ideologias judaico-cristãs aceitam estas terminologias como sinônimas, o caso chinês – especificamente de Confúcio -, que utilizaremos de contraponto, mostra que elas não são nem universais e que a questão de sua aplicabilidade é bem mais complicada do que usualmente supomos.
A Teoria Yin-Yang e Confúcio
A consagrada teoria da oposição complementar, que já expliquei no texto A Estrutura do Pensar Chinês (2005), e que embasa o olhar filosófico chinês desde a antiguidade mostra, por exemplo, que se existir alguma noção de “BML”, ela é apenas referencial, e não determinativa em si. Confúcio mesmo preferia se orientar por aquilo que entendia ser ANAP, ou Justa Medida (Zhong Yong), mas dificilmente ele explicitava a existência de valores absolutos como condutores da ação moral. Sua idéia de harmonizar-se com a sociedade, seguindo aquilo que “o Céu determinava” está longe de representar, igualmente, uma noção de valores deontológicos (ou universalistas) de origem divina (ver o texto Tian (Céu): um conceito ecológico, 2008). Por fim, o próprio mestre não deixava de acreditar em potências espirituais, mas insistia sempre na necessidade de entender a ética como algo humano – “como servir aos mortos se não soubermos servir aos vivos?”, disse ele.
Dois exemplos da condição ANAP são claros nos textos confucionistas: o primeiro se trata da máxima “não faça aos outros o que não quer que seja feito com você”, presente nos textos do Lunyu (Diálogos) e no Zhong Yong (A Justa Medida). Esta é uma construção perfeita para mostrar o que uma pessoa não deve fazer à outra, bem como não se sujeitar ao mesmo; no entanto, ela supõe também que duas pessoas, em comum acordo e unidas por um mesmo interesse, podem se comprazer em realizar algo que lhes é particular contato que, para isso, não prejudiquem outrem. Para chegar a essa conclusão, Confúcio se baseou na experiência humana, e não em valores religiosos “universais”.
Tal condição de problema fica bem clara se tentarmos arbitrar a questão por meio de valores fixos de BML. Suponhamos, por exemplo, um casal de práticas liberais – aparentemente, pois, monogâmico-, dentro do contexto Ocidental. Ainda que sua atitude satisfaça a ambos, e possivelmente as outras pessoas com quem se relacionem estejam de acordo, mesmo assim eles serão classificados como “errados” – e logo, “maus”. Mas se forem felizes, se sua maneira de viver não os leva a separação (um dos “males” da sociedade atual, onde tal circunstância também é encarada como fracasso pessoal), então, qual a razão de seu “sucesso”? Para complicar mais, suponhamos que o mesmo casal ainda pratique atos de caridade, esteja envolvido em causas humanitárias e pareça estar resolvido psicologicamente sobre suas questões de foro íntimo; então, o crítico ocidental terá um pouco mais de dificuldade em classificar como “maus” alguém que aparentemente faz algum tipo de “Bem”.
Obviamente que um leitor pouco atento irá afirmar que este exemplo hipotético simplesmente não existe, posto que um degenerado moral (como tal casal) não teria estas preocupações com o bem estar alheio. Há que se perguntar, pois, se a maior parte das pessoas “normais” (ou seja, “boas”) faz tais coisas; segundo, se esta afirmação se baseia em algum dado estatístico (que, creio, simplesmente não existe), numa experiência de vida pessoal (o que pode significar que o autor da crítica falhou em conseguir o que outros obtiveram, ou seja, a felicidade) ou simplesmente num estereótipo cultural, calcado nestes valores fixos de BML, que determina então que deve ser classificado como BML. Mas, pode-se criticar alguém sem conhecer? Isso não é “Mau”? Ora, se as explicações que o crítico pode oferecer se baseia em qualquer uma das situações acima descritas, então eles está numa armadilha, e suas atitudes em tentar taxar algo de BML acidentalmente serão, em geral, “Más”.
Um problema de conexão
Logo, vemos que ANAP não se conecta diretamente com BML. No mesmo Ocidente, entende-se que mentir, roubar e matar são atos, em absoluto, ruins. No entanto, quase todos mentem, alguns roubam e outros matam. Em primeiro lugar, porque existe uma hierarquia no modo como interpretamos estes valores? Segundo, o que garante a sua absoluta classificação conceitual se, em determinadas ocasiões, a realização de um ato inapropriado pode ser legitimável? Não precisamos chegar ao caso da pena de morte, por exemplo, para entender que essa parece ser, para muitos, a punição “adequada” para um assassino perigoso. Mas vamos propor uma outra situação um pouco mais complexa:
Imaginemos que um amigo nosso está sendo perseguido pela polícia por ser judeu, num Estado de orientação nazista. Ele pede asilo em nossa casa, e sabemos de sua inocência – ele não cometeu nenhum crime previsto pela lei. No entanto, se a polícia vier procurá-lo e bater em nossa porta, deveríamos entregá-lo, mesmo sabendo de sua inocência? Ou mentiríamos para protegê-lo? Existem, pois, mentiras apropriadas? Se a verdade é boa em absoluto, então devemos praticá-la, entregando nosso amigo para a polícia, mesmo sabendo que o governo está errado? E ainda, que governo pode ser “Bom” se, para funcionar, ele depende de atos que poderíamos classificar como “maus”?
Esta situação já foi vastamente discutida na Filosofia Ocidental - e não creio que de modo satisfatório, já que propostas de orientação neonazista estão retornando ao pensamento político. Mas, voltemos ao contraponto chinês: Confúcio nos oferece, neste segundo exemplo, uma atitude que parece ser apropriada, ainda que estranha:
Assim que Confúcio saiu de Chen, e ia passando pela cidade de Pu. Acontece que um tal Gungshu estava então promovendo uma revolução em Pu, e o povo rodeou Confúcio. Tinha ele, todavia, um discípulo de nome Gungliang Ju, que o seguia com cinco carros. Gungliang Ju era alto, hábil, e notável pela sua bravura. Disse ele a Confúcio: "Pois não é o destino? Da última vez que eu vos acompanhei a Kuang metemo-nos em encrenca, e agora complicamo-nos de novo. Desta vez vou brigar até o fim". Travou-se uma luta furiosa, e os nativos de Pu amedrontaram-se, prome¬tendo libertar Confúcio desde que ele prometesse não ir a Wei - pelo que Confúcio jurou lá não ir. Saiu então pelo Portão Leste, mas dirigiu-se diretamente a Wei. "Ora, pode-se pois quebrar uma jura assim?" - inquiriu Zigong. "Por certo, foi uma jura feita sob coação, o que não agrada aos deuses" - respondeu o Mestre. (Shiji, ou Recordações Históricas de Sima Qian, 47)
Mais a seguir, o próprio Confúcio afirma:
Mas eu sou diferente de todos esses: decido de acordo com as circunstâncias de cada momento, e procedo melhor. (idem)
No texto do Zhong Yong, Confúcio é taxativo:
O homem moral conforma-se com as circunstâncias de sua vida; nada deseja que esteja fora de sua posição. Encontrando-se em posição de riqueza e honrarias, vive como deve viver quem está numa posição de riquezas e honrarias. Encontrando-se na pobreza e em circunstâncias de humildade, vive como deve viver o que se encontra em condições de humildade e pobreza. Encontrando-se em países sem civilização, vive como deve viver quem habita países incivilizados. Encontrando-se em perigo e dificuldades, age de acordo com o que é preciso a um homem sob tais circunstâncias. Numa palavra, o homem moral não pode encontrar-se em nenhuma posição na qual não seja dono de si mesmo. (...) Confúcio observou - "Na prática do arco e flecha temos algo que se parece com o princípio na vida de um homem moral. Quando o arqueiro não atinge o centro do alvo, volta-se e procura a razão de ter falhado dentro de si mesmo". (Zhong Yong, 14)
O que significa isso? Que não há BML absolutos? Pela mesma teoria Yin-Yang, que embasa a visão confucionista (e poderíamos dizer, das outras escolas chinesas, igualmente), a própria relação BML, pela sua própria natureza, seria dicotômica. Afinal, se o Mal existe para comprovar a existência do Bem, então, até o Mal tem um aspecto positivo ou bom, que é provar a existência do Bem!
É bem provável que, por essa razão, ao discursar sobre a questão das Verdades morais, Confúcio tenha deixado bem claro que ela, como referência para qualquer valor humano é, de um jeito ou de outro, humana:
A verdade significa cumprimento do próprio eu; e a lei moral significa o seguimento da lei de nosso ser. A verdade é o começo e o fim (a substância) da existência material. Sem verdade não há existência material. É por essa razão que o homem moral dá valor à verdade. A verdade não é somente o cumprimento de nosso próprio ser; é aquilo, por intermédio do qual as coisas externas a nós têm uma existência. O cumprimento de nosso ser é sentido moral. O cumprimento da natureza das coisas externas a nós é intelecto. Essas coisas, o senso moral e o intelecto são os poderes ou faculdades de nosso ser. Eles combinam a utilidade íntima, ou subjetiva, e externa, ou objetiva, do poder da mente. Portanto, com a verdade, tudo o que for feito está direito. (Zhong Yong, 25)
É possível, pois, que o pensamento chinês não estabeleça uma distinção absoluta dos conceitos – senão, segundo um contexto específico – e mesmo assim, a orientação ANAP leva a conceber a necessidade de preservação, necessária para o equilíbrio social. Daí porque Confúcio insistir tanto, e sempre, no auto-exame da conduta íntima, como forma de compreender melhor o que seria ANAP, tal como aparece no texto do Daxue (O grande Estudo, 2):
O soberano Tang mandou gravar em sua banheira os seguintes dizeres: renova-te, renova-te, renova-te.
Isso significa prestar atenção constante à conduta, mas não a delimitação do que deve – ou não – se feito. O atrito, pois, entre os conceitos e as práticas tem sido o motivo do desgaste constante nos discursos ideológicos que defendem a existência de BML enquanto valores absolutos. Quando não o fazem de modo arbitrário e dogmático, transferem o problema da impossibilidade de sua aplicação para o indivíduo, deixando em suas mãos a decisão final sobre os atos morais e causando, por conseqüência, trágicas condições de culpabilidade, neurose e depressão.
Uma adequação
No entanto, a prática de ANAP pode levar a construção de valores referenciais. Tais valores, alicerçados na observação das práticas sociais e de suas necessidades, se consolidaria como uma forma de moral aplicável, que inevitavelmente bater-se-ia com aspirações individuais – mas a limitação do “não faça aos outros...” impor-se-ia como uma regra palpável para avaliar e julgar a validade de um ato isolado. Tal consideração, embora quase utópica, se vê possível num campo mais estrito, porém fundamental ao ser humano – a sabedoria. Se quisermos acreditar que o exemplo das culturas antigas, tal como o do caso chinês, nos faz quebrar as posturas dogmáticas, por outro ela depende justamente do desenvolvimento da Sabedoria, condição tão fundamental a boa administração das coisas. O próprio Confúcio acreditava mais em bons juízes do que em boas leis; de fato, quanto mais legislamos, embasados em valores absolutos de forças desconhecidas (e existem imperativos categóricos?), mais crimes criamos e cometemos. Fosse a Sabedoria o critério da razão, então as decisões poderiam ser aceitas em comum pela sociedade, em função justamente daquilo que as pessoas julgarem legítimo. Há um grande risco, nisso, de incorrermos num sofisma, deixando para o discursante a aparente posse da razão. Mas, por outro lado, a presença de valores absolutos como “guias” da busca filosófica têm servido, enfim, para alcançar a Sabedoria? E não seria, ainda, uma Sabedoria baseada em valores fixos uma simples máscara para o condicionamento perfeito?
Imaginado pelos que estão no poder, um sistema pode ter falhas em autoridade histórica (evidências históricas) embora possa ser excelente; o que lhe falta em autoridade histórica não pode merecer fé; e o que não pode merecer fé, o povo jamais obedecerá. Imaginado pelos que não estão com a autoridade, um sistema pode não merecer respeito, mesmo que seja excelente; o que não merece respeito não pode ter crédito e o que não pode ter crédito, o povo jamais obedecerá. Por conseguinte, cada sistema de leis morais deve ser baseado na consciência do próprio homem, verificada pela experiência comum da humanidade, provada pela devida sanção de experiência histórica e encontrada sem erros aplicada às operações e processos da natureza no universo físico e sendo encontrada sem contradição, posta diante dos deuses sem perguntas ou receio, e capaz de esperar centenas de gerações e tê-la confirmada, sem uma dúvida, por um Sábio da posteridade. O fato dele ser capaz de confrontar os poderes espirituais do universo sem medo nenhum, mostra que ele compreende as leis do Céu. O fato de estar preparado para esperar uma centena de gerações para confirmação da parte do Sábio da posteridade sem qualquer receio, mostra que ele compreende as leis do homem. (Zhong Yong, 29)
Por esta razão, Confúcio entendeu perfeitamente que o sábio se adapta sem perder sua essência. BML não pode determinar – não ao menos, neste mundo, e de modo absoluto - o que é ANAP. Confúcio conhecia as ancestrais tradições de sua cultura, preservava-as devidamente e as contrariava quando necessário. Somente assim pode-se evoluir, e compreender o que é realmente ANAP. Dito isso, pode ser que – e talvez, apenas pode ser – que finalmente busquemos encerrar com a intolerância, a intransigência e a incapacidade daqueles que tanto dogmatizam a concepção de BML como condutos da moral, mesmo sabendo que muitas vezes são inaplicáveis, incompreensíveis e só tem trazido tormento íntimo. Se há um Bem, há que alcançá-lo por vivê-lo.
Confúcio disse - "Achar o fio central para nosso ser moral, fio que nos una à ordem universal, eis na verdade o mais alto alcance humano. Durante muito tempo o povo raramente se mostrou capaz disso". (Zhong Yong, 3)
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